A expectativa: Seria possível pôr de novo a
funcionar aquilo que, de momento, não passava de um gigantesco sorvete? A
dúvida cruel mantinha-se... Até quando?
E esperou-se. Segundo as informações confidenciais
que ia conseguindo obter, através das minhas fontes, um tanto precárias, como é
natural, o descongelamento durou quase dois dias inteiros. Quando já não
restava gelo suficiente nem para uma caipirinha, os Médicos puseram-se em
acção, na tentativa de reanimação da venerada figura.
Sim, a situação era delicada e não havia a certeza
do êxito. Os Cientistas afadigavam-se na tentativa de aplicar os mais recentes
conhecimentos obtidos nas investigações levadas a cabo nas Universidades,
Escolas de Medicina, Laboratórios e outras instituições, a nível mundial, para
porem a funcionar aquela espécie de sorvete humano. E isso foi sendo feito,
durante dias sucessivos...
À cautela, também se consultaram alguns bruxos e
videntes, dos mais cotados, daqueles que anunciam nos jornais e beneficiam de
uma ampla clientela, constituída por pessoas de todos os níveis sociais, que a
eles recorrem para resolver os seus problemas de amor, dinheiro, saúde,
maus-olhados e outros semelhantes. Algumas vozes se levantaram contra o facto
de se deitar mão a estes recursos, mas, perante a delicadeza da situação,
pareceu apropriado não desprezar todas as hipóteses possíveis para se chegar a
bom êxito na resolução do caso.
Claro que, num país de boateiros como é o nosso, a
notícia circulava surdamente por todo o lado. Era murmurada nos cafés, nas
redacções dos jornais, nas casas das pessoas – sempre em tom discreto, porque a
patriótica PIDE a a não menos patriótica Censura estavam alerta, como sempre,
para não deixarem espalhar relatos do acontecimento, antes de eles serem
devidamente desinfectados...
Até que, certa tarde, o Almirante Tenreiro se
apresentou de novo perante o Chefe de Estado. Não vinha com o ar triunfante da
outra vez. Pelo contrário. Vinha de monco caído, o semblante desanimado, o
olhar fugidio. Assim que entrou na sala, o venerando Presidente adivinhou logo
a situação.
- Pela sua cara, já vejo que não resultou.
- Pois não. Estou desanimadíssimo!... Tudo tão
bem estudado, tão bem preparado, tão bem organizado, e afinal... nada.
- Mas porquê? O que é que correu mal?
- Segundo os cientistas, a congelação não foi bem
feita. Aplicou-se o mesmo processo que costuma aplicar-se à congelação do
tamboril e da raia... mas isso era errado. O Senhor Professor Salazar continua
completamente morto... Tivemos que desistir.
- Mas, ouça lá... Não poderiam congelá-lo outra
vez e esperar mais uns anos? Pode ser que, com os avanços da Ciência, daqui a
mais uns tempos...
- Impossível! Então o Senhor Presidente não sabe
que um peixe congelado, uma vez descongelado, não pode voltar a congelar-se?
Neste caso, é o mesmo...
- E então...
- Então, mandei colocá-lo no sítio original, e aí
ficará eternamente, para que os seus fiéis admiradores lá vão prestar-lhe as
devidas homenagens. Talvez até se faça um museu...
- Isso ainda é capaz de dar polémica, no
futuro...
E assim se encerrou este capítulo, tão esperançoso
nos seus começos e tão frustrante nos seus finalmentes...
Um período de complicada e confusa
transição. O aparecimento de sucessivos governantes, pessoas completamente
inesperadas, que mandaram no nosso amado País, nos últimos tempos, mas nunca,
acho eu, com a competência desejável.
Confesso que, a partir deste momento da história, a
minha cabeça passou a albergar (além dos poucos cabelos que exibe cá por fora,
e do cérebro que presumivelmente ainda existe lá dentro) uma certa e inesperada
confusão. Neste local discreto e reservado onde me encontro (não me atrevo a
explicar onde é, por precaução), tenho por vezes a sensação de que as notícias
não me aparecem com a fidelidade e o rigor que seriam desejáveis...
Na verdade, chegam aqui informações que são, por
vezes, contraditórias, e que me provocam uma certa baralhação. Por isso, devo
esclarecer, honestamente, que já não posso garantir a verdade absoluta do
relato que faço e farei, pelo menos no que respeita aos tempos que se seguiram
à frustrada tentativa de recuperação do corpo e do espírito de Sua Excelência o
Senhor Professor Doutor António de Oliveira Salazar, o nosso venerado governante
de tantos e tantos anos de Felicidade e Progresso!
A confusão que esse episódio causou no meu espírito
parece ter abalado a habitual sensatez e rigor com que me habituei a analisar
os fenómenos sociais e políticos que se passam na nossa Bem Amada Pátria.
Assim, por exemplo, fiquei com a noção de que, após
os acontecimentos que creio ter divulgado com a minha habitual imparcialidade,
outros acontecimentos aconteceram... (vejam só como a perturbação do meu
espírito me leva e construir frases tão incorrectas como esta:
"outros acontecimentos aconteceram"... isto não costumava
acontecer-me dantes... Há qualquer coisa na minha cabeça que já não está a
funcionar bem) – pois, como ia dizendo, outros acontecimentos estranhos
complicaram a minha compreensão da vida deste país.
Foi deste modo que, na memória confusa destes
últimos tempos, registei a existência de uma sucessão de primeiros-ministros
perfeitamente impensáveis, em circunstâncias normais... Surgem-me nomes como os
de Pinto Balsemão, Mário Soares, Cavaco Silva... Mas... quem é esta gente? Como
é possível eles aparecerem a governar o nosso Bem Amado País? O Balsemão,
enfim, ainda se aceita, era dos tais que chegaram a pertencer à antiga Assembleia
Nacional, embora fizesse parte do grupo dos refilões... Mas o Mário Soares, o
socialista, como é que ele aparece aqui, sabendo-se que sempre foi um perigoso e
feroz contestatário da meritória obra do Senhor Professor Salazar? Não estou a
perceber... E o outro, o tal Cavaco, de onde é que este aparece? É certo que
tem um perfil físico assim um pouco parecido com o da Venerada Figura Salazarista,
mas... não será só o físico?... Sei lá, estou mesmo no meio de uma espécie de
nevoeiro, nem sei o que pensar disto tudo…
Enfim, esta época mais recente aparece, no meu
espírito, como uma nuvem escura, da qual chove uma confusão extraordinariamente
complexa de figuras e de ideias que não consigo acompanhar... Será sintoma de
ter entrado na terceira idade? Ou será pior do que isso?...
Depois destes nomes que citei, ainda me aparecem, na
minha nebulosa memória, mais outros, até então desconhecidos, como o de um tal
Guterres, do qual tenho a ideia de ser um homem muito bem falante, muito
simpático, mas um tanto idealista de mais, cheio de ideias generosas, o que é
muito perigoso, como nos ensinou antes o Senhor Professor (sabem de quem falo),
pois não é conveniente oferecer muita coisa ao povo, sobretudo ideias, já que
este tem tendência para exigir cada vez mais e mais – e depois, o que é que
fica para aqueles que realmente merecem, e que são, evidentemente, os fiéis
seguidores de quem manda?
Surgem-me ainda, na minha confusa memória actual, e neste
recente período, alguns outros nomes sem grande impacto, relacionados com a
vida nacional, tanto quanto me apercebo dela... É o caso de um tal Durão
Barroso, o qual parece que teve uma acção efémera, afastando-se de repente do
tachinho que tinha cá, para ir rapar um tachão que lhe ofereciam lá fora... Não
me perguntem se ele fez bem ou se fez mal, porque não sei responder. Em relação
ao país, não sei mesmo. Em relação a ele próprio... fez muito bem, é claro.
Depois, há outro nome que me soa a festa: o
nome de Santana, um alegado primeiro-ministro muito mediático, muito conotado
com folguedos, embora também com túneis e outras obras subterrâneas...
Mas tudo isto está bastante baralhado na minha memória.
Às vezes, chego a pensar que o tal “25 de Abril” sempre aconteceu… Mas não, não
pode ter acontecido! Nessa altura eu estava bem, acompanhei os factos, e por
isso os descrevi com toda a minúcia de que fui capaz… No entanto… Não sei… O
que está realmente a passar-se na nossa Pátria?... E na minha cabeça?...
Regresso ao passado. Coisas boas de agora que fizeram lembrar
coisas boas de antigamente. O reaparecimento de instituições, leis, posições e
imposições que nos transportaram de novo a um passado feliz, em que imperavam a
Boa Ordem, os Bons Costumes e o Respeitinho (que é uma coisa muito bonita)!
Ah! Parece-me distinguir, na névoa que me envolve,
algumas imagens reveladoras da realidade recente... Depois da desgraçada
"primavera marcelista" e dos tempos complicados que constituíram o
intermédio da nossa vivência, até aos tempos que se seguiram, em que se
perderam os bons valores que Sua Excelência o Professor Salazar aplicou a este
País – voltei a ver uns sinais de recuperação desses bons hábitos, dos bons
costumes, das boas regras que mantiveram a nossa Bem Amada Pátria entre as mais
invejadas pelos outros países do mundo.
Houve coisas copiadas das antigas, e outras
completamente novas, mas dentro do mesmo espírito dos velhos tempos.
Ou eu me enganava muito, ou estivemos então voltando,
devagar, devagarinho, àquele nosso tão feliz e tão recordado antigamente! Alguns sintomas dispersos
pareciam confirmar a minha suspeita...
Para começar, se é certo que ainda não voltáramos a
ter apenas aquele Partido Único, dantes representado pela gloriosa União
Nacional, já tínhamos uma aproximação, através de algo chamado Maioria
Absoluta, que vem a ser quase a mesma coisa, pois nada se fazia sem ela e nada
se fazia contra ela. Isto apesar de essa Maioria Absoluta ter sido obtida,
paradoxalmente, através da malfadada Democracia, essa coisa horrorosa que não
se percebe como é tão adorada por alguns!…
Um dos mistérios da Democracia
é mesmo o facto de ser amada e também detestada… Trata-se de um sistema que,
segundo dizia o Churchill, “é a pior
forma de governo, exceptuando todas as outras”… Foi o mesmo Churchill que
também disse: “O melhor argumento contra
a democracia é uma conversa de cinco minutos com o eleitor médio”… E, já
agora, para mostrar um pouco da minha cultura e erudição, citarei também Thomas
Jefferson, que foi Presidente dos Estados Unidos da América, e que disse um
dia: “A democracia não é nada mais nada
menos do que a regra segundo a qual 51% das pessoas usurpam os direitos das
outras 49%.”… Este era americano, mas houve um português, surrealista,
chamado Mário-Henrique Leiria, que pôs na boca de uma personagem de um dos seus
contos esta frase: “Desconfio que a Democracia
não resulta... Juntam-se astronautas, bodes, camponeses, galinhas, matemáticos
e virgens loucas e dão-se a todos os mesmos direitos. Isso parece-me um erro
cósmico.”… Eu atrever-me-ia a corrigir para “um erro cómico”.
No sistema de Maioria
Absoluta que por aqui vigorou, é evidente que não adiantavam ideias, sugestões,
projectos, que viessem de fora, das Oposições – por mais úteis, por mais
brilhantes, por mais necessários que fossem. A União Nacional (perdão, a
Maioria Absoluta) é que mandava e, contra ela, nada a fazer senão amochar e
aceitar. Alguns refilavam, mas não sei se não corremos o risco de, um dia, vermos
esses contestatários irem de "férias" para uma daquelas
"estâncias de repouso" como havia antigamente...
Depois, houve outros sintomas, menos visíveis mas
não menos significativos, do retorno ao que foi a nossa vida feliz, nos tempos
de Sua Excelência o Senhor Professor.
Por exemplo:
Anunciou-se a instituição do Documento Único,
centralizando todos os elementos relativos a cada cidadão – identidade,
família, saúde, fiscalidade, cadastro, talvez também manias e excentricidades
pessoais, etc. Ora isto pode ser muito útil para permitir, no futuro, controlar
mais facilmente cada pessoa, à maneira daquela fantasia do George Orwell em que
todos estávamos debaixo do olho de um Big Brother muito carinhoso, que zelava
por todos e cada um de nós, evitando-nos as angústias de pensar e de agir de
acordo com as nossas ideias particulares – o que só dá chatices, porque cada um
a pensar de sua maneira, e a manifestar as suas opiniões, acaba por dar muita
confusão, e isso atrapalha imenso o labor de qualquer Governo, como se sabe.
Outro sintoma
foi a existência de numerosas entidades controladoras, incluindo alguns
Senhores Ministros, tudo gente muito autoritária e com caras muito severas, com
a missão de fiscalizar a Comunicação, dando indicações, sugerindo temas e
nomes, criticando opções editoriais. E manifestando o desejo de acabar com o
sigilo profissional, com a reserva das fontes, com a indecente liberdade total
dos jornalistas… Acho muito bem todas estas iniciativas! Assim é que se governa
a opinião pública no bom sentido, mantendo-a pura e desinfectada de ideias
subversivas e deletérias. Já assim se fazia no tempo de Sua Excelência, e temos
exemplos internacionais muito significativos. Quem não se lembra, por exemplo,
do Excelentíssimo Herr Doutor Goebbels, que se suicidou heroicamente ao ver que
não conseguia terminar a sua obra de limpeza dos micróbios ideológicos do seu
povo?
Foi mesmo criada uma Entidade Reguladora, cuja
função não se limitava a fazer com que as comunicações ao Público fossem
equitativamente partilhadas por todas as forças em presença. Serviu,
essencialmente, para os seus membros passarem os dias a medir, linha a linha, as
notícias escritas, e a cronometrar, segundo a segundo, os noticiários
radiofónicos e televisivos, o que os manteve bastante entretidos e justificou
plenamente os ordenados ganhos.
Outras Entidades Fiscalizadoras trataram de atacar,
com a ferocidade exigida pela lei e pelo interesse público, coisas tão graves
como a venda de castanhas embrulhadas em papel de jornal, ou o uso de colheres
de pau na fabricação de pastéis de massa tenra.
À imagem e semelhança das antigas leis que obrigavam
a possuir uma licença para o uso de isqueiro, proibiu-se o vício do fumo logo
na origem, isto é, proíbiu-se o tabaco praticamente em toda a parte – excepto à
porta dos escritórios, lojas e outros estabelecimentos, onde se castigam os
fumadores, obrigando esses perigosos prevaricadores a apanhar gripes e
constipações, ao virem fumar para a rua, enchendo os passeios de “beatas”. Foi,
no entanto, assegurado o stock de vacinas anti-gripe para distribuição pela
população.
Leis igualmente muito severas impuseram o pagamento
de taxas e impostos aos fornecedores de bolos, rissóis de camarão, adereços,
enfeites, etc., para casamentos e copos-de-água, ficando ainda previsto que as
prendas aos noivos tivessem uma taxa especial, a ser cobrada para posterior
aplicação (penso eu) nos aumentos das pensões de reforma dos cantores e músicos
que animam essas festas com as suas canções
pimba.
Nas escolas, impõs-se um sistema muito avançado, distribuindo-se
uns computadores pequeninos que não serviram para nada, a não ser para dar
lucros fabulosos ao seu exclusivo fabricante. Nos estabelecimentos de ensino,
mais que os directores, os professores, e mesmo os alunos, passaram a ser importantes
as pautas, apresentando estas, de preferência, notas muito altas na Matemática
e na Língua Pátria, para mostrarmos ao Mundo que não somos nenhuns burros
analfabetos. E exigiu-se que os professores passassem boa parte do seu tempo a avaliar-se
uns aos outros e a preencher papéis, e menos tempo a preparar e a dar aulas, o
que demonstra que somos realmente os maiores do mundo em Burocracia Escolar,
coisa muito respeitável, como se sabe.
Chegou a haver umas tentativas de implementação
(esta palavra entrou de moda e é indispensável em qualquer lei ou diploma digno
desse nome) de um sistema de inquéritos secretos, em que os meninos deviam
informar quais os hábitos sexuais, não deles, mas dos seus paizinhos, tudo isto
em nome da investigação científica mais avançada. Lamentavelmente, alguém
resolveu anular esta iniciativa.
Outra tentativa muito interessante seria a de fazer
com que os meninos que recebessem, dos seus amados paizinhos, dádivas em
dinheiro superiores a quinhentos euros, pagassem um imposto sobre essas
dádivas. Parece que não pegou, não sei porquê, porque era uma ideia
interessantíssima para equilibrar o Orçamento do Estado, que estava, e está,
pelas ruas da amargura, ao contrário do que acontecia nos tempos do Senhor
Doutor!
Aliás, tal imposto estaria na mesma linha dos
descontos sobre as pensões dos reformados, que são justificadíssimos, para
evitar que os velhotes andem por aí a gastar o dinheirinho das reformas em
mariscadas ou em cruzeiros no Mediterrâneo!
Até na vida artística e cultural se voltou a uma
concentração de organismos de controlo, para evitar o desregramento e a
dispersão que se verificam nas mentes de certos artistas e certos criadores
mais atrevidos, sempre prontos a divulgar temas e ideias impróprias – sendo
esse controlo explicado, evidentemente, com o argumento das poupanças que é
preciso fazer para não haver desperdícios inúteis de ideias que não servem para
nada.
Também se inventou uma Entidade da Concorrência,
para verificar se havia moralidade nas actividades que se defrontam umas com as
outras, por terem interesses comuns, ou se os seus dirigentes eram pessoas
absolutamente impolutas, não tendo sido nomeados por serem compinchas de
confiança dos respectivos nomeadores.
No meio disto tudo, algumas vozes que atrevidamente
se foram levantando, com insinuações torpes e palavras bicudas, como
“corrupção”, “amiguismo”, “preferências partidárias”, etc., foram discretamente
silenciadas, pelo sistema habitual, da oferta de umas cómodas sinecuras que
fizeram calar esses bicos incómodos.
As anedotas, anteriormente tão populares, sobre as
mais Altas Figuras da Governação, incluindo o Senhor Primeiro-Ministro de então,
passaram a ser devidamente abafadas, através de discretas sugestões de
processos judiciais contra os engraçadinhos que as inventassem e divulgassem.
Instituições como sindicatos ou outras, que ameaçassem
fazer manifestações barulhentas, recebiam por vezes discretas visitas
policiais, com a única e inocente finalidade de saber quantos seriam os
manifestantes, a fim de lhes ser garantida protecção, acompanhamento e
distribuição de garrafinhas de água durante as passeatas.
E as Forças da Ordem passaram a ter uma espécie de
Intendente-Geral, de tipo Pina Manique, para coordenar a acção conjunta das várias
Guardas e Polícias, não se desse o caso de se juntarem duas dessas
instituições, em simultâneo, a dar tareia nos mesmos manifestantes, ou nos
mesmos assaltantes, o que seria um lamentável desperdício de meios… E esse
Intendente apenas dependia e apenas recebia ordens de uma única pessoa: Sua
Excelência o Professor Doutor Ant… - ah,
peço perdão, ia embalado! Queria eu dizer que ele apenas dependia, e depende,
do senhor Primeiro-Ministro.
E há mais, mas estes exemplos chegam, acho eu.
Em que belo País vivemos realmente? Somos os maiores do Mundo
em muitas coisas – embora sendo os menores em muitas outras...
Durante muitos anos, habituámo-nos a esta pergunta e
à obrigatória resposta:
- Quem manda?
– perguntava um.
- Salazar! –
respondiam todos.
Era assim nas manifestações e em todo o lado, nesses
anos gloriosos em que o Senhor Doutor mandava mesmo, em tudo e em todos.
Foi assim, até quando esse Primeiro-Ministro de que
tenho vindo a falar perdeu a tal Maioria Absoluta, em novas eleições, mas
continuou a governar e a usar o seu estilo mandão – que só abandonou quando,
para sua grande surpresa, perdeu as eleições seguintes, ganhas novamente por
uma Maioria Absoluta, mas agora de pernas-para-o-ar, isto é, de sentido
político inverso.
E era desse outro Primeiro-Ministro (não o actual,
mas o anterior), que eu queria falar, já que ele tão intensamente nos lembrava
a Alta Figura que tenho vindo a referir, no decorrer destas minhas memórias…
Mas… quem era ele? Devido a esta névoa que envolve o
meu espírito e a minha memória, escapa-se-me o nome, tal como me foge a sua
imagem física… Só sei que era alguém que se preocupava em pôr a nossa Pátria
Querida no topo… E qual topo? Todos!...
Durante muitos anos, tinha sido moda dizermos mal de
nós próprios, afirmando desdenhosamente que estávamos na cauda da Europa… Ora isso foi modificado radicalmente, através de
modernices tão importantes como, por exemplo, um chamado Sistema Simplex,
destinado a tornar mais rápidos e eficientes os nossos serviços,
particularmente os serviços públicos.
Devo dizer, honestamente, que não embarquei no
comboio dos elogios que se tornou moda aplicar ao tal Simplex… Sim, é verdade
que toda a gente se habituou, durante gerações, a refilar contra a burocracia e
as demoras que é preciso aguentar, quando se pretende obter um documento, uma
certidão, um despacho, que demoram eternidades a chegar às nossas mãos. No
entanto, a ideia de virar esta situação do avesso, resolvendo tais assuntos
instantaneamente, também tem os seus inconvenientes!… Se os funcionários passam
a despachar em cinco minutos aquilo que, dantes, despachavam em cinco meses…
correm o grave risco de ficarem sem emprego! Com tanta rapidez, arrumando os
“pendentes” até estes desaparecerem, chegam a um ponto em que talvez deixem de
ser, eles próprios, necessários! É preciso pensar nestas coisas…
Outra iniciativa no sentido de nos porem longe da
tal cauda da Europa foi, por exemplo,
a ideia da “empresa na hora”. Era bonito, mas apresentava os mesmos
inconvenientes que citei atrás. E as delongas que sempre existiram para fundar
uma empresa, mesmo pequenita, sempre deram uma certa emoção às pessoas que assim
passavam meses, ou anos, na expectativa, aprendendo a dominar a sua
impaciência, o que só lhes podia fazer bem aos nervos…
A difusão da Informática por toda a população foi
altamente benéfica para a imagem do País. Eis aqui outra ideia interessantíssima.
A distribuição de pequenos computadores baratos por todos os miúdos veio contribuir,
inegavelmente, pa k tds els falem i iskrevao Ptgz curreto.
E aquele pastor que foi o grande responsável pela
difusão dos telemóveis no País (aquele do “tou
xim!”, lembram-se?) deve estar agora muito mais feliz, pois já controlará
certamente o seu rebanho – por banda larga...
A nossa Bem Amada Pátria passou a estar muito mais
desenvolvida, valha a verdade. Somos os maiores em vários capítulos. Citemos apenas
alguns: telemóveis, consumo de
certas drogas, lixo nas ruas, vários tipos de poluição, ordenados baixos,
aplicação do IVA sobre as reformas, pedofilia, violência doméstica, desemprego,
demoras na Justiça – e ainda batemos outros recordes, como o da maior sandes de
pão-com-chouriço, e o da maior quota mundial de cuspidores-para-o-chão… Tudo
coisas importantíssimas, como se constata.
E a Dívida? A nossa Dívida passou a ser monumental,
para grande orgulho de muita gente. Nesse capítulo, pelo menos, adiantámo-nos
vertiginosamente em relação aos países nossos parceiros! A nossa Dívida poderá
(sem dívida… perdão, sem dúvida) figurar no famoso Livro Guiness de Recordes… Que
honra!
E havia a figura... Essa mesma, a figura física do Senhor
Primeiro-Ministro de então, estou a falar do penúltimo… Não me perguntem o nome
que ele tinha, porque, com todas estas recordações e constatações que tive de
elencar (outra palavra muito bonita, que está na moda), ficou cada vez maior a
confusão no meu espírito, a ponto de eu já não ter bem e certeza de estar a
falar de coisas reais ou de coisas imaginadas…
Sei que era ele quem mandava. E como ele mandava!
Como ele falava alto, como ele ralhava, como ele vociferava! Nem que fosse para
anunciar a inauguração de mais meio quilómetro de auto-estrada, fazia sempre um
discurso eloquente, exaltado e muito autoritário. Pode ser que não convencesse
ninguém, mas via-se que ele próprio estava absolutamente convencido. E isso é
que importava, porque… quem mandava era ele, mais ninguém!
Ah, mas porque é que não consigo dizer o nome dele?
Que raiva, esta dificuldade…
Ah, esperem! Acho que já sei! Sim, é isso!
Acendeu-se uma luz no meu cérebro, um clarão que parece vir de uma daquelas
lâmpadas economizadoras que há agora… e, de repente, houve um lampejo na
memória, uma revelação súbita!
Ele chamava-se… chamava-se… Vá lá, só mais um
pequeno esforço… Ele chamava-se… António de Oliveira SSSSS… SSSS…
Está quase a sair… Ah, como ele se parecia com…
António de Oliveira SSS…
Sim, é isso: António de Oliveira… Sócr…
Esqueçam. Não sai… De qualquer modo, este já não é –
já foi, já se afastou, já não manda nada. Emigrou e foi estudar, sinal de que
não sabia assim tanto como pensava…
Agora, manda um Primeiro-Ministro com ar mais calmo
e civilizado. Tem outro estilo, outra tranquilidade. E nós cá vamos andando, a
Passos de Coelho, isto é, aos saltos, de imposto em imposto, de desconto em
desconto, de crise em crise, de austeridade em austeridade.
Explicando melhor: quem mais ordena é um ministro
das Finanças, de ar calmo e palavra lenta, o qual, segundo as más-línguas do
costume, é um autêntico “Ministro das Fananças”…É
ele quem manda. Ou, como alguns dizem, manda a “Europa”, que é uma entidade que
ninguém parece saber ao certo quem é… mas que nos controla os gastos, já que,
pelos vistos, estamos mais ou menos falidos e vivemos de uns dinheiros que nos
vão emprestando – coisa impensável nos tempos do Senhor Professor, que pode não
ter feito grandes obras (bem, por acaso até fez algumas!) mas tinha sempre as
continhas em ordem, e até nos deixou algo a que chamaram “a pesada herança”,
consubstanciada numa grande quantidade de barras de ouro, guardadas nos
subterrâneos do Banco de Portugal, as quais, segundo as tais más-línguas, se
foram derretendo com o tempo…
Estamos, portanto, neste momento, no melhor dos
mundos... Ou não estamos?... Ai, esta minha cabeça… Vamos voltar a dominar o
Mundo, como no tempo de El-Rei Dom João Segundo? E a ter as continhas em ordem,
como no tempo do Senhor Doutor?…
Sei lá, o que é preciso é ter esperança e não dar
muita atenção aos Comentadores, aos Politólogos e outros chatos que invadiram
as nossas Televisões, todos a dar bitaites – e nenhum a dar soluções para os
nossos problemas…
Uns dizem que estamos definitivamente tramados.
Outros, que, nos nossos quase novecentos anos de história, já passámos por
tantas chatices, e vencemos tantas crises, que esta é, apenas, mais uma! E que,
graças à austeridade, daqui a nada estaremos outra vez ricos, com possibilidade
de recuperar o apartamento que, agora, entregámos provisoriamente ao Banco onde
tínhamos o empréstimo… e mais a capacidade de passar férias nas Caraíbas… e a
troca de popó todos os anos, por modelo mais avançado… Tudo isto regressará às
nossas mãos, se formos austeros! A austeridade é o nosso novo
Caminho-Marítimo-Para-A-Índia! E nós, nestas coisas que metem água, somos
excelentes! Somos os maiores!
Viva a austeridade! Viva o nosso país! Viva eu!
O quê? O que é que vocês querem? Não me interrompam!..
Ah, já é novamente hora da injecção? Pois é, agora
tenho que ir com estes senhores de bata branca…
Pronto, fica o resto da história para outra ocasião. Adeus!
FIM