29/11/2012

E SE O 25 DE ABRIL TIVESSE FALHADO? (16)


O trágico falecimento da nossa Presidente do Conselho – e os inesperados episódios que se lhe seguiram.

Nesse dia, Dona Maria acordou cedo, como de costume, e preparou-se para mais um dia de trabalho. As suas ingentes tarefas de Presidente do Conselho de Ministros e de Ministra de Todas as Pastas exigiam dela um esforço muito grande. Por isso, a sua saúde ressentia-se, como é natural – e, neste dia, não resistiu mais. Ainda tomou o pequeno-almoço, leu o Diário do Governo, como era seu costume matinal, mas, logo a seguir, sentiu-se mal e... pumba!... Morreu.

Evitarei os pormenores, por uma questão de respeito. Direi apenas que Sua Excelência faleceu serenamente ("deu-lhe uma coisa", como costuma dizer o Bom Povo), deixando o País, uma vez mais, órfão. Com uma certa liberdade de expressão poética, pode até dizer-se "órfão de pai e mãe"!...

Na cidadela de Cascais, o (ainda) Senhor Presidente da República, o venerando Contra-Almirante Américo de Deus Rodrigues Thomaz (sim, ainda estava vivo, e ainda era Presidente! nunca ninguém se tinha lembrado de lhe sugerir que podia reformar-se) tomou conhecimento do falecimento de Dona Maria – e, com o dinamismo que lhe era reconhecido desde sempre, exclamou:

- Isto é que é uma chatice! Lá tenho que arranjar um substituto!

Sua esposa, Dona Gertrudes, conduziu para junto dele a sua cadeirinha de rodas eléctrica e acalmou-o:

- Tem paciência, Américo. Já passaste por situações semelhantes e sempre te safaste brilhantemente. O mesmo há-de acontecer desta vez!

- Mas... quem é que eu vou encontrar agora para preencher o cargo? Os antigos pretendentes, ou já bateram as botas, ou estão tão bem instalados na vida que não vão querer o lugar!

- Lá isso é verdade...

- Tinha-me lembrado daquele rapaz... como é que ele se chamava... O Sá Carneiro, que parece que não era tonto... Mas, logo por azar, dele e nosso, morreu num desastre de avião, o ano passado...

- Ai, esse não! Esse não podia ser. Era separado e vivia com uma sueca...

E lá ficaram, naquele impasse

 Eis senão quando... toca o telefone! Dona Gertrudes foi atender. Mas, ao escutar a voz do outro lado do fio, passou imediatamente o telefone ao marido.

- É para ti.

- Quem é? Eu agora não estou com pachorra para telefonemas.

- Acho melhor atenderes. É o Tenreiro.

- Esse chato?! O que é que ele quer?

- Não sei, mas olha que ele está muito excitado...

- Deixa cá ver. – Pegou no auscultador e falou: - Eu agora não tenho tempo para conversas, por isso seja rápido.

Mas, poucos segundos depois, a sua expressão mudava dramaticamente. O que ouvia, naquele telefonema, era algo absolutamente extraordinário! E a sua reacção traduzia-se numa série de exclamações um pouco tontas.

- Ó cum caraças! Não me diga! Não acredito! Cum caraças! Não acredito! Não me diga!

Esteve naquilo durante largos minutos. Até que largou o telefone, colocando-o, com cuidados excessivos, no descanso. Respirou fundo, passou a mão pela calva e disse:

- Estamos tramados!

Dona Gertrudes, inquieta, interpelou-o:

- Ó Américo, o que é que se passa? Fala, homem!

E o Grande Comandante, sentando-se pesadamente num sofá, não havia meio de sair do seu estupor.

- Eu não acredito! Eu não quero acreditar!
                                                  
- Mas... o que foi, Américo? Que se passa?

Depois de pigarrear para aclarar a voz, o estupefacto Contra-Almirante acabou por pronunciar as palavras que iriam provoca o maior dos espantos – primeiro ali, na residência presidencial, depois, mais tarde, quando a novidade se espalhou, por todo o país.

- Se bem percebi.., o  Salazar está de volta!

- O quê?! – exclamou sua digníssima esposa.

- É assim mesmo! O Tenreiro falou duma forma um bocado esquisita, por meias palavras... Eu não sei se ouvi correctamente... Ele deu-me a entender que o Salazar... Enfim, não entendi lá muito bem... mas acho que ele disse que o Salazar está vivo e vai voltar ao seu posto!

Doma Gertrudes desmaiou!



A extraordinária explicação para o fenómeno! Será que Salazar voltou do Além e vai retomar as suas antigas funções, com mais alma e mais genica do que nunca? O mistério adensa-se...

O espanto era enorme – e não era caso para menos. O Almirante Tenreiro não tinha sido claro, no sua comunicação, toda cheia de meias palavras, de sugestões, de insinuações... Parecia querer dar a entender que o nosso querido Professor Doutor António de Oliveira Salazar estava de volta... Mas como? Seria possível? Iríamos vê-lo de novo, vivo e enérgico como sempre?

É certo que o Senhor Professor tinha sido protagonista de um episódio recente, absolutamente inesperado para muita gente, mas não para mim, que nunca duvidei da perenidade da sua memória e da recordação da sua importantíssimas figura… Foi o caso de um curioso Concurso da Televisão estatal, em que se pretendia eleger as figuras mais queridas dos Portugueses... Ora bem quem ganhou esse concurso?... Adivinharam! Sua Excelência o Senhor Professor Doutor António de Oliveira Salazar! E por larga margem! Daí que todos nós, os verdadeiros patriotas, tivéssemos ficado numa euforia incontida, perante essa confirmação da preferência dos Portugueses...

Agora, porém, punha-se uma dúvida: estaria ele em condições para reassumir as suas antigas funções, conduzindo a nossa Bem Amada Pátria para os rectos caminhos à direita que sempre fizeram dela a terra admirável e invejada que, há mais de oito séculos (na verdade, já vai para nove) é a inveja do mundo inteiro, pela sua Paz, pelo sua Cultura, pelo seu Desenvolvimento, pelo seu contributo para a harmonia do Mundo – isto para não falar do seu sol e doutros atractivos nacionais, como o Fado, o bacalhau-à-Brás, etc.?...

Como teria sido possível tal milagre? O Almirante Henrique Tenreiro prometeu explicar, ao venerando Chefe de Estado, nesse mesmo dia, em rápida reunião privada, como tudo acontecera. Dentro em breve se conheceriam então os pormenores do caso – mas, entretanto, o zunzum já se espalhara pelos corredores do palácio presidencial. Era inevitável!... As serviçais eram, como de costume, as mais lestas a espalhar o que poderia não passar de um boato, mas que rapidamente chegou às orelhas de vários jornalistas, de alguns políticos e de outros fofoqueiros profissionais.., Para muita gente, o caso significaria, se fosse confirmado, um extraordinário acontecimento, com aspectos positivos para muitos, mas que podiam ser bastante negativos para outros, conforme tivessem sido dos que, dantes, costumavam engraxar as botas e o ego do Senhor Doutor ou, pelo contrário, tivessem criticado a sua governação. Assim, pelos cafés e pelos corredores das redacções e dos ministérios, bichanava-se nervosamente a novidade:

- Então já sabes? Parece que o Salazar vai voltar a governar!

- Não me digas! Mas esse sacana não estava morto?

 - Vê lá como falas! Se te ouvem falar assim de Sua Excelência ainda vais parar a Caxias, e não é para tomares banho na praia!...

- Mas... como é possível? Eu até assisti ao enterro dele! E ele estava mesmo com cara de morto!

- Sei lá! Isto, hoje em dia, vê-se cada coisa...Se não é milagre, pode ser que ele tenha ressuscitado devido aos avanços da Ciência...

- Para mim, o pior é que ele, se estiver mesmo vivo, vai-se ver aflito para voltar ao trabalho antigo...

- Ora essa! Com o treino que ele teve, em tantos anos de Presidente do Conselho, não me digas que já não sabe governar o país!

- Não é o país, é a casa! Com o país entende-se ele bem... Mas a casa! Como é que ele vai governar a casa dele, agora que já não tem lá a Dona Maria para lhe fazer os jantarinhos e lhe ajeitar a manta nos joelhos?

- Talvez também ela tenha ressuscitado...

- Talvez...

Mas não. A Dona Maria estava completa e definitivamente falecida, coitadinha. Daí não poderia vir nenhuma ajuda, idêntica à que fora prestada, durante tantas décadas, ao Senhor Doutor. Só este, na verdade, estaria então de volta à vida, ao país e ao seu posto. Mas... estaria mesmo? Seria isso que o Almirante Tenreiro vinha explicar, com ares muito importantes e muito misteriosos, na tal reunião que ele pretendera secreta – só que, ao chegar para o encontro com o venerando Senhor Presidente, achou-se cercado por uma multidão excitadíssima, jornalistas de microfones e gravadores em punho, todos aos gritos, exigindo notícias, esclarecimentos, explicações.

- Olha que maçada! – reagiu o senhor Contra-Almirante Américo de Deus Rodrigues Thomaz, vendo aquela barafunda à volta do outro Almirante. Mas este até parecia muito contente com tanta agitação. É que ele sempre gostara muito de estar empoleirado em lugares de destaque, em que a sua vaidadezinha pudesse vir ao de cima e em que tivesse oportunidade para brilhar. Por isso, improvisou ali mesmo, à porta do palácio presidencial, uma rápida conferência de imprensa, em que bradou, em voz tronante, estas palavras misteriosas:

- Sim, está de volta aquela figura que todos amamos, que todos respeitamos e que todos seguimos! Fui eu que o fiz voltar do Além! Eu!... E mais não digo!

E enfiou rapidamente para o interior, deixando toda aquela multidão em pulgas.
 
O encontro com Sua Excelência o Senhor Contra-Almirante Américo de Deus Rodrigues Thomaz realizava-se, a pedido do Senhor Almirante Henrique Tenreiro, numa sala discreta do palácio, preparada para reuniões secretas, com as paredes à prova de som. Por isso, enquanto os dois importantes Senhores estiveram reunidos, foram completamente infrutíferos os esforços de algumas pessoas curiosas, que tentaram escutar o teor da conversa, colando as orelhas à grossa porta blindada e insonorizada. Nem um murmúrio chegava cá fora! Pelo contrário, no interior da sala, o tom da conversa era bastante alterado.

- Explique-se lá, faça favor! – pedia, nervoso, o Senhor Presidente. - Eu não percebi completamente o que você me disse pelo telefone... Então o Salazar...

- Um momento, já lá vamos, à explicação. – retrucou o Almirante Tenreiro. – Mas é preciso que fique bem claro que foi graças à minha iniciativa, à minha coragem, ao meu patriotismo, à minha intenção de servir generosamente a nossa Pátria, que foi possível chegar à extraordinária solução para os nossos problemas a qual demonstrará, quando for universalmente conhecida, não só a minha eterna fidelidade aos sãos princípios que deram origem ao nosso Estado Novo, como também a superior inteligência com que todo o processo foi por mim conduzido.

- Ó homem, acabe lá com as loas e os elogios a si mesmo! Já todos sabemos, há muito tempo, que você é um vaidoso e um convencido! Desembuche duma vez! O que é que se passa?

- Passa-se que eu tive a genial ideia de aproveitar os recursos técnicos que estão à minha disposição, aplicando-os, de forma talvez inesperada, mas muito eficiente, à preservação do nosso Regime... preservando, ao mesmo tempo, quem o corporizou durante tantos e tantos anos!

- Quer você dizer... o quê, concretamente?

- Ora escute. Como sabe, entre as várias funções e competências que eu conquistei, na minha vida política, conta-se o domínio absoluto sobre tudo o que tem a ver com as Pescas...

- Sim, toda a gente sabe disso.

- Pois é. Por alguma razão sou conhecido, em todo o país, como o "Patrão das Pescas"!

Nada mais verdadeiro. Aquele conhecido homem do mar fizera uma carreira notável, na Marinha, mas também em terra, em que rapara todos os tachos possíveis, relacionados com peixes, numa verdadeira caldeirada de títulos e cargos. Dirigira o Grémio do Bacalhau... Em 1957 criou a Gelmar... Em 1966 fez inaugurar a Docapesca... Já tinha criado o SAPP, Serviço de Abastecimento do Peixe ao País, que ficou famoso pelas suas carrinhas de distribuição e venda de peixe, muito pitorescas, enfeitadas com imagens de peixinhos todos coloridos... Conseguira abarcar, como delegado do Governo, todos os lugares relacionados com os peixes, desde a sardinha ao bacalhau. Enfim, criara um círculo de actividades que era uma verdadeira pescadinha-de-rabo-na-boca...

-Ora bem – explicava ele. – Entre as minhas trabalhosas tarefas, conta-se a gestão de um sector que é essencial, e está relacionado com todos aqueles em que exerço as minhas importantes actividades.

- E que é...

- E que é o sector da conservação do pescado. Como sabe, não basta pescar o bacalhauzinho, o carapau, o cachucho e todos os outros peixes com que eu contribuo para a alimentação do nosso povo. É preciso que esse peixe não se estrague, antes de chegar às frigideiras ou às panelas das boas donas de casa portuguesas...

- Sim, sim, pois claro. E isso quer dizer o quê?

- Quer dizer que uma das minhas iniciativas, da qual, aliás, tenho muito orgulho, foi a criação dos modernos Armazéns Frigoríficos, onde o rico peixinho é armazenado e conservado até ao momento de chegar aos nossos mercados.

- Sim, já sei! – exclamou o Senhor Presidente, cada vez mais impaciente. – Mas que tem isso a ver com...

- Tem tudo a ver! Sim, tem tudo a ver, e já vai perceber porquê...

Sempre com os ares muito importantes de quem se considera, a si mesmo, uma figura de altíssimo e merecido prestígio, o Senhor Almirante Tenreiro passou então a uma série de explicações científicas, embora com o cuidado de as envolver num palavreado bastante simplório, pois tinha bem a noção de que o Venerando Chefe do Estado já não estava em idade de interpretar conceitos muito elaborados, do ponto de vista científico e não só. Por isso, teve a preocupação de usar palavras e exemplos que estivessem ao alcance do seu cérebro um pouco encortiçado por tantos anos de tarefas repetitivas, como as inaugurações de fontanários e outras semelhantes. E assim, procurou começar por um exemplo que fosse suficientemente demonstrativo daquilo que pretendia anunciar.

- O senhor Presidente deve saber que uma das melhores formas de comer a bela pescada do alto é consumi-la depois de congelada!

- Mas... A que propósito é que...

- Um momento. A pescada, quando é pescada... e daí, até, a antiga expressão popular que diz que ela, "antes de ser, já o era"...não sei se está a ver o sentido... a pescada é pescada, por isso, antes de ter o nome de pescada, já era... pescada de nome...

- Ó homem, acabe lá com essas conversas, que são como o peixe, que ao fim de algum tempo começa a cheirar mal!

- Exactamente! A pescada, para não cheirar mal, assim que é pescada, é levada para o frigorífico, onde se manterá em óptimas condições, não só de higiene, como de conservação das suas características de peixe saboroso e delicado! Aliás, as donas de casa e as cozinheiras mais competentes sabem que uma boa posta de pescada que tenha sido congelada, ao ser cozinhada e servida numa requintada refeição, se apresenta em lascas de belíssimo aspecto, que...

- Irra! Mas você vem dar-me notícias políticas, ou receitas de culinária?

- Tem razão, Senhor Presidente, deixei-me levar pelo entusiasmo que ponho em tudo aquilo que tem a ver com as minhas actividades ligadas ao mar e aos peixes! Mas há uma certa coerência entre aquilo que estava a dizer-lhe a respeito da pescada e aquilo que vou dizer-lhe, a respeito do Senhor Professor Salazar...

- Essa agora! 

- Sim. É que, sabendo eu das virtudes da congelação aplicadas ao pescado, tive a intuição de que as mesmas virtudes poderiam ser aproveitadas, se fossem aplicadas a certas pessoas...

- O quê?! Você está a querer dizer-me que...

- Sim, isso mesmo em que está a pensar. Congelei o Salazar!

Se uma bomba tivesse rebentado ali mesmo, naquela sala do palácio presidencial, o efeito não teria sido tão... bombástico! E o Senhor Almirante Tenreiro continuava, visivelmente orgulhoso, a explicar a sua iniciativa.

- Acontece que eu me interesso apaixonadamente por estes assuntos científicos. Por isso, tratei de ler exaustivamente o que existe publicado sobre a conservação através do frio, no sentido de dar ainda maior uso e utilidade aos meus Armazéns Frigoríficos. E foi assim que encontrei um texto revelador daquilo que a Ciência actual põe à nossa disposição, neste campo...

- E leu esse texto onde? Num Tratado de Biologia Avançada?

- Não. Nas Selecções do Reader's Digest...

- Ah...

- Vinha lá tudo muito bem explicado. Hoje em dia, os avanços da Ciência permitem conservar um corpo humano, depois de falecido, num estado de congelação prolongado, Chama-se a isso "hipotermia terapêutica".

            - As coisas que se inventam, hoje em dia! Só de pensar que até já existem telefones sem aquela rodinha com os números...

            - Pois é, Senhor Presidente. Eu alimentei a esperança de que, passados alguns anos, estas novas descobertas nos campos da Medicina, da Biologia e da Tecnologia das Arcas Frigoríficas permitissem fazer voltar à vida uma individualidade que toda a Humanidade gostaria de conservar para sempre no seu seio, pelos benefícios que a sua presença pode trazer às nossas vidas!

- E então, pegou no Salazar e...

- Não foi assim tão simples como isso! Como é evidente, teve que ser tudo feito no maior dos segredos... Tive, é claro, a colaboração de alguns Médicos, bem como de Agentes Funerários, da PIDE e de outros patriotas, que juraram guardar segredo, sob pena de também serem metidos nos Armazéns Frigoríficos – mas vivos!... Até hoje, ninguém abriu o bico. A operação foi mantida no mais completo secretismo! Mas quem orientou tudo fui eu! Eu é que fui da ideia!

- Está bem, pronto, ninguém lhe tira os louros... Mas... o Senhor Professor Oliveira Salazar está mesmo... até me arrepio ao dizer isto... está mesmo vivo?...

- Bem, disso não há a certeza absoluta. Para já, está a descongelar.

- Ah!

- Sim, ele saiu do Frigorífico num bloco de gelo com dois metros de altura por um metro de largura... Mandei pôr uns aquecedores eléctricos à volta dele, e agora há que esperar que tudo aquilo descongele...

- Então não há a certeza de que... enfim... de que ele volte realmente à vida...?

- Pois não. Já lá tenho a equipa médica à espera, a ver o que acontece. Mas tenho uma grande esperança de obter bons resultados e de ver o nosso Presidente do Conselho de novo em funções, dentro de pouco tempo.

- Bem, por um lado não era má ideia, porque eu tenho estado aqui muito atrapalhado, sem saber quem hei-de pôr nesse lugar... Desde aquela frustrada tentativa de revolução, no já distante ano de 1974, as forças do reviralho têm tentado repetidamente fazer aquilo a que chamam "um novo 25 de Abril"...

- Felizmente sem êxito!

- Claro. Mas eles andam por aí, esses malditos, sempre a minar. Era bom acabar com eles de uma vez por todas, para podermos viver em paz. E, para isso, o Doutor Salazar dava muito jeito...

- Pois bem, agora é só esperar mais uns dias, ou talvez umas horas, até o gelo derreter por completo. Só então podemos ter a certeza de estarmos com sorte, ou não... Eu venho cá dar as últimas informações, assim que houver novidades.

O clima ajudava, naquele Verão ameno de 1981, o calor apertava, o que, certamente, contribuiria para uma descongelação mais rápida do bloco de gelo onde repousava serenamente o nosso Bem Amado e nunca olvidado Senhor Presidente do Conselho de Ministros, Senhor Professor Doutor António de Oliveira Salazar... Ai que gozo, este de voltar a escrever assim, respeitosamente, o seu nome, com todas as letras! A expectativa era enorme... Eu soubera deste desenvolvimento da situação através de uma prima que tinha uma vizinha que era cunhada de um irmão de um compadre de um empregado dos Armazéns Frigoríficos onde, a par com os bacalhaus, os chocos e outros produtos do mar, se tinha conservado, durante tantos anos, aquela figura ímpar da nossa História, subtraída secretamente do seu lugar de repouso e para ali trazida com a patriótica intenção de a preservar eternamente, para bem de todos nós!

Surgia agora a dúvida: seria possível reanimar aquele corpo frio e fazê-lo voltar à vida? E mais: estaria o seu privilegiado cérebro em condições de continuar a governar o país, com o brilho da sua inteligência e a clareza das suas decisões? Eis as interrogações que se punham, naquele momento dramático...

Era preciso esperar.

TERMINA NA PRÓXIMA SEGUNDA-FEIRA


26/11/2012

E SE O 25 DE ABRIL TIVESSE FALHADO? (15)


E lá fora? O que ia pelo Mundo, nesse ano de 1974 e nos seguintes, em comparação com o que "não ia" por cá...

Em 1974, e em contraste com a nossa tranquilidade interna, verificavam-se, lá por fora, muitos acontecimentos, uns bons, outras maus, porém nenhuma deles capaz de desviar a nossa sábia Governante do trilho que havia traçado para a sua governação. Não era muita a informação que nos chegava, desse imenso universo à nossa volta, dada a cuidadosa filtragem que lhe era aplicada – mas era bem melhor assim, para não sermos perturbados pelas desgraças desse mundo louco, em que se vive uma vida desregrada e frenética, em contraste com a nossa vida calma, tranquila e sem sobressaltos, tão bem retratada nessa lindíssima canção intitulada "Uma Casa Portuguesa", em que se fala da "alegria da pobreza", das nossas casinhas com "quatro paredes caiadas", onde se sente "um cheirinho a alecrim", e onde há "pão e vinho sobre a mesa", entre outras imagens bonitas que são o retrato vivo da nossa felicidade...

Sim, lá por esse mundo iam acontecendo coisas muito complicadas, como, por exemplo, as que constam desta impressionante lista de mudanças, a nível político, em diversos países do mundo:

Nos Estados Unidos da América, o presidente Nixon foi atingido, nesse ano de 1974, por uma grande escandaleira, o chamado Processo Watergate, do qual, para ser franco, nunca percebi lá muito bem o significado. O que é certo é que o presidente da mais poderosa nação do mundo foi vergonhosamente posto no olho da rua, sendo substituído pelo vice-presidente Gerald Ford, e os jornais trataram-no muito mal, chamando-lhe os piores nomes que se possam imaginar... Não me atrevo a fazer juízos de valor sobre este caso, em parte porque, como disse, não cheguei a entender o que provocou tanta confusão, mas porque também nós, cá no nosso país, acabávamos de pôr na rua um presidente, o Marcelo, de maneira que não podíamos estar aqui a dar bitaites sobre o que se passa noutras terras...

Mas não foi esta a única mudança, a nível de chefes de Estado ou de Governo, que se deu durante o ano de 1974. Vejam só a lista:

- Em Março, já Carlos Andrés Perez tinha substituído Rafael Caldera como Presidente da Venezuela.
- Na Colômbia, Alfonso Lopez Michelsen sucedeu como presidente a Misael Pastrana Borrero.
- Na Turquia, o primeiro-ministro Naim Talu foi substituído por Bullent Ecevit.
- Na Alemanha, Helmut Schmidt tornou-se o novo chanceler, e Walter Scheel sucedeu a Gustav Heinemann como Presidente.
- Ali ao lado, na Áustria, Rudolf Kirshlager sucedeu a Franz Jonas.
- Na Argentina, foi o general Juan Peron que cedeu generosamente o seu lugar à esposa, Isabelita Peron.
- Na Etiópia, depois de uma revolução que tinha começado já no princípio do ano, o Imperador Hailé Selassié foi deposto.
- Aqui ao nosso lado, em Espanha, houve um terrível incidente: o Presidente do Governo, Luís Carrero Blanco, foi morto num cruel atentado, sendo substituído por Carlos Arias Navarro...

E, para terminar o ano com más notícias, os marotos dos soviéticos conseguiram fazer pousar em Marte uma sonda espacial!.. Sem dúvida, um ano muito complicado – isto lá fora, porque cá dentro, na nossa Casa Portuguesa, vivíamos todos muito alegres... enfim, com a tal "alegria na pobreza" de que fala a cantiga...

Cá dentro, tínhamos a Dona Maria!

Para confirmar o que afirmo, basta referir a realização, no dia 28 de Setembro desse ano de 1974, de mais uma grandiosa manifestação de apoio ao nosso excelso Governo. Quem promoveu e organizou tal iniciativa? Nunca se soube ao certo. A sua realização deveu-se a uma misteriosa "Maioria Silenciosa", gente inteligente, patriota, mas discreta, que receava o reacender da chama revolucionária que quase nos tinha queimado, no 25 de Abril. A intenção da tal "Maioria Silenciosa" seria, então, mostrar que essa chama revolucionária, em vez de manter uma grandiosa fogueira de paixões, não passava de uma insignificante chamazita de isqueiro, prestes a ser apagada pelo sopro da lealdade devida a quem nos governava de forma tão notável...

Assim, a manifestação da "Maioria Silenciosa", em 28 de Setembro de 1974, ficou como um símbolo. Ninguém deu por ela, não foi vista nas ruas, não teve eco na Comunicação Social, houve mesmo quem dissesse que não chegou a existir – mas, por isso mesmo, foi uma manifestação importantíssima!



Os anos seguintes, e a inevitável comparação entre a continuação da nossa calma interior e a barafunda universal.

Os anos seguintes não foram muito diferentes deste ano de 1974, em que a Pátria tinha sido ameaçada, na noite de 24 para 25 de Abril, por essa terrível maquinação que tinha, felizmente, falhado os seus objectivos.

Assim, num breve apanhado do ano de 1975, e enquanto por cá se ia passando bem, como sempre, ouvíamos falar de problemas complicados no Estrangeiro, como estes que se relatam:

De Espanha, vinha a triste notícia do falecimento do Generalíssimo Franco, do qual se dizia, aliás de forma bastante desrespeitosa, que "já estava morto há que tempos, só que ninguém o tinha informado do facto"... Enfim, uma daquelas graças com pouca graça que os inimigos dos Regimes estáveis e patrióticos espalham, com a intenção de minar, através da laracha fácil, as bases dos sistemas.

Uma piada semelhante correra por cá, quando do trambolhão que sofrera, anos antes, o Senhor Professor Doutor António de Oliveira Salazar (insisto em continuar a tratá-lo sempre desta forma respeitosa). São formas de humor que não ficam bem entre pessoas decentes e patrióticas... Também aqui se dizia então que ele tinha praticamente "batido as botas" nesse dia – numa infeliz alusão às elegantes botas que Sua Excelência usava, quase se pode dizer, como uma "imagem de marca"...

Pouco tempo depois do falecimento do Generalíssimo Franco, era proclamada a Monarquia em Espanha, subindo ao trono Sua Majestade o Rei Juan Carlos, muito conhecido aqui no nosso país, porque passara a sua meninice no Estoril, frequentando o Tamariz e as casas apalaçadas das famílias finas da região, recebendo a mais esmerada educação e levantando fundadas esperanças de que levasse de cá os princípios aprendidos e vividos com o nosso admirável Estado Novo, aplicando-os no seu país, agora que era Rei.

Lá na distante Indochina, os malvados vietcongs tinham corrido com os americanos, que tiveram de regressar a casa com os helicópteros entre as pernas. O país foi rebaptizado com o esquisito nome comunista de Vietnam. A cidade de Saigão passou a ter o nome comunista de Ho-Chin-Min . Enfim, uma desgraça daquelas capazes de nos deixar com os olhos em bico, se me permitem a piada fácil...

Entre os acontecimentos mundiais, cujos ecos nos chegavam devidamente filtrados, talvez se possa citar a criação do primeiro computador doméstico, o Altair 8800, mas isso pouco interesse tinha para nós, pois essas modernices de computadores e coisas assim não interessavam absolutamente nada a um povo que sempre se tinha dado muito bem a fazer contas de cabeça.

Houve, no entanto, na nossa Amada Pátria, dois acontecimentos, de sentidos opostos, que tiveram importância e que é preciso referir.

O primeiro deu-se no dia 11 de Março de 1975. Houve, nesse dia, uma tentativa de golpe de Estado, levada a cabo pelos malandrecos que já tinham estado envolvidos no abortado golpe de 25 de Abril do ano anterior, e que entraram em conflito com adversários desse mesmo golpe. Devo dizer que, neste episódio, como noutros, eu não percebi lá muito bem o que realmente se passou... É que estas coisas da Política, das revoluções e outras barafundas, são cada vez mais complexas para o meu entendimento, de maneira que fico sempre sem apanhar o que realmente acontece... Só sei que, nesse dia, houve umas movimentações de tropas, uns aviões a sobrevoar a capital, umas reportagens esquisitas na televisão, que muita gente comparou à chamada "guerra do Solnado" (referência a uma engraçada paródia que este conhecido artista fazia à guerra verdadeira, e que nos fazia rir desabaladamente)... Parece que acabou tudo bem, embora a intenção dos comunistas, que estariam na origem da confusão, fosse a de nacionalizar os Bancos e meter na cadeia uma data de gente respeitável, para assim tomarem conta do País. Se era isso, nada conseguiram, porque o "11 de Março" foi um fiasco! Ouvi dizer que o General Spínola até teve de fugir de avião para Espanha, disfarçado com um bigode postiço e com o monóculo escondido no bolso – mas não posso garantir que isto tenha mesmo acontecido. Foi tudo muito confuso e eu cada vez entendo pior estas coisas, não sei o que se passa com a minha cabeça... Enfim, depois deste sobressalto, tudo voltou à calma do costume...

Depois, durante o Verão desse ano (que foi um Verão excepcionalmente quente, e não estou a falar só da temperatura ambiente...) viveu-se o chamado PREC – Processo Reaccionário Em Curso, caracterizado por uma certa agitação, nada saudável, que só a acção das Forças da Ordem conseguiu acalmar.

Mais tarde nesse ano, no dia 25 de Novembro, deu-se outro abanão nessa calma tradicional. Sabendo que os comunistas (sempre eles!) estavam outra vez a minar a tranquilidade do país, algumas tropas resolveram tomar uma atitude viril e arrumá-los de vez. Assim, os Comandos da Amadora, com o seu comandante Jaime Neves, juntamente com outras tropas, puseram-se ao lado de Vasco Lourenço e de Ramalho Eanes. Este coordenou todas as operações e assim se anulou a tentativa desses malvados para tomarem conta do país. Mas foi um dia muito complicado, segundo me constou...

Enfim, tirando estas excepções, o ano de 1975 passou-se, mesmo assim, com relativa normalidade, tal como os anos seguintes.

Isto porque tínhamos a Dona Maria!

Em 1976, enquanto em Portugal não se passava nada, lá por fora havia coisas que chocavam aqueles (poucos) que delas tinham conhecimento. A nível político, a Isabelita Peron acabaria por ser deposta por uma Junta Militar – mas isso era assunto lá da Argentina, a gente não tinha nada com isso, eles que depusessem quem lhes apetecesse...
No Uganda, um tal Idi Amin, um político com cara de boa pessoa, era eleito Presidente vitalício, o que devia ser um descanso para a respectiva população, que assim ficava liberta da chatice de ter de ir a eleições de vez em quando...
Aqui ao lado, em Espanha, Adolfo Suarez era eleito presidente do Governo.
Em Cuba, um barbudo muito feio, chamado Fidel de Castro, era nomeado (ou nomeava-se...) Chefe do Estado, esperando todos nós que ele não durasse muito tempo no lugar...
No que respeita às viagens espaciais, a nave Viking I explorava Marte – não sei para quê, com tanta terra para explorar aqui no nosso planetas – mas, enfim, essa gente lá de fora não sabe onde gastar o dinheiro!...
Na América, uma fofoca espalhada por mal-intencionados informava que um certo George W. Bush tinha sido preso e multado por conduzir sob o efeito do álcool... Coisa que nunca aconteceria no nosso país, onde uns copinhos a mais até ajudam a uma condução mais enérgica!

E eram estes os grandes acontecimentos de 1976, no mundo. Por cá... nada!

Por cá, tínhamos a Dona Maria.

No ano de 1977, os acontecimentos estrangeiros que nos chegaram foram a eleição de Jimmy Carter como 39º Presidente dos Estados Unidos da América, e o aparecimento do primeiro computador moderno, o Apple II. Qualquer destes eventos não teve nenhum efeito cá dentro: o Presidente americano tinha aspecto de boa pessoa, mas não nos ligava nenhuma; e o computador tinha aspecto de ser eficiente, mas a gente não lhe ligava nenhuma.

Em Portugal, não se passou nada. Bem, é claro que continuávamos a ter a Dona Maria...

Já em 1978 houve alguns temas que nos interessavam mais directamente. Calculem que um dirigente líbio, um tal Muammar Kadafi, se atreveu a sugerir que a Madeira devia ser independente de Portugal, sendo considerada como parte integrante da África! Não queria mais nada! O mais certo era o homem querer abichar para ele a valiosa produção de bananas daquela nossa linda ilha... Nem pensar! Levou logo a resposta merecida: Meta-se na sua vida, meta-se na sua tenda de beduíno e não se meta com as nossas ilhas adjacentes, que são muito nossas e nos fazem muita falta, pois é delas que vêm as flores mais bonitas, o bolo do caco... e o cançonetista Max, o genial intérprete de A Mula da Cooperativa!

Em Janeiro deste ano foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, utilíssima para defender bichinhos tão úteis como os gatos, os cães, os papagaios, as pulgas e outros, que fazem parte da nossa vida corrente e convivem connosco de forma tão solidária.

Em Roma é que houve um episódio muito triste: cerca de um mês depois de eleito, o Papa Albino Luciani, que adoptara o nome de João Paulo I e era conhecido como o "Papa Sorriso", por estar sempre a rir, morreu subitamente! Chegou a constar que tinha sido liquidado por haver quem não gostasse dele, mas isso deve ser boato mal intencionado, porque em nenhum país do mundo se liquida uma pessoa só por não se concordar com as suas ideias... (Enfim, pode acontecer, lá num ou noutro caso raro, como aqui se dizia que tinha acontecido com o General Humberto Delgado, mas isso são fofocas sem qualquer fundamento!)...  O que é certo é que, em substituição desse Papa, foi eleito o Cardeal Woitila, o que pareceu estranho a muita gente, por se tratar de um polaco, coisa rara em eleições papais... Toda a gente ficou na expectativa, a ver se esse novo Papa iria ser demasiadamente "práfrentex", o que poderia causar perturbações a nível mundial...

E outro ano se passou, sem que, em Portugal, se passasse nada...

Sim, continuávamos a ter a Dona Maria.

Em 1979, ouvimos dizer que ia desaparecer o chá... Perdão: o Xá... Falo do Xá da Pérsia, Reza Pahlevi, que teve de sair do seu país, corrido pelas forças tradicionalistas, comandadas pelo Ayatollah  Khomeini, que viria depois a tomar o poder. Sentimos bastante a falta de chá... perdão, do Xá, nesta ocasião complicada para aquele país, cujo nome foi mudado para Irão. Perguntávamos então, por graça: "Que irão eles fazer, agora, sem o seu chá... das cinco?"... Ai, estes Portugueses, para inventar boas piadas estão por aqui!...

Ali perto, no Iraque, era um tal Sadham Hussein quem tomava conta do país, com tudo o que ele tem de bom, especialmente muita areia e muito petróleo.

Enfim, eram acontecimentos que não nos diziam muito, por se passarem em países que ficam muito afastados, lá nesse Médio Oriente que só nos interessou há uns quinhentos anos, quando os Portugueses por lá andaram à busca do Preste João e das respectivas riquezas, as míticas fortunas que este possuiria, acumuladas em muitos anos de vida naquelas paragens (afinal não tinha riqueza nenhuma, ficou a saber-se que era um pobre borra-botas sem vintém; mas essa é outra história...). 

Já a notícia da nomeação da senhora Margaret Thatcher para Primeira-Ministra inglesa nos causou, além da natural admiração, uma pontinha de orgulho, visto que se tratava, sem qualquer dúvida, de uma imitação daquilo que se passara no nosso país, onde uma outra Senhora ocupava, desde 1974, tão Alto Posto!

Mas penso que talvez a notícia que mais nos tenha impressionado, neste ano, tenha sido a da morte do grande actor John Waine, que era a imagem viva do herói como nós o imaginamos: viril, corajoso, conservador, das direitas, respeitador da ordem e da lei – como devem ser todos os heróis e, por extensão, todos os Portugueses!

O ano de 1980 começou logo por uma grande desgraça que atingiu o país – mais especificamente o arquipélago dos Açores. No dia 1 de Janeiro, houve um grande terramoto, que atingiu as ilhas Terceira, São Jorge e Graciosa, sendo particularmente destruidor em Angra do Heroísmo, em grande parte da cidade. Os açorianos, embora já habituados a estes fenómenos naturais, sentiram que desta vez os tremeliques eram mais graves que o habitual. Mas, enquanto o país tremia nas Ilhas Adjacentes, o Regime mantinha-se firme no Continente! (Reparem bem na finura desta comparação!)...

Este ano foi, aliás, fértil em acontecimentos importantes. Por exemplo, no dia 7 de Março assistia-se à primeira transmissão de televisão a cores! Um evento de importância nacional, só possível graças à visão moderna do nosso Estado Novo, que assim permitia aos Portugueses ver as imagens coloridas que, no Brasil (por exemplo) já eram vistas há 10 anos, e noutros países muito antes... Mas o atraso neste tipo de emissões devia-se, naturalmente, ao cuidado que o Governo punha na saúde oftalmológica das populações, preservando-as, até esta data, da exposição a cores violentas, que pudessem prejudicar a acuidade visual do povo...

Uma aventura que deu bastante que falar foi o desvio, em Maio, de um Boeing 727 por um jovem, logo carinhosamente apelidado de "piratinha do ar". O assunto deu para entreter as pessoas durante vários dias, formando-se duas tendências: a daqueles que queriam ver o tal "piratinha"  atrás das grades, para não andar a brincar com coisas sérias, e a dos que louvavam o seu espírito de iniciativa, que fazia do rapaz um símbolo da capacidade de desenrascanço que, entre outros feitos notáveis, levara os Portugueses até à Índia...

Lá de fora, vinha uma ou outra notícia sem grande interesse – como, por exemplo, a de que um tal Robert Mugabe tinha sido eleito Presidente do Zimbabwe, a antiga Rodésia. Pensou-se que seria, como de costume, um simpático Presidente negro, para durar pouco tempo...

Em Outubro, veio lá do Brasil a notícia do falecimento do Caetano... Enfim, já que morreu, designemos pela última vez, mais formalmente, o antigo Presidente do Conselho de Ministros, Professor Doutor Marcello José das Neves Alves Caetano... Que descanse em paz.

Por cá, como de costume, tudo estava perfeitamente normal. Não se passava nada.

E continuávamos a ter a Dona Maria.

Chega então 1981, um ano que iria iniciar (quem o diria?) uma nova era na vida da nossa Bem Amada Pátria... Já vão ver porquê...

Logo em Janeiro, um antigo actor do cinema americano, intérprete de cowboyadas de segunda categoria, era eleito Presidente dos Estados Unidos da América. Tratava-se de um tal Ronald Reagan, a quem os europeus não davam grande crédito, exactamente por se lembrarem das fitas em que entrara, a fazer papéis secundários, revelando-se um razoável canastrão... Mais tarde, haviam de mudar de opinião, reconhecendo que este Presidente era muito menos parvo do que parecia à primeira vista – e mesmo à segunda...

Em Maio, toda a gente ficou impressionada quando soube do atentado que um árabe chamado Ali Agca cometera contra o Papa João Paulo II. Dizia-se mesmo: "Com tanta gente aí a merecer um tiro, como por exemplo os comunistas, logo se vai desperdiçar uma bala contra o Papa, que até parece ser tão boa pessoa!"... Felizmente, o Papa recuperou e ainda duraria muitos anos.

Mas a grande tragédia, essa caíu sobre nós, no dia 9 de Julho deste ano de 1981, quando tudo indicava que iríamos passar muitos e muitos anos de paz e tranquilidade!

CONTINUA NA QUINTA-FEIRA

22/11/2012

E SE O 25 DE ABRIL TIVESSE FALHADO? (14)


O primeiro discurso público de Dona Maria. Invocações políticas, patrióticas e gastronómicas.

Foi igualmente esplêndido o discurso proferido por Dona Maria, daquela varanda onde assomava pela primeira vez, mas onde o querido Professor tinha assomado muitas outras, para lançar ao Bom Povo alocuções de grande profundidade. Pois bem, ainda que noutro registo não tão erudito, o arrazoado de Dona Maria não deixou de calar fundo nas boas almas daqueles Portugueses que a escutavam embevecidos. Vou tentar reproduzir aqui os seus tópicos principais, já que é impossível apresentar ipsis verbis a versão completa. É que a oradora orou de cabeça, isto é, de improviso, coisa rara naqueles tempos. Mas, enfim, aqui vai o resumo, tão exacto quando possível, dessa notável e patriótica peça de oratória:

"Portugueses! Obrigadinha por terem vindo aqui mostrar o vosso respeito por mim! O respeitinho é uma coisa muito bonita, sempre tenho ouvido dizer... Pois eu quero que todos vocês sejam bons patriotas, e para serem bons patriotas têm de respeitar aquelas três coisas com que o Senhor Doutor Salazar nos estava sempre a massacrar a cabeça, quando era vivo, e que são Deus, Pátria e Família. Eu desta última não percebo lá grande coisa, porque nunca constituí família, não é que me faltassem pretendentes, mas eu bem sabia que eles, o que queriam, era apanhar-me a jeito, depois de casada, para meter cunhas para bons empregos no Estado! Mas eu nunca fui nessa conversa e por isso aqui estou, solteira e tão inteirinha como quando vim ao mundo!... Sim, porque fiquem sabendo que essas calúnias que alguns andaram para aí a espalhar, que eu tinha intimidades com o Senhor Doutor, é tudo mentira! Nunca, mas nunca ele me tocou, nem eu lhe toquei, a ele, a não ser a segurar-lhe o queixo quando tinha que lhe dar o xarope para a tosse, ou às vezes para lhe atar as botas, quando ele estava mais atrapalhado com o reumático... E até porque o Senhor Doutor tinha lá as suas distracções com as descaradas que se atiravam constantemente a ele, como essa desavergonhada da jornalista francesa a quem tive de mandar tomar banho, porque o Senhor Doutor já não podia com o cheirete a perfume que ela usava para disfarçar a falta de sabão... Bem, mas vamos ao que interessa! Como vocês sabem, agora sou eu que mando, e não quero cá forrobodós no país! Quero toda a gente muito séria, tudo muito decente, nada de malandrices! Por exemplo, ficam proibidos os namoros em público, e não quero ver beijinhos nem abraços nas ruas. Toda a gente deve andar decentemente vestida, as mulheres ficam proibidas de usar mini-saias e calças justinhas ao rabo! Decotes, só muito subidos, e poucas pinturas na cara, que dão um ar muito ordinário... Os homens era bom que usassem todos chapéu, como o Senhor Doutor gostava, mas enfim, podem substituí-lo por um boné. Boinas não, que isso é o que usam lá esses malditos revolucionários estrangeiros, e não quero cá disso!... Ora vocês, homens, que vieram aqui manifestar o vosso respeito por mim, fiquem sabendo que não os quero por aí em festas e em bailes e em sítios pouco recomendáveis, como sejam as discotecas e os cabarés. Podem frequentar os cafés, mas nada de conversas políticas, senão já sabem o que lhes acontece: os agentes das nossas polícias e os patriotas vigilantes que apanhem alguém a dizer mal do Governo, logo vos tratam da saúde! E depois não se queixem!... Sigam aquela boa norma que diz assim: "A minha política é o trabalho..."

E a multidão, em coro, recitou: – "... e não me tenho dado nada mal com isso!"

"Muito bem" – aprovou a Dona Maria. E continuou: – " Portanto, trabalhem, para sustentar os vossos lares e as vossas famílias, não andem aí atrás de rabos de saias, nem metidos nos copos, e não se envolvam em complicações, em greves e outros disparates assim. E se descobrirem algum malandro de algum comunista, tratem de o denunciar imediatamente, que o vosso gesto será devidamente recompensado. Por outro lado, se andarem misturados com esse tipo de gente e forem apanhados, já sabem: vão parar ao xelindró, depois de levarem uns abanões dados a tempo, como dizia com muita graça o Senhor Doutor... Bem, e agora voltem para junto das vossas mulheres, já que resolveram fazer esta manifestação só com homens. E quando estiverem com elas tratem-nas bem, e recomendem a elas, da minha parte, que sejam poupadinhas, que não gastem os vossos ordenados em extravagâncias. E também que não se ponham com despesas escusadas, que não andem sempre metidas nos cabeleireiros, e não se ponham a comprar coisas inúteis, como, por exemplo, máquinas de lavar, ou aspiradores... Expliquem-lhes que uma vassoura e um bom pano do pó servem muito bem para limpar a casa, e ficam muito mais em conta! Ah, e elas que se habituem a escolher com cuidado o peixe na praça; se as guelras não estiverem vermelhas e os olhos não estiverem bem vivos, é porque não está fresco. E outra coisa: se a sopa ficar salgada, elas que lhe juntem umas rodelas de batata crua, que retira logo o excesso de sal... Pronto, é tudo o que tenho a dizer por hoje. Viva Portugal! Viva eu!"

E retirou-se dignamente para o interior, deixando aquela multidão de homens completamente eufórica, novamente aos gritos de Dona Maria, Dona Maria!


As reacções populares à nova situação política. O que as pessoas normais pensavam e diziam daquela governação um pouco fora do normal – e também o que pensavam mas não diziam.

A dizer a verdade, o Bom Povo Português andava um bocado azamboado com aquela situação. Não percebia lá muito bem o que se estava a passar. Ouvira dizer, vagamente, que estivera preparado um golpe militar para virar o país de pernas para o ar, mas, afinal, o único golpe a que assistira e ao qual fora dada divulgação pública (mesmo assim, muito discreta) fora o pontapé-no-rabo aplicado ao Professor Dout... perdão, ao Marcelo Caetano, que tinha sido despachado rapidamente para o Brasil, deixando atrás de si, não o cheirinho àquela primavera marcelista que tinha prometido, mas ao "mofo outonal da sua infeliz governação", como escrevera, em hora de feliz inspiração, o brilhante Jornalista Manuel Maria Múrias, num editorial do renovado jornal A Rua, e no qual, em contrapartida, deixava os mais rasgados elogios à nova governanta... perdão, à nova Governante!

Pouco mais se sabia – a não ser, é claro, o facto evidente de o país estar a ser comandado por uma mulher que era Presidente do Conselho de Ministros... sem que, curiosamente, existisse qualquer Conselho, porque também não havia Ministros, uma vez que ela assumira e acumulara todas as pastas...

A pouco e pouco, o Bom Povo foi-se apercebendo de que a vida decorria na mais perfeita normalidade, sem atropelos de maior e sem perturbações de qualquer espécie. Melhor dizendo, o Povo não se apercebia de coisa alguma, porque ninguém lhe dizia o que se passava, lá nas altas esferas governamentais. Nem tinha nada que saber de tais assuntos, ora essa! A função do Governo era governar, não era? Pois o Governo governava, e ponto final. Era só o que faltava, estar a informar o pessoal, tintim por tintim, de tudo o que resolvia fazer, a bem da Nação!... E a função do Povo, qual era? Trabalhar e calar o bico, evidentemente... Pois que trabalhasse e calasse o bico, para que tudo corresse na maior das calmas e na maior das felicidades, porque não há coisa pior do que ter as pessoas inferiores a meter os narizes nos assuntos que devem ser tratados pelas Pessoas Superiores! Já no tempo de Sua Excelência o Senhor Professor Doutor António de Oliveira Salazar era esse o sistema em vigor – e, graças a ele, tínhamos, todos nós, vivido felizes, contentes e em paz, durante muitos e muitos anos! Todos nós, talvez não... Sempre houvera uns chatos duns contestatários que refilavam contra esta evidente tranquilidade que nos era oferecida, e se sentiam atabafados por não poderem falar, escrever e fazer as coisas que lhes apetecia fazer. Diziam até que a nossa paz era igual à paz dos cemitérios... Mas esses que assim falavam não mereciam mais que uma certa condescendência, porque, coitados, não tinham capacidade para entender a Felicidade que lhes era proporcionada pela governação que generosamente lhes calhara em sorte.

Deste modo tranquilo, foi passando o tempo, com a calma do costume ou, pelo menos, com a aparência de calma do costume. As pessoas faziam o que tinham a fazer. Assim, a maioria dos homens ia para os seus empregos, de manhã, e regressava a suas casas, à tardinha, parando no caminho para tomar uma bica escaldada e discutir o futebol, no café. A maioria das mulheres tratava da casa, limpava, arrumava e cuidava dos rebentos. Durante o jantar, todos viam os interessantes programas da televisão. Iam ao cinema de vez em quando. Faziam as compras nas mercearias e noutras lojas tradicionais, porque os supermercados ainda eram raros. As criancinhas andavam nas escolas, os mais crescidos nos liceus, alguns, de famílias mais abonadas, frequentavam as universidades, e todos sabiam muito bem a tabuada e os tempos completos dos verbos "ter", "ser" e "haver". Ninguém tinha muito dinheiro, a não ser, é claro, alguns Senhores-Muito-Importantes que dominavam os sectores essenciais da vida do país, como as Indústrias, o Comércio, a Construção Civil e outras actividades que era preciso manter em bom funcionamento, para que as receitas do Estado se apresentassem como as receitas dos médicos: incompreensíveis para o povinho simples, que não lhes consegue decifrar a letra nem adivinhar os efeitos...

  Voltam as instituições de antigamente, com os seus símbolos e as suas saudosas siglas.

Dona Maria não se podia conformar com certas transformações – certas "modernices", como ela dizia – que se tinham introduzido sub-repticiamente na vida da nossa Pátria. Por isso, tratou de fazer reviver saudosas siglas, saudosas instituições e não menos saudosos hábitos e costumes que ameaçavam perder-se e, com eles, as mais respeitáveis tradições do nosso Bem Amado Regime.

Assim, por exemplo, nunca ela simpatizara com a ideia de ver substituída a designação da veneranda "Censura" por esse nome mais moderno de "Comissão de Exame Prévio"... Pois bem, uma das suas primeiras medidas foi a de restaurar, não apenas o tradicional nome desse prestimoso Serviço, mas, também, todas as suas competências, funções e tradições. Simbolicamente, foi-lhe atribuído um subsídio extraordinário para a compra de várias grosas de lápis azuis, bem como para uma boa quantidade de apara-lápis, destinados a mantê-los sempre operacionais, na patriótica tarefa de eliminar todas as palavras, todas as ideias, todas as teorias, todos os escritos, que pudessem perturbar e prejudicar os espíritos e a tranquilidade pública, envenenando as pessoas com desvios em relação àquilo que o Superior Interesse do Estado considerasse útil para a nossa Pátria. E ainda resolveu conceder, aos prestimosos Coronéis reformados ali exercendo as suas importantes funções, generosos aumentos dos seus ordenados, a fim de os manter com o espírito alerta, na análise e expurgação de qualquer texto incómodo para o Regime.

Também a "DGS – Direcção-Geral de Segurança" voltou a ter o seu tradicional nome antigo, tão interiorizado e tão respeitado por toda a gente: voltou, pois, a ser a "PIDE", a imprescindível PIDE, que tantos serviços prestava à segurança nacional e, em particular, à segurança dos fiéis servidores do Estado Novo... Também nessa instituição, os seus agentes foram premiados com gratificações extraordinárias, para que os seus olhos e as suas orelhas se mantivessem em permanente alerta perante os perigos com que a subversão pudesse ameaçar a tranquilidade e a paz da vida nacional.

Outra instituição que voltou, por ordem de Dona Maria, à designação antiga, foi a "ANP – Acção Nacional Popular", que recuperou, e ainda bem, o prestigiado nome de "União Nacional", de tão antigas e nobres tradições!

Assim se assistiu (agora sim, e não como fora timidamente ensaiado nos tempos do Caetano) a uma verdadeira "evolução na continuidade"!

E desta forma foram decorrendo vários anos... Anos passados em que, a bem dizer, aqui não se passou, praticamente... nada!

Diz-se que os Povos Felizes não têm história... Era o nosso caso. Felicíssimos, satisfeitos com a nossa vida, cá fomos continuando nesta pontinha da Europa, caladinhos e, como de costume... orgulhosamente sós...

CONTINUA NA SEGUNDA-FEIRA


19/11/2012

E SE O 25 DE ABRIL TIVESSE FALHADO? (13)


As primeiras iniciativas de Dona Maria. O acordo implícito entre a Presidente do Conselho e o Presidente da República, quanto às respectivas funções.
                                                                              
Passados que foram os primeiros dias do seu mandato, dias esses reservados para as adaptações que Sua Excelência a Senhora Dona Maria de Jesus teria obrigatoriamente de fazer nas suas actividades, oficiais e particulares, realizou-se um encontro muito importante com o venerando Chefe do Estado, o Senhor Contra-Almirante Américo de Deus Rodrigues Thomaz. Aliás, as tais adaptações até nem seriam muito complicadas, dada a longa experiência que Sua Excelência tinha adquirido, no decorrer de tantos anos de convivência com Sua Excelência o Senhor Professor Doutor António de Oliveira Salazar, e com a sua maneira de viver e de agir, tanto no plano pessoal como no plano político. Assim, por exemplo, embora contrariada, Sua Excelência teve de deixar de cuidar pessoalmente das galinhas e dos coelhos que tão amorosamente criava, nos jardins do Palácio de São Bento, entregando tal tarefa a um assalariado, contratado para o efeito, com um ordenado baixinho, a fim de evitar que o homem fosse para aí gastar o dinheiro nas tabernas, a encher-se de vinho tinto em copos-de-três... Também teve de abandonar as visitas diárias ao talho Pereira e à mercearia, passando a receber o senhor Pereirinha e o senhor Manel Merceeiro no Palácio, em dias e horas certas, para discutir o preço das costeletas ou do feijão encarnado.

Quanto às funções ministeriais, assumidas na totalidade dos Ministérios, Sua Excelência a Senhora Dona Maria de Jesus exigiu que os Directores-Gerais (recordemos que tinha deixado de haver Ministros) lhe enviassem diariamente relatórios das respectivas actividades, que eram minuciosamente analisados, à noite, ao serão – e, quando detectava qualquer erro ou omissão, enviava um cartão de visita ao faltoso, com esta simples mensagem a lápis: "Está Vossa Excelência dispensado do seu cargo, a partir de amanhã, e pode ir para casa descansar."  Pronto, estava o caso arrumado, ao antigo estilo de Sua Excelência o Senhor Professor Oliveira Salazar – e não havia mais conversas. 

Pois bem, na tal reunião com Sua Excelência o Senhor Presidente da República, a Excelentíssima Senhora Dona Maria de Jesus, Digníssima Presidente desse Conselho de Ministros que nem sequer existia porque ela assumira todas as pastas, foi muito directa e muito pragmática:

- Senhor Presidente, o melhor é esclarecermos já as coisas, para não haver chatices daqui para diante!

- Sim, sim, claro – ia a dizer o Senhor Contra-Almirante. – Eu acho... – mas foi imediatamente interrompido.

- O senhor não tem nada que achar nem deixar de achar! A questão é a seguinte: agora que fui nomeada, quem manda aqui sou eu!

- Mas... mas fui eu que a nomeei... Se eu não a nomeasse... – tentou o outro.

- Se não me nomeasse, nomeava-me eu a mim mesma! Portanto, baixe a bolinha e escute. Eu é que ponho e disponho em tudo, como acontecia antigamente com o meu saudoso patrão, o Senhor Doutor Salazar. Vai daí, o senhor não precisa de se preocupar com coisa alguma, que eu trato de todos os assuntos importantes do País.

- Então e eu, faço o quê? – foi a pergunta tímida.

- O senhor dedica-se a inaugurar chafarizes e a presidir a outras cerimónias igualmente interessantes e apropriadas à sua condição! Terá assim oportunidade para repetir aquele discurso que já toda a gente lhe conhece.

- Ah, sim, aquele em que eu digo: "Esta á a primeira vez que aqui venho desde a última vez que aqui estive!"...

- Exactamente. Fazendo assim, vamos ter uma vidinha santa, cada um na sua função, e o País estará contente e tranquilo.

- Está bem, isso até nem deixa de ser conveniente para mim. Bem me bastou o abanão que tive de suportar por causa dessa confusão do tal 25 de Abril...

- Óptimo! Estamos entendidos, então. E agora, vou tratar de alguns assuntos ministeriais. Por exemplo, no Ministério das Colónias, vou nomear alguém que fique encarregado da resolução dos problemas lá dessas nossas chamadas províncias ultramarinas...

- Ah sim? E posso saber, já agora, quem vai encarregar de resolver essa melindrosa questão?

- Sim. Vai ser o senhor Doutor Almeida Santos!

- Não me diga! Mas esse cavalheiro...

- ... é quem tem andado a espalhar mais teorias sobre o assunto. É altura de transformar as teorias em coisas práticas. Ele que resolva lá as questões daquela gente, já que se mostrou tão sabichão a esse respeito!

- Então, e já agora, que se dignou entrar no plano das confidências... posso saber como é que vai resolver o problema dos exilados políticos? É que eu ouvi dizer que o doutor Mário Soares, o doutor Álvaro Cunhal e mais uma data de gente que está lá por fora, pensava regressar a Portugal, se a revolução tivesse vingado...

- Tenho um plano maquiavélico, quanto a esses exilados! Vou informá-los de que estamos a experimentar um regime das mais amplas liberdades... Eles ficam muito contentes, metem-se nos comboios e nos aviões para regressarem à Pátria, e até lhes organizo imponentes manifestações de acolhimento, no Aeroporto da Portela e na Estação de Santa Apolónia, com milhares de apoiantes...

- E depois?

- Depois... meto-os a todos no xelindró, e nunca mais nos aborrecem, nem aqui nem lá de fora das nossas fronteiras!

- Mas que ideia fantástica! Devo manifestar-lhe a minha entusiástica admiração pelo seu génio político! Ainda bem que a escolhi para este importante cargo!

Resmungando para si mesma, Dona Maria comentava: – Pois sim, vai ficando na ilusão de que a ideia foi tua... – E, em voz alta: – Bem, está o expediente em dia. Pode sair. Vá lá dar umas voltinhas com a dona Gertrudes, para passar o tempo!

E assim terminou aquela importante reunião, na qual tinham sido aflorados, quase sem se dar por isso, alguns dos mais prementes problemas com que se defrontava a nossa Querida Pátria! 

A consagração: Sua Excelência a Presidente do Conselho vê-se confirmada, pelo Bom Povo Português, com a mesma admiração e o mesmo respeito de que gozara o seu saudoso antecessor e ex-patrão.

Mas faltava algo indispensável. Faltava uma grande, uma expressiva consagração pública daquela austera figura que era agora a suprema condutora dos destinos da Nação. Uma manifestação que consolidasse a sua liderança, tornando-a incontestável. Era necessário que o Povo, o Bom Povo Português, bradasse, em altíssima gritaria, a sua admiração e o seu respeito pela Senhora Dona Maria, até para que não restassem dúvidas sobre a legitimidade do seu papel naquele alto posto. É certo que não o tinha conquistado através dos votos dos Portugueses, pois não se realizara qualquer eleição para esse efeito. Mas... eleições para quê?...

Toda a gente tinha consciência de que as eleições não servem senão para iludir as pessoas com a sensação de que estão, com um simples papelinho metido numa urna, a manifestar a sua vontade e a sua escolha. Nada mais falso! Esses papelinhos, para quem esteja treinado nestas coisas, podem ser facilmente arranjados (ia a dizer "manipulados", mas a expressão é talvez demasiado forte), de forma a que os resultados sejam aqueles que mais convêm aos superiores desígnios da Nação – como aliás acontecera já, em episódios anteriores, em que, nas contagens, se tinha dado um jeitinho... melhor dizendo: um "jeitão"... – para evitar que a escolha fosse recair numa pessoa que não interessava a ninguém...

Ora, em vez de se estar a perder tempo com essa tarefa de eliminar os votos que não são convenientes, guardando apenas os votos bons, mais vale, na verdade, evitar toda essa trabalheira, que só serve para as pessoas se cansarem, e anunciar logo o resultado final, aquele que realmente mais interessa, pois não é verdade?

Assim mesmo acontecera em relação à Senhora Dona Maria de Jesus. Deste modo, era conveniente, agora, sancionar a feliz escolha, fazendo-a aplaudir por milhares e milhares de pessoas.

No tempo do Senhor Professor Doutor António de Oliveira Salazar (cuja alminha, pura e sem pecado, todos desejavam que estivesse em sossego no Paraíso), tinha-se realizado, um dia, uma grandiosa Manifestação de Mulheres, com o pretexto de agradecer a Sua Excelência o facto de ter poupado o nosso Bem Amado País às agruras da guerra. Para tal, fora convocada uma concentração para o Terreiro do Paço, tendo sido minuciosamente preparadas as coisas para que o Senhor Professor fosse surpreendido quando, ao interromper os seus importantes trabalhos num dos Ministérios ali sedeados, fosse confrontado com uma enorme multidão que, à socapa, se teria reunido na vasta praça, e que, de repente, romperia em frenéticos aplausos.

Foi assim que o Senhor Professor, curioso, e querendo saber o que se passava lá fora, se abeirou de uma das janelas, ficando muito, mas mesmo muito surpreendido, ao deparar com aquele imensa mole humana – uma mole, aliás, bastante dura, tão compacta ela era, enchendo todos os recantos da praça, incluindo os mictórios subterrâneos então ali existentes.

E, de repente, sem qualquer preparação ou ensaio, toda aquela gente desatara a berrar: "Salazar, Salazar, Salazar!" E só então, com grande surpresa, Sua Excelência verificou que toda a imensa multidão era constituída exclusivamente... por mulheres! Eram mães, irmãs, filhas, noras, cunhadas, primas, tias, avós, algumas bisavós, embora poucas, incluindo donas de casa, telefonistas, dactilógrafas, empregadas de balcão, enfermeiras, parteiras e outras, muitas outras, todas unidas na mesma intenção e na mesma gritaria tão sonora que se podia ouvir na Outra Banda, em Cacilhas e até na Cova da Piedade... Depois, inesperadamente, surgiram, por cima daquele mar de cabeças bem penteadas (todas tinham ido ao cabeleireiro, nessa manhã ou na véspera), vários cartazes muito bem escritos, com letras impecavelmente desenhadas, certamente ali feitos, no momento, uma vez que a manifestação era, como já se explicou, completamente espontânea... E que diziam esses cartazes? Em frases muito simples, agradeciam a Sua Excelência o facto de apenas termos sofrido, entre os graves inconvenientes da Guerra que se desenrolara na Europa, entre 1939 e 1945, o pequeno inconveniente do racionamento de géneros, como o feijão, o grão de bico, outras mercearias, o leite, a carne, o peixe, a gasolina, etc.

Pois bem, o que se pretendia agora, em 1974, era repetir essa grandiosíssima manifestação – embora com algumas diferenças. Para começar, não houvera mais nenhuma Guerra Mundial de que a Senhora Dona Maria nos tivesse safado. (Havia a guerra do Ultramar, é certo, mas essa estava praticamente ganha, segundo afirmavam alguns especialistas, não em guerras, mas em palpites, e de qualquer forma tal assunto não interessava ser discutido neste momento). É verdade que também não houvera mais nenhum racionamento, a não ser aquele que era espontaneamente feito pelas boas donas de casa portuguesas, que tinham de racionar os escudos, para darem de comer às respectivas famílias com os ordenados magrinhos que os maridos recebiam, de maneira a não lhes sobrar mês no fim do ordenado... Outra diferença residia no facto de a Senhora Dona Maria ainda não ter feito nenhum discurso, idêntico aos que fazia o seu antigo Mestre e Mentor – os quais, como algumas pessoas comentavam, eram tão extraordinariamente bem escritos que poucos percebiam o que ele dizia, embora todos percebessem muito bem o que ele queria.

E o que é que ele queria?... Queria fazer da nossa Querida Pátria uma terra Democrática!

(Os leitores hão-de estar espantados, perante esta minha afirmação, que aparentemente contradiz outras afirmações, feitas mais atrás, em que manifesto o meu repúdio e a minha antipatia em relação a esse sistema político horroroso que é a tal Democracia... Provavelmente, estão a pensar em alguma viragem ideológica que se tenha dado no meu espírito, algum viracasaquismo de última hora que tenha atingido a minha consciência... Nada mais errado! Vou explicar... É que há Democracias e Democracias... Há aquela em que toda a gente, mesmo toda, incluindo os mais idiotas, vota para escolher quem os deve governar. A essa, acho-a inútil e até maléfica, porque é um sistema em que qualquer bicho-careta pode dar opinião e votar... Agora aquela em que uma pessoa iluminada e esclarecida, superiormente inteligente, se elege a si própria, sabendo que é um ente superior, escolhido, não pelos votos, mas por um Destino glorioso, para conduzir um país à Felicidade – essa sim, é uma bela Democracia!... Portanto, quando digo que Sua Excelência queria fazer deste país um país democrática, isso significa que ele pretendia distribuir por todos – democraticamente, estão a ver? – a riqueza nacional... Bem, quando digo "por todos", deixo de lado, obviamente, os antipatriotas, que esses não merecem que lhes distribuam seja o que for. E destaco, por contraste, uma elite constituída por aqueles que, inteligentemente, se colocam ao lado de quem manda, ganhando por isso o privilégio de usufruírem das benesses a que têm direito).

Era, pois, necessário organizar, com todos os cuidados e todos os pormenores, uma grandiosa "manifestação espontânea" de apoio a Dona Maria de Jesus. E nisso se empenharam os especialistas do costume, já habituados a preparar tais acontecimentos. Foram convocadas as autoridades regionais, para arregimentarem as forças vivas e, até, algumas forças mortas de cada uma das suas zonas de influência, a fim de se deslocarem à capital, na data e à hora previamente programadas.

O esquema já era bem conhecido, de ocasiões anteriores. Convocavam-se as pessoas de cada freguesia, ou de cada paróquia, por iniciativa do respectivo líder político local, para uma reunião preparatória, num sítio apropriado. Aí se explicava que era necessário ir a Lisboa, no dia tal, para a tal "manifestação espontânea", que teria de ser mesmo "grandiosa". Ninguém perguntava os porquês, porque, naturalmente, já todos conheciam, mais ou menos, as respostas. Para o dia marcado, arranjavam-se umas camionetas para o transporte do pessoal, as quais estacionavam na praça principal, onde toda a gente se reunia. Distribuía-se a cada participante um cartucho com duas sandes, um refresco e uma maçã reineta. (Para os que tinham viagem mais comprida, podia reforçar-se o lanche com meio frango por cabeça). À hora marcada, lá estava toda a gente preparada para a viagem, todas as pessoas muito bem arranjadas, todos os homens de barba muito bem feita – algumas pessoas até tinham tomado banho na véspera!... E lá partiam, para uma jornada patriótica de consagração, uma manifestação de respeitinho e obediência a quem se sacrificava para estar lá no alto, para que todos fossem mais felizes cá em baixo.

Pois foi uma manifestação destas que se preparou, para homenagear a Dona Maria... Tudo muito bem organizado, com todos os pormenores, como atrás se descreveu, e alguns mais, que nem vale a pena mencionar, porque toda a gente os conhece.

Mas... com uma grande diferença, em relação a todas as manifestações anteriormente realizadas: é que, nesta, só entravam homens!

Fazendo um curioso contraponto com a tal manifestação que, muitos anos antes, tinha sido dedicada ao saudoso Professor Salazar, e em que só tinham participado mulheres, nesta podiam ver-se pais, irmãos, filhos, genros, cunhados, primos, tios, avôs, alguns bisavôs, embora poucos, incluindo funcionários públicos, empregados de escritório, carteiros, varredores municipais e outros, muitos outros, concentrados, unidos numa berraria muito grande, que se ouvia na Outra Banda, até mesmo em Porto Brandão e na Trafaria!

Era verdadeiramente impressionante!

 Quando começaram os vivas e os gritos entusiásticos daquela imensa multidão masculina, o Senhor Doutor Moreira Baptista, que lá conseguira conservar, fora das suas funções ministeriais, a antiga responsabilidade máxima no SNI – Secretariado Nacional da Informação, aproximou-se de Dona Maria e disse-lhe ao ouvido: – Chegue-se Vossa Excelência à varanda, para saudar a multidão...

Mas Dona Maria, numa demonstração expressiva do muito que aprendera na sua vida cheia de ricas experiências, replicou, com ar enxofrado: – Meta-se na sua vida, que eu sei muito bem governar a minha! Só vou aparecer quando me apetecer e achar conveniente!

Toda a gente ficou varada com aquele incidente, que mostrava bem a fibra de que era feita aquela extraordinária mulher, que acrescentou ainda, para quem a quis ouvir: – A mim, ninguém me dá ordens! Sei muito bem o que quero e para onde vou!

Alguém observou, em voz baixa: – Onde é que eu já ouvi isto?...

E, lá do fundo do grupo seleccionado de Altas Figuras da Nação, ouviu-se este comentário, talvez não muito rigoroso, mas espontâneo e expressivo: – Temos homem!

Na verdade, adivinhava-se que a liderança daquela excelsa Senhora ia ser marcada pela sua forte personalidade, pelos vistos ainda mais robusta que a do seu nunca por demais louvado mestre e mentor. Assim, perante aquela manifestação, com tanta gente que ansiava pela sua aparição, ela fez-se cara durante bastante tempo, gerindo sabiamente a expectativa, e só surgiu à varanda quando o povo, lá em baixo, já estava rouco de tanto berrar o seu nome: – Dona Maria! Dona Maria! – ou simplesmente Maria...

Então, quando, depois de um bom bocado de tempo de espera, a sua figura austera surgiu, finalmente, na varanda, perante aquele mar de gente, foi o delírio! Os homens saudavam-na efusivamente, agitavam os braços, berravam tão alto quanto podiam... É verdade que alguns deles o faziam para ver se aquilo se despachava e voltavam aos autocarros para regressarem a suas casas, pois já estavam fartos de estar ali, de pé, aos gritos – e, além disso, já tinham dado fim à merenda!

Mas foi, na verdade, uma linda manifestação, que ficaria guardada na memória de todos os que a ela assistiram... No dia seguinte, o Diário da Manhã (o antigo matutino situacionista, entretanto ressuscitado) titulava, em letras gordas, na primeira página: "Só no tempo de Salazar se viu uma coisa assim!" – com uma grande fotografia em que se destacava Dona Maria, agitando em calorosa saudação o avental de tecido estampado que entretanto tirara. Magnífico!

CONTINUA NA QUINTA-FEIRA