30/06/2012

LUGARES COMUNS - De "fim da picada" até "onda avassaladora"

FIM (O) DA PICADA

            No Brasil, e também em Angola, uma picada é um caminho aberto no mato, para se chegar a determinado local. Portanto, quando o caminho termina, não se pode ir mais além. Deste modo, o fim da picada é o fim do caminho – no limite, e em termos mais dramáticos, é a morte. Em linguagem corrente, é a finalização de qualquer tarefa ou objectivo.

FUGIR COM O RABO À SERINGA

            Refere-se àquele gesto instintivo que as pessoas fazem, quando a agulha da injecção se aproxima da nádega, ameaçando espetá-la, talvez de forma dolorosa... Por analogia, qualquer outra fuga a uma situação incómoda, seja ela de que natureza for, pode ser descrita desta forma pitoresca, ainda que nada tenha a ver directamente com o rabo... nem com as calças...


FUGIR COMO O DIABO DA CRUZ

            O Diabo, essa entidade maléfica que, segundo se diz, começou por ser um anjo, transformando-se depois num Mafarrico com cornos, barbicha e carapuço vermelho, empurrando as almas para o Inferno com um tridente, terá então adquirido, segundo acreditam as almas simples, um horror muito grande a todos os objectos em forma de cruz... Provavelmente, tudo isto não passa de superstição mais ou menos ingénua – mas a imagem é tão interessante, fica tão bem em cena, no Teatro ou no Cinema, que o lugar-comum adquiriu força simbólica para comparações dramáticas, expressando o terror que algumas pessoas sentem perante situações complicadas.  

GALINHA DOS OVOS DE OURO

Aqui está a prova de como as influências das histórias escutadas na infância se prolongam na vida adulta. A ingénua historinha de uma galinha que punha ovos de ouro marcou tão fortemente a imaginação das pessoas que, mesmo na idade adulta, se servem desta imagem para simbolizar verbalmente uma situação em que os lucros são acima da média.


GRANDIOSA MANIFESTAÇÃO

            Já alguém apareceu, em algum tempo, a informar que participou numa "pequena manifestação", ou numa "modesta manifestação"? Jamais! As manifestações, mesmo aquelas que ainda não se realizaram e que, por isso, ninguém pode garantir antecipadamente o número de participantes que terão, são sempre designadas por grandiosas manifestações. Depois, segue-se a polémica habitual: os manifestantes dizem que seriam para cima de um milhão; os do contra informam, desdenhosamente, que aquilo não teria mais que uns vinte mil... E a coisa fica por aí – até ao próximo anúncio de mais uma grandiosa manifestação...

IMPÁVIDO E SERENO

Aqui está um doa lugares-comuns mais comuns, entre os que aparecem com frequência no nosso quotidiano. Em situações de crise ou aflição, há sempre alguém que não se limita a ficar impávido. Parece ser obrigatório acrescentar mais um adjectivo, perfeitamente desnecessário, mas que arredonda a frase. E então, lá se juntam os dois e temos que os suportar... impávidos e serenos.

INFAME CALUNIADOR

Um caluniador já é, por definição, infame. Mas, carregado com este adjectivo, no meio de um texto qualquer, fica muito mais desprezível e dá-nos mesmo vontade de lhe cuspir. Um infame caluniador é, assim, muito mais caluniador que um simples caluniador...

LANÇA (UMA) EM ÁFRICA

            Diz-se que o Condestável Nuno Álvares Pereira, quando já era um monge recolhido no Convento do Carmo, soube que as lutas com Castela ameaçavam recomeçar. Então, teria afirmado que, apesar de velho, ainda era muito capaz de pegar numa lança e lançá-la com tal força que chegaria a África! E então, para provar a sua energia, teria arremessado uma lança que veio espetar-se cá em baixo, no terreiro do Rossio... A expressão meter uma lança em África ficou como símbolo de uma proeza fora do comum

LÍDER CARISMÁTICO

            Nunca se ouviu falar de um líder que não fosse apelidado de carismático, pelo menos pelos seus seguidores. É um adjectivo considerado obrigatório, e que só deixa de ser aplicado quando o líder deixa de o ser. Então, passar a ser o saudoso líder. Às vezes, vá lá, ainda é recordado como o saudoso e carismático líder...

LOIRA ALBION

Albion é o mais antigo dos nomes por que foi conhecida a Grã-Bretanha, muitas vezes usado poeticamente pata fazer referência àquela ilha. Por outro lado, os Latinos sempre tiveram um particular fascínio pelas mulheres louras – e as Inglesas eram então maioritariamente louras. Daí que a designação loira Albion fosse, em certas épocas, aplicada muito frequentemente ao país com o qual Portugal tem o mais antigo tratado de amizade, nem sempre levado à letra... Nas ocasiões de relacionamento mais tenso, as referências a Inglaterra deixavam de ter como protagonista a loira Albion, trocada pelo rude John Bull..

LUAR PRATEADO

A luz da Lua, mesmo depois de esta ter sido conspurcada pelas patadas de astronautas como Neil Armstrong e outros, tem realmente o aspecto do reflexo numa lata, mas esta (a lata) tem sido tradicionalmente transformada, pelos poetas românticos, em metal bem mais precioso. Daí que o luar tenha sido cantado, pelos séculos fora, como algo que poderia ser vendido nas ourivesarias, o que, infelizmente para os ourives, não corresponde à realidade. O luar prateado serve de cenário habitual a cenas românticas, que ficam muito mais compostas se envolvidas por este elemento tão brilhante...

LUFADA (UMA) DE AR FRESCO

            Quando se pretende descrever um elemento suavizador de certas tensões, costuma-se compará-lo a uma aragem que vem aligeirar o ambiente. Daí a imagem de uma lufada de ar fresco, que é, sem dúvida, expressiva e apropriada, pois seria bem menos eficaz um  jacto de ar quente...

LUTA (A) CONTINUA

            Este grito tornou-se popular, em Portugal, especialmente depois da viragem política de 25 de Abril de 1974, e nas mini-revoluções e manifestações que se lhe seguiram. No entanto, já tinha sido usado noutras datas e noutros países, à semelhança de outra frase revolucionária muito repetida: "O povo unido jamais será vencido!", importada da América do Sul, onde os latino-americanos de vários países, habituados a frequentes revoluções e golpes de Estado, repetem "El pueblo unido jamás será vencido!". Qualquer destas expressões acabou por perder impacto, de tão repetidas, mas ainda aparecem de vez em quando, sinal de que, na verdade, a luta continua...

LUZ (UMA) AO FUNDO DO TÚNEL

Tornou-se um dos lugares-comuns mais repetidos, sobretudo na vida política, sendo muito usado por aqueles que se especializaram em promessas dificilmente concretizáveis, e que nos entretêm com essa frase de esperança, que não diz nada mas promete tudo: já se vê uma luz ao fundo do túnel!... Os mais cépticos preferem dizer que é mais provável depararmo-nos com um túnel quando se apagar a luz...

LUZ CLARA

            Além de ser um lugar-comum, a citação que envolve a menção romântica de uma luz clara é um desnecessário e ridículo pleonasmo, já que não se concebe a existência de uma luz que não irradie claridade (sim, há a chamada luz negra, a dos raios ultravioletas, mas essa não costuma entrar nas citações aqui tratadas).

MACACOS ME MORDAM!

            Esta vigorosa exclamação, usada, à semelhança de muitas outras, pelo Capitão Archibald Haddock, o amigo do Tintin, não deve ser levada a sério, pois duvido que alguém verdadeiramente deseje que um macaco qualquer lhe dê uma dentada! Como lugar-comum, tem vindo a cair em desuso, ultimamente, substituída por outras expressões, algumas delas bem menos vigorosas, ainda que bem mais malcriadas.

MAFOMA (O QUE) NÃO DIZIA DO TOUCINHO

            Pelos vistos, Mafoma (Maomé) disse muito mal do toucinho – tanto, que o lugar-comum o que Mafoma não disse do toucinho é um dos mais citados, em notícias, em artigos, em discursos e por aí fora. Mas... o que disse Mafoma realmente do toucinho? Sabendo-se da repugnância que a carne de porco causa aos Muçulmanos, podemos imaginar o que ele teria dito. E isso nos chega,

MAIOR E VACINADO

            Esta forma de definir um indivíduo adulto justificava-se no tempo em que as vacinas eram coisa ainda relativamente rara. Muitos rapazes apanhavam a sua primeira vacina quando iam à tropa. Actualmente, porém, todos os bebés são vacinados ainda antes de saberem falar, de maneira que a expressão perdeu um pouco o significado antigo, No entanto, continua a usar-se muito, por hábito adquirido, dizendo-se que Fulano, por já ser crescido, é maior e vacinado.

MAIS QUE AS MÃES

            Ora aqui está uma forma muito pitoresca de significar muita gente. Diz-se: eles são mais que as mães para explicar que são muitos, muitíssimos. Na verdade, a classe das Mães é, por razões óbvias, uma das mais numerosas no mundo. Quanto à elegância da forma, aí já o assunto é mais discutível...

MAIS VALE SÓ...

            O que fica implícito na sequência destas palavras e lhe completa o sentido (mais vale só que mal acompanhado) é um conceito popular, que dá muito jeito para ser aplicado às mais diversas circunstâncias da vida. As vantagens da solidão ficam assim expressas neste lugar-comum, ou melhor, neste meio-lugar-comum, já que raramente a frase aparece completa.

MALES (HÁ) QUE VÊM POR BEM

            Boa tentativa para acalentar e consolar alguém a quem aconteceu uma desgraça qualquer. É duvidosa a eficácia do truque, mas não fica mal tentar.

MALHAR EM FERRO FRIO

            Este lugar-comum é incompreensível, no seu significado literal, para as pessoas do mundo actual, embora lhe entendam genericamente o sentido. Hoje não existem ferreiros. Esses é que sabiam, por experiência profissional, que o ferro tinha que estar bem quente – em brasa – para ser malhado e moldado. Estando frio o ferro, bem lhe podiam malhar, que ele ficava na mesma. E é este o tal sentido que é dado à frase: não adiante tentar seja o que for, se as circunstâncias não forem propícias.

MANGA-DE-ALPACA

            É uma imagem de tempos antigos: os funcionários públicos, os contabilistas, os caixeiros, para protegerem e pouparem as mangas das camisas, usavam umas mangas postiças, feitas de alpaca, que se apertavam com uns elásticos. Sendo estas profissões habitualmente desempenhadas por pessoas muito minuciosas, cheias de hábitos burocráticos, o termo manga-de-alpaca ficou a definir todo aquele que trabalho por processos antiquados e chatos, com pouco dinamismo e sem espírito de iniciativa. Actualmente, já não se vêem por aí mangas destas – mas o espírito ainda se mantém, em muita gente que, segundo uma velha piada, usa três mangas-de-alpaca: duas nos braços e mais uma na cabeça...

METER A PATA NA POÇA

            A frase parece ter nascido, como tantas outras, num número cómico de revista teatral, sendo habitualmente atribuído a Raul Solnado, e generalizando-se depois às situações em que, por distracção ou burrice, alguém faz asneira. Outras parecidas são, por exemplo, meter água ou meter o pé na argola.            


MAOMÉ (SE) NÃO VAI À MONTANHA, VAI A MONTANHA A MAOMÉ

O sentido é evidente para quem saiba interpretar a história. Maomé ensinava os
seus discípulos, que o desafiaram a fazer deslocar uma montanha para perto de si. Tentou mas não conseguiu. Foi então ele mesmo até junto da montanha e agradeceu por não ter conseguido removê-la... Também um trabalho que parece impossível poderá concretizar-se quando, em vez de esperar que ele se realize sozinho, se toma a iniciativa justa.

MÃOS A ABANAR

            As imagens clássicas dos grandes empreendedores, dos trabalhadores, mostram-nos sempre com as mãos ocupadas – com uma ferramenta, com um livro, com um objecto de trabalho. Mão a abanar significam uma de duas coisas, qualquer delas negativa: ociosidade... ou desemprego.

MELHOR (O) AMIGO DO HOMEM

            Frase simpática geralmente aplicada ao cão – embora haja quem não partilhe da opinião de ser este, realmente, o melhor amigo que um homem pode ter. Há quem prefira o gato, ou outro bicho qualquer. Por isso, o uso deste lugar-comum pode dar origem a confusões, entre aqueles que não partilham o amor pela raça canina.

MERECIDO DESCANSO

É um qualificativo muito usado na época estival, quando se dá notícia de que uma personalidade com certo destaque (um ministro, um cantor pop, uma fofoqueira de programa de tv) vai de férias. Aliás, existe uma variante, também muito utilizada, que é a das merecidas férias. A pessoa não vai gozar um descanso normal – nos casos citados, e noutros, somos informados de que vai gozar um merecido descanso. Por contraste, o descanso de um indivíduo normal (que não seja, portanto, nem ministro, nem cantor pop, nem fofoqueira) deve, naturalmente, ser classificado como "imerecido".

MÓ (A) DE BAIXO

Nos moinhos de vento há duas mós: a mó de cima (o "alueiro") para moer o trigo, e a mó de baixo (o "urgeiro") para moer o milho e outros cereais. Enquanto o moleiro trata da moenda do trigo (no Alentejo dizem moenga), o ajudante, cá em baixo, cuida da mó inferior. Talvez porque o trigo é cereal mais "nobre", a mó de cima é considerada mais importante, e a mó de baixo serve de comparação para as situações em que as pessoas não estão lá muito bem na vida – estão, portanto, na mó de baixo.


NÃO HÁ DUAS SEM TRÊS

            Este lugar-comum exprime, em linguagem popular, aquilo que está contido na Lei das Probabilidades: se um facto se repete, é natural que ainda volte a acontecer pela terceira vez. Vogando nessa esperança, as pessoas vão acreditando que essa repetição acontecerá mesmo à medida dos seus desejos (para os factos positivos), ou como azar que as persegue (quando os factos são negativos).

NÃO MEXER UMA PALHA

            Dada a mecanização da nossa agricultura, já é muito raro alguém mexer em palha... No entanto, a imagem ficou, neste lugar-comum que significa não fazer nada, não tomar qualquer iniciativa, ficar quieto.

NÃO TUGIR NEM MUGIR

A expressão é vagamente ofensiva. Na sua primeira parte (não tugir) usa um verbo antigo, que significa falar baixinho, murmurar; na segunda parte (nem mugir) refere-se à linguagem dos bovinos, o mugido, que equivale ao berro, ao falar alto. Assim, não tugir nem mugir significa, simplesmente, ficar calado, não falar.

NÃO VÁ O DIABO TECÊ-LAS

            O que poderá o Diabo tecer? Por tradição, ele só poderá tecer coisas maléficas – portanto, cuidado! é o que nos recomenda este lugar-comum, aconselhando precaução nas resoluções a tomar.

NEVOEIRO DENSO

O nevoeiro pode ser mais ou menos espesso, conforma as condições meteorológicas. No entanto, para fins literários, quando se pretende dar maior dramatismo à descrição de uma cena nevoenta, ele é sempre descrito como denso, ou mesmo, quando se usa estilo mais rico, imperscrutável...

OBRAS DE SANTA ENGRÁCIA

            É muito curiosa a persistência, durante muitos anos, desta frase, que já vem do século XVII. Na verdade, em Fevereiro de 1631 foi executada em Lisboa a sentença de morte sobre um cristão-novo, um tal Simão Pires, acusado de ser ladrão, a quem, depois de cortarem as mãos, queimaram numa fogueira, como aconteceu, na época, a outros judeus convertidos. Fora acusado de ter roubado as relíquias da igreja de Santa Engrácia, a qual estava então em obras. Tinham-no visto por aqueles lados, de noite, o que levantou suspeitas. Ora a verdade é que ele andava a rondar o Convento de Santa Clara, tentando convencer uma jovem noviça a fugir, para casar com ele. Porém, para não a comprometer, guardou silêncio, não revelou a verdadeira causa da sua presença naquele local e naquela noite, e só quando as chamas da fogueira começarem a rodeá-lo gritou que era tão certo ele estar inocente como as obras de Santa Engrácia nunca mais acabarem!... As obras de Santa Engrácia arrastaram-se morosamente, até ser ali instalado, já no século XX, o Panteão Nacional – e a frase passou a designar todas as outras obras que pareciam nunca mais ter fim... As obras de Santa Engrácia duraram cerca de 350 anos – mas há outras que ameaçam ter a mesma sorte...

OLHOS DE CARNEIRO MAL MORTO

            Um carneiro, ou está morto... ou não está, e então está vivo... Mal morto é uma forma de dizer que está prestes a morrer, que está moribundo... Ora, nestas circunstâncias, qualquer carneiro (aliás, como qualquer outro animal, homem incluído) fica com os olhos semicerrados, com expressão um pouco estúpida. Por isso se aplica este lugar-comum aos indivíduos que parecem estar ausentes, a pensar sabe-se lá em quê – ou, provavelmente, a pensar em nada.

ONDA AVASSALADORA

            Uma onda que fuja aos padrões normais das ondas que estamos habituados a ver, pode ser tão grande que assuma a categoria de tsunami. Isto em termos científicos – porque, em termos literários, é mais comum ser apelidada de onda avassaladora. É bonito e dá outra força ao texto.  

CONTINUA

24/06/2012

LUGARES COMUNS - De "chover no molhado" até "fiel amigo"

CHOVER NO MOLHADO

            Tem significado parecido com fazer o que já foi feito, ou dizer o que já foi dito, Refere-se, portanto, a uma repetição inútil, como aquela partida que a Natureza prega, às vezes, aos agricultores, fazendo cair uma grande carga de água sobre os campos que acabaram de ser regados com os caríssimos sistemas de rega mecânica... 

COCA-BICHINHOS

            É um nome, meio depreciativo meio carinhoso, que costuma aplicar-se àquelas pessoas que vivem apaixonadamente interessadas por coisas pequeninas. É o caso, entre outros, dos entomólogos. Como estes passam muito tempo à coca (a observar) os bichinhos, a designação coca-bichinhos é apropriado. Depois, por comparação, ela aplica-se (agora já de modo zombeteiro) a toda a gente que se preocupa com coisas pequeninas, insignificantes.

COISAS DO ARCO-DA-VELHA

            Para muita gente, o arco-íris ainda é um fenómeno dificilmente explicável, uma espécie de magia que surge no espaço, nos dias de chuva. Pessoas mais velhas, que não andaram na escola, ou que por lá passaram distraídas, não aprenderam que se trata de um fenómeno meteorológico através do qual a luz do Sol, passando pelas gotas da chuva, se espalha no seu espectro de sete cores. Outros nomes se lhe aplicam: arco-celeste, arco-da-chuva, arco-da-aliança (este último porque, segundo a Bíblia, simboliza um pacto de paz que foi estabelecido com Noé após o Dilúvio). Mas o nome mais popular e mais pitoresco é arco-da-velha – que, aliás, também tem a ver com o Velho Testamento, ou Lei Velha. Em razão da estranheza com que muita gente ainda olha para este fenómeno, as pessoas falam de coisas do arco-da-velha quando se referem a acontecimentos fora do normal.
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COMER AS PAPAS NA CABEÇA

            Significa uma coisa que é difícil de imaginar na prática: se uma pessoa é maior que outra, sentindo-se assim mais importante, será capaz até de comer papas na cabeça da outra... Para além da evidente falta de higiene, a ideia só pode ser encarada simbolicamente.

CONFUNDIR A NUVEM COM JUNO

Ou, noutra variante, tomar a nuvem por Juno – um conceito que vem da Mitologia, e que significa deixar-se enganar pelas aparências. A história começa quando Ixíon, que era rei dos Lapitas, promete a Deioneu, pai de Clia, que lhe entregaria um rico dote, quando casasse com a filha. Mas a promessa não foi cumprida, e Deioneu acusou Ixíon de ter faltado à sua palavra. Ora, não há nenhum mentiroso que goste que lhe chamem tal nome... Por isso, Ixíon matou o sogro, enfiando-o numa fornalha... No entanto, mais tarde, arrependeu-se, de tal forma que Júpiter, o pai de todos os deuses, o perdoou. Só que ele viria depois a apaixonar-se por Juno, a mulher de Júpiter. Esta queixou-se dele ao marido, que resolver pôr à prova o malandrim reincidente: formou uma nuvem com as formas de Juno, e o apaixonado precipitou-se a abraçar a nuvem... É claro que Júpiter não teve outro remédio senão expulsá-lo do Olimpo – mas, mesmo assim, ele gabava-se aí por todo o lado de ter possuído Juno. Resultado: acabou no Inferno, onde as Fúrias o amarraram com serpentes a uma roda de fogo, girando para todo o sempre... Tudo isto porque uma lamentável miopia o fez confundir a nuvem com a sua amada...

CONSCIÊNCIA PERFEITAMENTE TRANQUILA

            Um inocente, mesmo quando é acusado de uma qualquer patifaria, tem que arranjar forças para resistir à acusação injusta. Precisa de ter a consciência tranquila. Mas isso não chega.. É necessário que ela, a consciência, esteja perfeitamente tranquila. Este lugar-comum pode não resolver o problema, mas ajuda a tranquilizar quem o usa.

COSTAS LARGAS - ou QUENTES
            Quando uma pessoa se gaba de ter as costas largas, isso significa que está confiante em si mesma, ou naqueles que a protegem. Uma variante de costas largas é costas quentes, que significa o mesmo: ter poder, ou ter por trás alguém poderoso que apadrinha e dá cobertura, até às maroteiras que venham a ser feitas.

CULPA (A) NÃO MORRE SOLTEIRA

Diz-se de um caso em que o culpado por qualquer acto menos próprio é descoberto e punido por esse acto. Não tem nada a ver com problemas conjugais, e não é hábito dizer-se que a culpa morre casada – o que, só aparentemente, teria o mesmo significado. O pior é que, sendo este lugar-comum dito com muita frequência, quando os acontecimentos ainda estão a ser vividos a quente, é muito raro que a intenção se cumpra na realidade – ou seja, a culpa, na maior parta dos casos, acaba mesmo por ficar para tia...

DAR O LITRO

            Ao contrário do que poderia supor-se, o sentido da frase não se refere à doação de um litro de qualquer líquido seja a quem for. Por qualquer razão misteriosa, dar o litro significa dar o seu melhor, fazer o máximo de esforço. Desconhece-se a origem desta forma de manifestar uma tão saudável produtividade. Há uma variante ligeiramente diferente, que é dar o corpo ao manifesto.
           
DAR O NÓ

            Também se diz dar o sagrado nó, e ambas as formas significam o mesmo: casar. Isto apesar de o casamento ter vindo, progressivamente, a perder o seu aspecto sagrado, que lhe é atribuído pela religião. Talvez por isso, além de decrescer o número de pessoas que dão o nó, é cada vez maior o número daquelas que o desfazem – isto é, que se divorciam.  

DAR OS NOMES AOS BOIS

            Não se pode dizer que seja um lugar-comum dos mais elegantes, mas é, pelo menos, bastante expressivo. Significa ser franco, chamar as coisas pelos nomes apropriados. No entanto, com as conotações negativas que a palavra "boi" assume na nossa língua, é pelo menos delicado o uso da expressão.

DAR PÉROLAS A PORCOS

            É evidente que dar pérolas a porcos não é uma atitude lá muito inteligente. por duas razões principais: porque é uma tontice desperdiçar assim coisas tão caras – e porque os porcos não vão agradecer gesto tão magnânimo, e até haviam de preferir que lhes dessem bolotas... Em sentido figurado, trata-se de oferecer coisas valiosas a quem as não merece.

DEITAR ÁGUA NA FERVURA

Qualquer dona de casa, ou qualquer cozinheira, sabe o sentido desta frase: quando uma panela está ao lume, com a sopa a ferver, e é preciso atrasar um pouco o fim da cozedura, deita-se um pouco de água fria, e o borbulhar reduz-se imediatamente. Numa discussão, o fenómeno é idêntico: quando os ânimos estão exaltados, introduz-se uma palavra ponderada, uma piada, uma observação bem disposta, e a disputa acalma.    

DEPOIS DA CASA ARROMBADA, TRANCAS À PORTA

            E o que sempre se diz, depois de se verificar que se cometeu um grande disparate, que bem podia ter sido evitado, se tivessem sido tomadas as precauções normais. É sempre depois de um grande roubo que se faz o seguro da casa.       

DESPIDO DE PRECONCEITOS

            Podia dizer-se de outras formas, como isento de preconceitos, liberto de preconceitos ou, ainda mais simplesmente, sem preconceitos. Porém, a palavra despido parece ter um vago sentido erótico, que dá, a este lugar-comum, um sentido um pouco maroto, que o torna muito mais interessante...

DESPORTO-REI

Começou por chamar-se football, quando era jogado por uns ingleses ricos e um bocado excêntricos que moravam na linha do Estoril e se juntavam para dar uns pontapés (kicks) numa bola (ball). Durante muitos anos, falava-se então do tal football, do goal, do keeper, do corner, do penalty, do referee, do offside... palavras que caíram em desuso, substituídas por outras mais modernas. O nome do jogo foi aportuguesado para futebol – mas é carinhosamente substituído, muitas vezes, pelo tal desporto-rei – entendendo-se que todos os outros desportos são, mais ou menos, desportos-vassalos...

DOCE ESPERANÇA

A esperança é algo que, em princípio, não tem sabor... Todavia, muita gente acha que a esperança pode saber ao mesmo que um caramelo... Daí a expressão doce esperança, que não faz mal nenhum à nossa alma (nem aos nossos dentes) e que ajuda a suportar as amarguras da vida...

DOCE VOLÚPIA

            Volúpia é uma daquelas palavras bonitas, quase aristocráticas, muito mais qualificadas do que, por exemplo, prazer, gozo ou mesmo sensualidade, Fica reservada para cenas de amor altamente sofisticadas, entre amantes de classe social elevada. Quando se pretende juntar tudo isto numa narrativa de estilo superior, nada melhor que juntar-lhe um adjectivo tão agradável como doce – e o resultado é essa doce volúpia que enfeita os grandes romances de amor.

DOR DE COTOVELO

            Diz-se de uma das dores mais difíceis de suportar, devido ao facto de – embora supostamente se localizar num ponto preciso do corpo humano, o cotovelo – ela se manifestar mais concretamente a nível da cabeça e/ou do coração, conforme o convencionalismo romântico utilizado pelo protagonista... Enfim, toda a gente sabe que dor-de-cotovelo é o nome pitoresco aplicado a esse sentimento terrível que é o ciúme. Em meios menos refinados, usa-se a versão dor-de-corno.

DUAS (TER) CARAS COMO O FEIJÃO-FRADE

            Na verdade, o feijão-frade não tem exactamente duas caras ou, para sermos mais precisos, tem uma cara grande, mais clara, e uma carinha pequena, mais escura. Portanto, a sugestão de que uma pessoa se parece com um feijão quando tem dupla personalidade, ou quando é boazinha da parte da manhã e uma peste da parte da tarde, fica um pouco desvirtuada nesta comparação. Mas o uso criou a tradição.

ELEFANTE (UM) NUMA LOJA DE PORCELANAS

A imagem é muito expressiva e não precisa de grandes explicações para se lhe entender o sentido. No entanto, conhecendo-se a forma como certas personagens actuam, de forma destrutiva, quando protagonizam acontecimentos da vida pública, muito particularmente da vida política, pode dizer-se que a comparação com o elefante (que, apesar do seu ar pesado, pode ser um animal muito delicado) chega a ser um pouco ofensiva – para o elefante.

EMENDA (PIOR A) QUE O SONETO

Significa este lugar-comum que, por vezes, emendar o que está mal pode causar um mal ainda maior... A expressão nasce com o poeta Manoel Maria Barbosa do Bocage, que escreveu dos mais belos sonetos da língua portuguesa (a par com alguns dos versos satíricos mais malandros que já alguém inventou...). Sabendo da sua fama, um aspirante a poeta foi pedir-lhe um dia que lesse um soneto que tinha escrito, corrigindo-o nas partes que achasse menos boas. Mas Bocage não fzx correcção alguma porque, como ele disse ele ao outro, as alterações seriam tantas, que a emenda seria pior que o soneto

ENCHER CHOURIÇOS

            Depois da tradicional matança do porco, uma das tarefas mais chatas é a de preparar os enchidos, enchendo as tripas com as partes do corpo do bicho que hão-de constituir os saborosos chouriços (e os paios, e as salsichas, e as morcelas, e todas as outras modalidades de enchidos possíveis). Por analogia, qualquer tarefa repetitiva e chata é também designada dessa forma: é como encher chouriços.


ERRO CRASSO

            Qualquer erro, de qualquer espécie, é lamentável. Mas, para o tornar mais evidente, acrescentar o adjectivo crasso (que significa tosco, grosseiro) ajuda a dar um sentido mais gravoso a esse erro.

ESCALADA DE VIOLÊNCIA

A violência, que caracteriza muitos aspectos da vida corrente, torna-se muito mais dramática se for descrita como fazendo parte de uma espécie de programa evolutivo, que começa com uma violenciazinha quase insignificante, do tipo discussão entre vizinhas, aumentando até ao exagero de uma guerra generalizada. É por isso que costuma dizer-se que num simples encontrão involuntário, na rua, pode começar a escalada que leva à bomba atómica.

ESCURO COMO BREU

Na Natureza, há diversos graus de escuridão, que vão desde o crepúsculo até à ausência total de luz. E há o breu, que a maioria das pessoas nem sabe o que é... Na verdade, trata-se de um espécie de secreção química resinosa de certas plantas, muito escura, e que pode servir como betume para isolar frestas, ou como componente de vernizes ou revestimentos. Também se obtém pela destilação do alcatrão. Enfim, um produto muito escuro. Escuro como breu.

ESTALAR O VERNIZ

            Uma peça aparentemente de grande valor (por exemplo, uma cómoda antiga) pode um dia apresentar o verniz estalado e a descascar, descobrindo-se então que, em vez do que parecia ser madeira de mogno, está um vulgaríssimo pinho... Coisa parecida acontece com certas pessoas que aparentam grande cultura e esmerada educação, até ao dia em que se distraem e revelam a falta de nível que realmente possuem.

ESTAR COM OS AZEITES

            Significa estar maldisposto, zangado, aborrecido. Existe uma verdadeira colecção de expressões parecidas, com o mesmo sentido: estar com a mosca, estar com a telha, estar cheio, estar com a bolha, e muitas outras. Pareceria mais lógica a substituição por uma forma mais "azeda", como estar com os vinagres – e, na verdade, há quem use esta forma de expressar a má disposição.

ESTES QUE A TERRA HÁ-DE COMER

 Forma delicada de mencionar os olhos, os quais, sendo das partes mais sensíveis do corpo humano, causam tal impressão, mesmo quando são simplesmente referidos (e muito mais ao serem tocados) que existe uma certa "cerimónia" quando se fala deles; daí este lugar-comum.

FALAR COM OS SEUS BOTÕES

            À falta de melhor interlocutor, uma pessoa entretém-se, às vezes, a falar consigo mesma, com todos os perigos que isso acarreta, entre os quais o de as outras pessoas pensarem que está maluca... Em alternativa – e como um dos gestos instintivos, nestas ocasiões, é desabotoar e voltar a abotoar os botões da vestimenta – é de considerar que, na verdade, a pessoa está mesmo a falar com os seus botões. Há, no entanto, outras formas mais originais de descrever tal situação: por exemplo, falar prò boneco.

FATAL COMO O DESTINO

            Em coincidência com outro lugar-comum igualmente vulgarizado (destino fatal) usa-se esta fórmula: fatal como o destino, para descrever e sublinhar situações irreversíveis e inevitáveis. É uma comparação fatalista de certo efeito, todavia anulado quando existe repetição excessiva.

FALAR DE CÁTEDRA

            No tempo em que havia grande respeito pelos Professores (situação que se vai perdendo gradualmente...) aquilo que um mestre dizia, do alto da sua cátedra, fosse ela fisicamente real, ou apenas simbólica, era escutado com atenção e respeito, porque, em princípio, era matéria importante e fundamentada. A cátedra funcionava assim como símbolo e marca do Saber, transmitido por aqueles que a partir dela transmitiam os seus conhecimentos. Uma variante mais popular: falar de papo cheio.

FECHAR A SETE CHAVES

O sentido é evidente, mas as fechaduras modernas, muito mais seguras que as antigas, já não exigem que se usem sete chaves para fechar qualquer porta. Em tempos remotos seria assim, e justificava-se então uma forma tão explícita. Na actualidade, este lugar-comum bem podia ser encerrado... a sete chaves.

FIEL AMIGO

            Não confundir com o melhor amigo do homem, que é, por tradição, o cão. Aqui estamos a falar de outro bicho, mais seco e salgado: o bacalhau. Começou a ser assim designado em tempos que já vão ficando afastados, quando fazia parte da dieta nacional, particularmente a das pessoas mais modestas. Era barato e estava sempre pronto a ser cozinhado, segundo uma das inúmeras receitas culinárias que o tinham como base. Daí o qualificativo fiel amigo. Com a evolução dos tempos, e com o seu progressivo desaparecimento das águas onde é pescado, o bacalhau passou a artigo de luxo – isto é, a infiel amigo...    

CONTINUA       

20/06/2012

LUGARES COMUNS - De "aprendiz de feiticeiro" até "chorar como uma madalena"

APRENDIZ DE FEITICEIRO

            Ser aprendiz de feiticeiro significa atrever-se a fazer coisas para as quais não se está preparado, descambando em resultados desastrosos. É o que acontece, por exemplo, a quem se mete a governar uma casa (ou um país) sem ter capacidade para tanto... Um certo aprendiz desta espécie surge-nos numa história contada por Goethe. Tratava-se de um grande preguiçoso, que estava a fazer o seu curso de magia com um mestre de todas as feitiçarias. Ora os aprendizes servem, entre outras coisas, para cumprir as tarefas domésticas nas casas onde estão alojados – e este tinha por missão encher um tanque com água, que tinha de carregar de um poço. Um dia, estando o mestre ausente, o aprendiz, que já sabia alguns truques, resolveu aplicá-los enquanto se punha a descansar. Para isso, deu ordens mágicas a uma vassoura, para ir carregar a água, e ela assim fez, transportando dois baldes de cada vez. Mas o aprendiz adormeceu e quando, mais tarde, acordou, viu alarmado que o tanque já estava a deitar por fora – e ele não sabia como fazer parar a diligente vassoura! Entrou em pânico, partiu-a em bocados, mas cada bocado transformou-se noutra vassoura a carregar água, imparavelmente! Quando o feiticeiro voltou, tinha a casa alagada, e teve de aplicar uma grande magia para acabar com aquele maremoto... e um valente castigo ao aprendiz, obrigando-o a secar o chão todo com uma esfregona... Esta história foi maravilhosamente contada, em desenhos animados, no filme Fantasia, que Walt Disney realizou. Todavia, nem todos os aprendizes de feiticeiro são castigados como o Rato Mickey. Alguns escapam...

AQUI D'EL-REI!

            Na Idade Média, os senhores feudais tinham poder de vida e de morte sobre o povo. Mais tarde, esse poder começou, gradualmente, a ser atribuído aos reis, que passaram a dispor de forças militares e outras, cuja missão era protegê-los e, ao mesmo tempo, proteger os povos. Mas os senhores feudais tiveram dificuldade em aceitar a nova partilha de poderes e, em muitos casos, continuaram a massacrar os súbditos. Estes, sem outra ajuda, recorriam então às forças do rei, chamadas muitas vezes a intervir, ao grito desesperado "Aqui d'El Rei!", nem sempre correspondido, mas que ficou como símbolo da aflição dos fracos perante a tirania dos fortes.

AQUI É QUE ESTÁO BUSÍLIS

            Equivale a algo parecido com aqui é que está a dificuldade – mas o mais curioso é que a palavra busílis foi "inventada" por um copista da Idade Média, pouco sabedor, que copiava um texto em Latim. Nesse texto, surgia a expressão in diebus illis (que significa naquele tempo). Ora esta expressão aparecia partida de uma linha para outra: na primeira linha estava escrito in die e, na linha seguinte, aparecia bus illis. Atrapalhado com a interpretação da frase, o copista começou por traduzir in die por Índia...E depois, pensou que busillis era uma palavra nova, com o significado de problema, complicação. Daí o sentido que é dado actualmente a este lugar-comum. Aqui é que está o busílis equivale a aqui é que está a dificuldade, ou aqui é que está o gato...

ARROTAR POSTAS DE PESCADA

            Em tempos antigos, a pescada (o tal peixe que "antes de ser já o era", segundo o dito popular...) seria um dos peixes mais caros, um petisco que se comia apenas em casas abastadas. Os pobres tinham de contentar-se com o carapau, a sardinha, a tainha do rio e pouco mais, pois só os ricos podiam ter nas suas mesas um prato tão requintado. E, quando arrotavam (o que, nesses tempos, não era considerado – como acontece hoje – um hábito rude e mal educado), era até prestigiante mostrar, através do hálito, que tinham acesso a comidas tão finas. Assim, o facto de alguém arrotar postas de pescada significava mostrar ao povo que era alguém de alto gabarito!

ÁRVORE DAS PATACAS

            Muitos Portugueses emigraram para o Brasil, sobretudo no século XIX, à procura de melhor vida. Alguns, coitados, passaram por lá muito pior do que passavam por cá... mas outros, muitos outros, tiveram melhor sorte, trabalharam esforçadamente e fizeram fortuna. A figura do "Brasileiro", que voltava a Portugal riquíssimo, mandando logo fazer um faustoso palacete e financiando a recuperação da igreja da sua terra, tornou-se uma imagem frequente, sobretudo no Norte do país. Ora a moeda brasileira, durante muitos anos, era a pataca – e havia quem dissesse, por graça, que lá as patacas cresciam nas árvores, e que bastava chegar e abanar uma delas para recolher facilmente uma fortuna. Daí a criação da imagem mítica de uma árvore que, em vez de frutos, dava dinheiro a quem soubesse abaná-la como deve ser... 

ASSENTAR COMO UMA LUVA

            As luvas fizeram parte, durante séculos, do vestuário das pessoas mais requintadas. A partir do séculos XX deixaram, praticamente, de ser usadas, a não ser em certas cerimónias, ou quando fazem parte de uniformes oficiais. (Outros usos mais toscos, para fins profissionais, como as luvas utilizadas profissionalmente por operários, camponeses, etc.,, estão fora destes conceitos). No tempo em que as luvas eram o complemento indispensável das vestimentas elegantes, eram feitas à medida, por especialistas – os luveiros – que se preocupavam para que elas assentassem perfeitamente. Uma luva era, assim, a imagem de tudo o que se ajustava à pessoa que a usava. Era o símbolo delicado daquilo que essa pessoa exibia: o que vestia, o que ostentava, o que fazia parte dela – tudo o que, para ser perfeito, devia assentar-lhe como uma luva

AVE DE MAU AGOIRO

Os sacerdotes de certas religiões antigas tentavam adivinhar o futuro observando as entranhas de aves e outros animais, onde descobriam presságios estranhos. Para isso, usavam-se muito as aves de rapina – e como estas, por sua vez, estão ligadas à morte dos animais que lhes servem de alimento, foi-se criando a ideia de que um abutre, um milhafre, até mesmo um corvo, são aves que anunciam desgraças, portanto são aves de mau agoiro.

AVIS RARA

            Uma "ave rara" é aquela que se distingue de todas as outras aves – e aqui está uma imagem que também se aplica a certas pessoas, as quais, para além da sua beleza, demonstram qualidades raras, como a generosidade e a lealdade. O poeta latino Horácio chamou avis rara a Penélope, a mulher de Ulisses, que ficou longos anos à espera que o seu esposo corresse o mundo, nas suas aventuras (dizem que chegou até Lisboa, cidade a que teria dado o seu primitivo nome, Ulisseia). Penélope resistiu sempre, com coragem e nobreza moral, às investidas daqueles que gostariam de desfrutar da sua beleza – e, já agora, da sua fortuna... Mas ela aguardou, casta e pacientemente, o regresso de Ulisses. E foram as suas virtudes, tão pouco praticadas na época, que levaram o poeta a chamar-lhe avis rara. O conceito estende-se assim a quem demonstra qualidades morais de excepção.

AZOUGADA VEDETA

            Este é antigo, já não se utiliza presentemente, mas foi um dos lugares-comuns que tiveram maior presença nas notícias dos nossos periódicos. Era fatal como o destino (lugar-comum) ele aparecer, quando os jornalistas, particularmente os críticos de Teatro, se referiam à actriz Laura Alves. Não sei quem foi o inventor do qualificativo mas, a partir de certa altura, e durante muitos anos, sempre que havia uma referência á actriz, lá vinha ela, obrigatoriamente, classificada como a azougada vedeta!... O termo é interessante e até definia muito bem a personalidade extrovertida (pelo menos em palco) da Laurinha – mas tornou-se tão repetitivo que acabou por perder o efeito pretendido. Já se sabia de antemão: crítica favorável ou desfavorável (estas eram raras) a uma peça com a Laura Alves tinha obrigatoriamente, de enaltecer o trabalho da azougada vedeta... Era pitoresco, era curioso, até era justo – mas acabou por ser cansativo.

BARCO (LEVAR O) A BOM PORTO
           
De uso generalizado, aplica-se quando se pretende falar de uma tarefa que é bem concluída – não necessariamente, e não exclusivamente, em ambiente marítimo. No entanto, sendo a tradição portuguesa como é, baseada nas aventuras quinhentistas dos Descobrimentos, fica sempre bem introduzir esta alusão "com traje de marujo" num texto jornalístico em que se o pretende (desculpem a expressão plebeia) não meter água...

BATER A BOTA

            A expressão tem um tom vagamente militar, mas não há uma explicação única para o seu significado, que é morrer. Talvez haja uma ligação com o facto de os soldados (pelo menos os antigos, os das guerras convencionais) morrerem em batalha com as botas calçadas. Até houve um filme de Hollywood com este título: "Todos Morreram Calçados", realizado em 1941 por Raoul Walsh, com Errol Flynn no papel do general Custer, comandante do famoso 7º de Cavalaria... O título significava que todos os soldados estavam preparados para enfrentar a morte, devidamente ataviados.

BELEZA ESTONTEANTE

São raros os escritores capazes de se limitarem a descrever a beleza (de uma mulher, de uma flor, de uma paisagem) usando uma palavra simples, uma palavra única, como, por exemplo: Ela era bela. A frase parece-lhes, talvez, pouco expressiva, e acaba, habitualmente, por ser enfeitada com mais um adjectivo laudatório, ou com uma palavra bonita. Em vez de Ela era bela, ou mesmo de Ela era muito bela, acham que fica melhor escrever Ela tinha uma beleza estonteante. Ou qualquer outro qualificativo do mesmo calibre.

BOTA-DE-ELÁSTICO

            Houve tempos em que existia, entre os diversos modelos de calçado masculino (sapatos, botas da atanado, mocassins, sapatos de polimento, tamancos, alpargatas, etc.), um modelo muito cómodo, porque não precisava de atacadores: era a bota-de-elástico. Como este tipo de calçado foi caindo em desuso e só era usado por gente de idade avançada, o nome bota-de-elástico começou a ser aplicado, depreciativamente, a quem tinha ideias antiquadas. Um dos exemplos mais citados pelos inimigos do Estado Novo é o do próprio Salazar, que sofria dos pés e usava umas botas especiais – por isso muita gente se refere a ele como o Botas.

CALA-TE BOCA

            Expressão que algumas pessoas usam para fingir que são discretas e confiáveis, incapazes de revelar segredos e de falar mal de outras pessoas. Na verdade, são muitas vezes pessoas maquiavélicas, que espalham tranquilamente um boato ou uma pequena calúnia, mas que simulam um imediato arrependimento, exclamando Cala-te boca! e tapando-a simbolicamente com a mão, como se as palavras venenosas lhe tivessem, escapado sem querer...

CALCANHAR DE AQUILES

            É um dos lugares-comuns mais citados – e também, creio, um dos mais minuciosamente explicados. É muito conhecida a história. Aquiles foi um dos maiores heróis da antiga Grécia. A sua vida e as suas vitórias foram descritas por Homero na Ilíada. Ainda muito jovem, sua mãe, Tétis, mergulhou-o nas águas sagradas do rio Estige, a fim de o tornar invulnerável às armas inimigas. Aquiles teve uma vida gloriosa, vencendo guerras e protagonizando extraordinárias aventuras. Foi o vencedor da famosa Guerra de Tróia. E ainda teve tempo para se apaixonar por Polixena, filha de Príamo. Porém, quando se preparava para a cerimónia do casamento, no templo de Apolo, foi atingido por uma flecha disparada pelo ciumento Páris, que o atingiu no calcanhar – a única parte do seu corpo não protegida pelas águas milagrosas, pois fora por aí que sua mãe o suspendera ao mergulhá-lo no rio... E é a partir desse episódio que surge a expressão calcanhar de Aquiles, significando o ponto fraco, o lugar sensível de qualquer pessoa ou qualquer acontecimento. Curiosamente, para algumas pessoas mais românticas, o calcanhar de Aquiles está situado... no coração...

CEREJA (A) EM CIMA DO BOLO

Quando tudo já parece terminado, quando um trabalho está concluído, quando já nada parece poder acrescentar-se ao que está feito – um pormenorzinho mais, um suplemento inesperado, uma melhoria, um brinde com o qual não se contava, sugere-nos a comparação com aquela cereja cristalizada que o pasteleiro coloca no cimo de um lindo bolo, para lhe dar um toque final de requinte e de boa apresentação.

CERTO E DETERMINADO

            Pode dizer-se que esta expressão já entra na categoria das tautologias, das redundâncias, pois as duas palavras que a compõem têm o mesmo sentido, e cada uma delas funciona muito bem, sem precisar da outra. Por exemplo: um certo caso, ou um determinado caso, têm o mesmo valor e o mesmo significado. Todavia, há quem ache que falar de um certo e determinado caso torna mais expressiva a frase... e o caso. Talvez. O que é importante é não usar a fórmula repetitivamente, porque, então, lá se vai a expressividade...   

CÉU ESTRELADO
                
Nas cenas românticas nocturnas, os autores gostam muito de colocar estrelinhas, muitas estrelinhas, no céu, para o qual olham, embevecidos, os pares de amantes que, de olhos em alvo, admiram cá de baixo as constelações – isto na época estival, porque, se a cena se passa no Inverno, é por vezes citado um pesadíssimo e triste céu plúmbeo. Mas, voltando ao céu estrelado, a imagem já foi usada tantas vezes que me parece ter perdido todo o efeito pretendido. É por isso que muita gente, quando lê a palavra estrelado, pensa logo, pouco romanticamente, num ovo. 

CHEIRO NAUSEABUNDO

Há cheiros bons – os perfumes – e maus cheiros – o cheiro do lixo, por exemplo, verificando-se o curioso fenómeno de que o lixo, qualquer lixo, sempre cheira da mesma maneira: a lixo... Para dramatizar um cheiro mau, o lugar-comum mais utilizado é este: baptizá-lo de cheiro nauseabundo. Esta palavra significa que o cheiro causa náusea, enjoo, repugnância. Entre os maus cheiros nauseabundos destaca-se o cheiro de gente mal lavada.

CHORAR COMO UMA MADALENA

Parece que Maria Madalena gostava muito de Jesus Cristo. O Dan Brown, autor do Código Da Vinci, atreveu-se mesmo a insinuar, ou melhor, a afirmar, que eles chegaram a formar um casal e a ter descendência... E o Saramago, no Evangelho segundo Jesus Cristo, também escreveu algo a esse respeito, com poucas vírgulas... Não vou meter-me por esses atalhos (lugar-comum), discutindo a veracidade de tais teorias. O que ficou dos relatos bíblicos foi o facto de a Madalena ter chorado copiosamente por causa do mal que viu fazerem ao seu amado Cristo. Daí a frase fácil, segundo a qual toda a mulher que chora, nem que seja por um brinco perdido, tem obrigatoriamente que chorar que nem uma Madalena.

CONTINUA

16/06/2012

LUGARES COMUNS - De "à beira de um ataque de nervos" até "apertar o cinto"

6. LUGARES-COMUNS

O que são lugares-comuns?

São expressões convenientes, introduzidas na escrita, ou na fala, com a intenção de torná-la mais rica – mas que produzem, frequentemente, o efeito contrário. Na verdade, a frase feita, o clichê, o chavão, a frase prêt-à-porter, são expressões que tentam tornar um texto mais pomposo, mas cujo resultado é, muitas vezes, o oposto dessa meritória intenção. O uso de lugares-comuns, o abuso de metáforas, a repetição frequente de frases e citações conhecidas, são truques que dão ao discurso um convencionalismo e um artificialismo que acabam por torná-lo pretensioso e, até, chato.

            Por razões de comodidade e de arrumação do tema, comecei por tentar a classificação dos lugares-comuns segundo os seus usos, separando aqueles que mais frequentemente se encontram na Literatura, na Imprensa ou na Linguagem Popular.

Desisti depressa. Cheguei à conclusão de que essa diferenciação não seria mais que um preciosismo inútil, pois os mesmos lugares-comuns podem ser encontrados em qualquer destas três modalidades de Comunicação – e noutras. Por isso, caro Leitor, achei que não valia a pena separá-los e classificá-los por grupos. Os lugares-comuns, sejam eles usados na Literatura, no Jornalismo, na Rádio, na Televisão ou na Linguagem-de-Mesa-de-Café, coincidem e repetem-se de tal forma, e com tal frequência, que o melhor será limitar-me a apreciá-los, a todos os que couberem neste capítulo, com o mesmo espírito levemente crítico e a mesma condescendência amável que deve aplicar-se a todos os pequenos fenómenos pitorescos, tão característicos das variadas manifestações, escritas ou faladas, da nossa complicada Língua.

Sabe-se de alguns escritores e linguistas que tiveram a intenção de reunir, em obras tão completas quanto possível, a lista dos lugares-comuns existentes nas línguas dos seus respectivos países, e nas épocas em que viveram. Teria sido essa a intenção anunciada, por exemplo, pelo francês Gustave Flaubert, depois repetida pelo brasileiro Machado de Assis. A intenção de qualquer deles, tanto quanto sei, não chegou a concretizar-se.

Em Portugal, Orlando Neves publicou um Dicionário de Expressões Correntes, que inclui, além de muitos lugares-comuns, as mais conhecidas frases feitas e outras expressões muito repetidas na nossa linguagem oral e escrita.

Também Mafalda Lopes da Costa se dedicou a apresentar, diariamente, na RDP Antena 1, uma lista dos mais conhecidos lugares-comuns, cada um deles dando origem a um curto programa de três minutos.

Nas obras literárias, mesmo os mais afamados autores (ora cá estão eles a aparecer: afamados autores é um lugar-comum) utilizam frequentemente, nos seus textos – romances, ensaios, novelas – expressões triviais, fáceis, sem grande originalidade, já usadas muitas vezes, e que, por isso mesmo, contêm ideias condensadas e aproveitadas anteriormente por outros.

Cada um destes lugares-comuns dá-me sempre a sensação de que o autor, naquele momento, estava em crise de criatividade e, por isso, não teve melhor solução do que aplicar uma expressão já conhecida e mil vezes usada (acho que este mil vezes também é um lugar-comum...) para compor o seu texto.

Também os jornalistas, por causa da pressa com que redigem as suas notícias ou comentários, são tentados a usar lugares-comuns, ao relatarem as situações e os factos que descrevem. É natural. Os textos jornalísticos não dão tempo para grandes revisões, há que produzi-los depressa e enviá-los rapidamente para a paginação do jornal ou da revista, porque há prazos a cumprir e edições a sair.
           
*
Apresento apenas alguns (repito: apenas alguns) dos lugares-comuns que se encontram, a toda a hora, em textos de jornais e revistas, em livros de autores nacionais, em livros traduzidos (porque o fenómeno é universal e ataca escritores e tradutores de todo o mundo literário conhecido) – e, também, nas falas de locutores de Rádio e Televisão, em legendas, em cartazes, em anúncios, etc.

Claro que, além dos que são aqui citados, existem muitos outros lugares-comuns, assim como uma quantidade infindável de outras expressões do mesmo tipo – mas ficam neste capítulo, apenas, alguns daqueles que surgem mais frequentemente. Escolhi-os entre os que me parecem mais pitorescos, ou que são citados de forma mais insólita. A minha intenção é muito mais a de brincar com eles, e muito menos a de explicar as suas origens.



Este trabalho consiste, portanto, numa tentativa para abordar o tema de forma amável e simpática. Não quero parecer zangado com quem utiliza lugares-comuns, era só o que faltava! Pretendo somente levar o barco a bom porto (lugar-comum), navegando nas águas do pitoresco, com a explicação, mais ou menos ligeira, de cada frase ou expressão, sem me preocupar muito com o rigor da sua análise gramatical ou histórica, porque não é este o lugar para isso.

Assim, caro Leitor, saiba que cada lugar-comum será aqui interpretado de acordo com a minha visão pessoal sobre a sua origem e a sua aplicação actual – mas realçando particularmente a sua faceta cómica.



À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS

É uma das expressões que os jornalistas adoram empregar, quando lhes falta a inspiração e o talento para encontrar outra melhor, que descreva uma situação especialmente complicada. Nasceu, creio eu, do título de um filme de Pedro Almodovar (Mulheres à beira de um ataque de nervos), mas passou rapidamente a servir, não só para definir o nervosismo das mulheres, mas também o dos homens em geral, dos políticos em particular, dos automobilistas e dos peões, dos polícias e dos ladrões, dos malucos e dos psiquiatras – enfim, passou a ser uma frase conveniente para descrever pessoas e situações complicadas. Só que se tornou tão repetitiva que consegue pôr os leitores, que se deparam tantas vezes com ela... à beira de um ataque de nervos... 

A CASCAIS, UMA VEZ E NUNCA MAIS

            No tempo da Monarquia, os nossos Reis passavam férias em Cascais, o que arrastava obrigatoriamente para aquela vila os nobres, os burgueses ricos e todas as pessoas que aspiravam a confundir-se com a Alta Sociedade... A reunião de tanta gente endinheirada provocava, evidentemente, a subida dos preços de tudo quanto se vendia por ali. Assim, os mais pobres, ou os mais remediados, que iam a Cascais para se misturarem com os ricos, gastavam mais dinheiro do que os seus orçamentos permitiam, e vinham de lá com a promessa de nunca mais voltarem a uma terra onde tudo era tão caro... Daí a expressão – a Cascais, uma vez e nunca mais! – reflectindo a desilusão daqueles que queriam misturar-se com os ricos, pertencendo à classe dos pelintras.

A FACA E O QUEIJO NA MÃO
           
Quem tem numa mão um queijo e, na outra, uma faca para o cortar, está, evidentemente, em vantagem sobre os outros convivas sentados à volta da mesa. Isto porque tem o privilégio de cortar as doses de queijo como bem quiser, dando a cada um dos seus preferidos uma fatia maior e, àqueles de quem não gosta, uma fatia fininha... ou apenas a casca! Assim, em sentido figurado, ter a faca e o queijo na mão significa mandar, dominar, ter o poder.

À MATROCA

            Diz-se de alguém ou alguma coisa desorganizada, sem rumo, sem orientação. Em linguagem de marinheiros, um navio anda à matroca quando anda sem rumo. Uma expressão equivalente, mais popular, é ao deus dará.

A PENSAR MORREU UM BURRO

            A história vem de um estudo muito citado, que foi elaborado pelo teólogo Jean Buridan, na Idade Média; mas já o velho Aristóteles tinha reflectido sobre o mesmo assunto, no seu tempo. Parece que um certo burro, perante duas tigelas, uma com água e outra com aveia, ficou a pensar longamente se havia de começar por matar a sede ou por matar a fome... Tanto pensou, que acabou por morrer, coitado, sem ter provado nem o líquido nem o sólido. Muitas pessoas se debatem com dúvidas semelhantes – e tanto pensam que acabam por não fazer nada – como o burro!

A PENTE FINO

            Esta expressão transporta-nos a tempos antigos, provincianos, quando a higiene não era uma prioridade, e as cabeleiras, especialmente as femininas, serviam, por vezes, de alojamento a uns bichinhos            incómodos, que eram muito difíceis de eliminar. Então, as mães extremosas passavam horas a pentear as longas madeixas das filhas, passando e repassando, com uns pentes especiais, de dentes muito apertados, a fim de as libertar das lêndeas, os ovos dos piolhos que ali se instalavam e que faziam muita comichão... Desses tempos antigos, que os champôs vieram (felizmente!) modificar, ficou a ideia de que só com um pente fino é possível espiolhar mistérios pequeninos, desses que também fazem comichão, não nos couros cabeludos, mas nas consciências.

A VER NAVIOS

            A origem desta expressão está ligada à cidade de Lisboa, particularmente na versão a ver navios no alto de Santa Catarina. Aquele local privilegiado da capital permite ver claramente os navios que entram no Tejo ou saem a barra, pelo que, em tempos antigos, quando não havia muitas distracções, os lisboetas iam para ali passar o tempo, a ver o trânsito dos barcos no rio... No tempo das descobertas, também era dali que se viam partir ou chegar as caravelas que participavam nas grandes aventuras desses tempos, e que traziam as riquezas das Índias ou do Brasil. Há ainda outra interpretação: depois de Portugal ter ficado sob o domínio estrangeiro, os saudosistas esperavam ver surgir, numa manhã de nevoeiro, o desejado D. Sebastião, e aquele era o lugar indicado para o ver aparecer no horizonte... Só que, como isso nunca mais acontecia, a expressão a ver navios passou a significar algo que muito se esperou mas nunca se concretizou. E o Alto de Santa Catarina continuou, sempre, a ter muitos mirones... 

AD HOC

É uma expressão habitualmente mal aplicada, pois, em vez de significar ao acaso (que é o sentido que costuma ser-lhe atribuído) deve traduzir-se com o significado para isso, para esse fim, com essa função. Por exemplo: uma "comissão ad hoc" é constituída com um fim determinado. Mas também se usa para designar uma prova de aptidão de uma pessoa que não tem habilitações académicas adequadas, mas tem conhecimentos práticos suficientes para se candidatar a um curso superior. É claro que isto se passa em teoria – porque, na prática, muitos alunos ascenderam a tais cursos sendo quase analfabetos, o que muito contribuiu para o descrédito da expressão que, nesses casos, passou a significar qualquer coisa parecida com à balda...  

ADVOGADO DO DIABO

            Nos processos de canonização, o Vaticano nomeia sempre um experiente teólogo para o cargo de Advogatus Dei (o Advogado de Deus), que apresenta e defende os milagres e outros argumentos a favor do candidato a santo – e, por outro lado, nomeia o Advogatus Diaboli (Advogado do Diabo), outro teólogo encarregado de sublinhar os pontos fracos ou duvidosos do processo de canonização. É evidente que este perde normalmente a sua causa em favor do primeiro, pois toda a gente sabe que nenhum destes processos é iniciado sem haver um mínimo de certeza prévia quanto ao facto de o novo santo ser mesmo reconhecido...

AFAMADO AUTOR

         Nas referências que se fazem a um escritor mais ou menos conhecido, é quase obrigatório usar esta forma – o afamado autor – ou qualquer outra do mesmo calibre, como o prestigiado romancista, o célebre literato, o famoso homem de letras, o insigne escritor, ou outra com valor laudatório semelhante. Isto deve vir dos tempos em que havia tantos analfabetos que uma pessoa que soubesse escrever se distinguia de todas as outras... Assim, ainda hoje, até parece que é "proibido" falar de uma pessoa que escreve, sem que seja enfeitada com um adjectivo que a distinga das pessoas normais...

AGRADAR A GREGOS E A TROIANOS

            A antiquíssima Guerra de Tróia, demorada e complicada, começou com o rapto da bela Helena, esposa do rei Menelau, e arrastou-se durante anos, com episódios trágicos e cómicos (entre estes, o do famoso cavalo de madeira, através do qual os invasores conseguiram ser introduzidos na cidade, acabando por conquistá-la). A origem desta frase está, provavelmente, na própria Helena, que foi tão requestada e admirada por uns e outros, que seria ela o melhor símbolo de alguém que agradava a toda a gente – e é este, afinal, o sentido da expressão.

AGUARDAR NERVOSAMENTE

            Rara é a personagem que aguarda seja o que for (uma visita, um autocarro, um comboio, um amante) sem uma grande ansiedade e uma grande expectativa. A narrativa dessa espera é habitualmente ilustrada com a informação de que a pessoa aguarda nervosamente... Na verdade, sabe-se que ninguém gosta de esperar seja pelo que for, ou seja por quem for. Por isso, compreende-se essa atitude, que introduz maior dramatismo no episódio que se descreve... Existe uma variante de sentido contrário: a daquelas pessoas que conseguem aguardar serenamente. Mas são muito poucas.
ÁGUAS DE BACALHAU

            Quando os nossos barcos bacalhoeiros iam para a Terra Nova, aconteciam por vezes acidentes: um ou outro naufragava, alguns homens morriam... Isto é, ficavam lá por essas águas frias. Daí a expressão, que significa, genericamente, ficar sem efeito, desaparecer. Também as águas em que se demolha o bacalhau salgado, preparando-o para ser cozinhado, são, normalmente, para deitar fora. Enfim, tudo desperdícios...


AMARGA DECEPÇÃO

Uma decepção, seja ela qual for, é sempre uma coisa aborrecida. Uma pessoa pode ficar muito decepcionada (por exemplo) por não ter obtido os favores, do ponto de vista amoroso, da pessoa que ama. É decepcionante – e deixa uma espécie de amargo de boca (cá está outro lugar-comum, aparentado com o primeiro), o qual é difícil de eliminar, mesmo com pastilhas antiacidez. Por isso, em Literatura, usa-se muito este adjectivo "amargo", que descreve uma sensação física, aplicando-a, por analogia, à sensação psicológica causada por uma frustração qualquer.

AMIGOS DE PENICHE

            Quando morreu o Cardeal D. Henrique e foi preciso encontrar um sucessor para o trono de Portugal, defrontaram-se vários netos de D. Manuel I com o rei espanhol Filipe II. Entre os candidatos estava D. António, o Prior do Crato, que chegou a ser aclamado rei pelo povo, reinando durante breves dias; mas, como tinha sido considerado ilegítimo, acabaria por perder a favor do espanhol, não sem antes fazer várias tentativas para se manter no trono. Numa dessas tentativas, tropas inglesas, enviadas pela rainha Isabel I, que o apoiava, desembarcaram em Peniche e marcharam até à capital. Mas, como eram constituídas por mercenários, deixaram atrás de si uma onda de destruição, roubos e saques, até serem obrigadas a regressar a Inglaterra. Ora, como é evidente, "amigos" destes não eram muito bem-vindos e, por isso, quando se quer falar de amizades falsas ou dispensáveis, usa-se a expressão amigos de Peniche – com toda a injustiça que isto representa para os habitantes actuais daquela terra...

AMPLAS LIBERDADES

            A Liberdade, em princípio, só pode assumir dois aspectos: ou existe, ou não existe – e pronto. Não há liberdades completas ou incompletas. Isto em teoria, porque, na prática, já se sabe qua as coisas são mais complicadas... Na Política, surgiu uma espécie de moda, que consiste em reclamar as mais amplas liberdades, quando não se tem o poder. Ou em prometê-las, quando se deseja ascender a ele. Funciona como slogan em manifestações e discursos, mas a sua repetição exaustiva tirou-lhe força e significado, até pelo facto de os seus autores serem geralmente suspeitos de não coincidirem com os mais estremados praticantes daquilo que tão sonoramente reivindicam.

AMPLO DEBATE

            Expressão muito usada nos meios políticos para designar uma discussão em que se trocam opiniões contraditórias. Curiosamente, quanto mais amplo é o debate, mais improvável se torna que ele conduza a uma conclusão aproveitável. Normalmente, aqueles que advogam um amplo debate só o fazem quando prevêem uma aceitação favorável para as ideias que nele pretendem apresentar.

ANDAR À GANDAIA

As pessoas pobres, em todo o mundo, vasculham o lixo, à procura de qualquer coisa que lhes possa ser útil, para usar ou para vender. Como não se trata de um "emprego regular", aqueles que não passam por essas necessidades têm tendência a olhar tais indivíduos com ar superior, considerando-os simplesmente vagabundos e mandriões. Por isso, a expressão andar à gandaia, isto é, andar à busca de coisas aparentemente inúteis, e sem ter um trabalho fixo, passou a ser usada para definir quem anda à boa vida. O que, muitas vezes, é uma injustiça, porque a situação pode até ser provocada pelo facto de se estar a passar por uma fase de má vida.

ANDAR AO DEUS-DARÁ
           
            Quem precisa de auxílio para viver, e é crente, acredita que Deus, misericordiosamente, lhe dará um dia aquilo de que precisa... Mas houve um episódio real, passado no Brasil, em Pernambuco, no século XVIII, com um rico negociante chamado Manual Álvares, que justifica a frase. Era ele tão generoso que adiantava do seu bolso o salário dos soldados, quando estes não recebiam o seu pré... E o bom homem, quando lhe perguntavam se algum dia seria pago e lhe dariam o dinheiro que abonava, dizia sempre: "Ora, Deus dará!" Assim, tornou-se habitual dizer-se que as pessoas iam "ao Deus dará", quando precisavam de dinheiro.

AO FIM E AO CABO

            A expressão não é mais do que um pleonasmo propositado, com a intenção de a tornar mais enfática. Ao cabo significa o mesmo que ao fim. Portanto, a repetição serve, apenas, para lhe dar mais força.

APERTAR O CINTO

            Ora aqui está uma expressão que pretende ser simbólica – mas que a realidade dos factos pode acabar por transformar numa situação concreta. Fala-se em apertar o cinto quando se pede a alguém que prescinda de algo a que estava habituado – por exemplo, que deixe de comer ou de beber certas coisas boas e agradáveis, por falta de possibilidade de as comprar... O simbolismo pode então tornar-se realidade, e da teoria pode passar-se à prática. Isto é, quando o dinheiro é pouco, a frase pode ter de tomar-se à letra, e ser mesmo obrigatório fazer o tal furo suplementar no cinto, para este ficar mais apertado, já que a pessoa está realmente a ficar mais magra

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