08/01/2012

A TORRE DE DOM RAMIRES - Ínício e Capítulo I

  -    -  No seu romance" A Ilustre Casa de Ramires", Eça de Queiroz inseriu uma "novela histórica" que o protagonista, Gonçalo Mendes da Maia, ia escrevendo espaçadamente, à medida da sua inspiração e do tempo disponível.
Essa novela aparece intercalada no romance, em sucessivos capítulos soltos, o que torna a sua leitura, por vezes, algo incómoda.

O que se apresenta aqui é a novela "A Torre de Dom Ramires" como uma narrativa independente e completa – o que nos permite apreciar esta faceta do génio de Eça de Queiroz, ao abordar uma fascinante história de sabor medieval, com um vocabulário riquíssimo, o qual é objecto de um exaustivo Glossário.

ANTÓNIO GOMES DALMEIDA
Também autor de "Os Maias - Uma Análise Ilustrada"
- ed. D.Quixote 2008 -
oferece este seu trabalho a quem o queira ler
e apreciar, sem quaisquer encargos.

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A TORRE DE DOM RAMIRES
Uma Novela Histórica

inserida no romance

"A Ilustre Casa de Ramires"

de

EÇA DE QUEIROZ



Desde as quatro horas da tarde, no calor e silêncio do domingo de Junho, o Fidalgo da Torre (...) trabalhava.

Gonçalo Mendes Ramires (que naquela sua velha aldeia de Santa Ireneia, e na vila vizinha, a asseada e vistosa Vila-Clara, e mesmo na cidade, em Oliveira, todos conheciam pelo "Fidalgo da Torre") trabalhava numa Novela Histórica, "A Torre de D. Ramires".  

A Torre, a antiquíssima Torre, quadrada e negra sobre os limoeiros do pomar que em redor crescera, com uma pouca de hera no cunhal rachado, as fundas frestas gradeadas de ferro, as ameias e a miradoura bem cortadas no azul de Junho, robusta sobrevivênia do Paço acastelado, da falada Honra de Santa Ireneia, solar dos Mendes Ramires desde os meados do século X.

Gonçalo Mendes Ramires (...) era certamente o mais genuíno e antigo Fidalgo de Portugal. Raras famílias, mesmo coevas, poderiam traçar a sua ascendência, por linha varonil e sempre pura, até aos vagos Senhores que entre Douro e Minho mantinham castelo e terra murada quando os barões francos desceram, com pendão e caldeira1, na hoste do Borguinhão. E os Ramires entroncavam limpidamente a sua casa, por linha pura e sempre varonil, no filho do Conde Nuno Mendes, aquele agigantado Ordonho Mendes, senhor de Treixedo e de Santa Ireneia, que casou em 967 com Dona Elduara, Condessa de Carrion, filha de Bermudo, o Gotoso, Rei de Leão.

Mais antigo na Espanha que o Condado Portucalense, rijamente, como ele, crescera e se afamara o Solar de Santa Ireneia – resistente como ele às fortunas e aos tempos. E depois, em cada lance forte da História de Portugal, sempre um Mendes Ramires avultou grandiosamente pelo heroísmo, pela lealdade, pelos nobres espíritos. Um dos mais esforçados da linhagem, Lourenço, por alcunha o Cortador, colaço2 de Afonso Henriques (com quem na mesma noite, para receber a pranchada3 de Cavaleiro, velara as armas na Sé de Zamora), aparece logo na batalha de Ourique, onde também avista Jesus Cristo sobre finas nuvens de ouro, pregado numa cruz de dez côvados4. No cerco de Tavira, Martim Ramires, freire5 de Santiago, arromba a golpes de acha6 um postigo da Couraça, rompe por entre as cimitarras7 que lhe decepam as duas mãos. e surde8 na quadrela9 da torre albarrã10, com os dois pulsos a esguichar sangue, bradando alegremente ao Mestre: - "D. Payo Peres, Tavira é nossa! Real, Real por Portugal!" O velho Egas Ramires, fechado na sua Torre, com a levadiça erguida, as barbacãs11 eriçadas de frecheiros12, nega acolhida a El-Rei D. Fernando e Leonor Teles que corriam o Norte em folgares e caçadas – para que a presença da adúltera não macule a pureza extrema do seu solar! Em Aljubarrota, Diogo Ramires o Trovador desbarata um troço de besteiros13, mata o adiantado-mor14 de Galiza, e por ele, não por outro, cai derribado o pendão real de Castela, em que ao fim da lide seu irmão de armas, D. Antão de Almada, se embrulhou para o levar, dançando e cantando, ao Mestre de Avis. Sob os muros de Arzila combatem magnificamente dois Ramires, o idoso Soeiro e seu neto Fernão, e diante do cadáver do velho, trespassado por quatro virotes15, estirado no pátio da Alcáçova16 ao lado do corpo do Conde de Marialva – Afonso V arma juntamente Cavaleiros o Príncipe seu filho e Fernão Ramires, murmurando entre lágrimas: "Deus vos queira tão bons como esses que aí jazem..." Mas eis que Portugal se faz aos mares! E raras são então as armadas e os combates de Oriente em que se não esforce um Ramires – ficando na lenda trágico-marítima aquele nobre capitão do golfo Pérsico, Baltasar Ramires, que, no naufrágio da Santa Bárbara, reveste a sua pesada armadura e, no castelo de proa, hirto, se afunda em silêncio com a nau que se afunda, encostado à sua grande espada. Em Alcácer-Quibir, onde dois Ramires sempre ao lado de El-Rei encontram morte soberba, o mais novo, Paulo Ramires, pajem do Guião, nem leso17 nem ferido, mas não querendo mais vida pois que El-Rei não vivia, colhe um ginete18 solto, apanha uma acha de armas, e gritando; - "Vai-te, alma, que já tardas, servir a de teu senhor!" – entra na chusma19 mourisca e para sempre desaparece. Sob os Filipes, os Ramires, amuados, bebem e caçam nas suas terras. Reaparecendo com os Braganças, um Ramires, Vicente, governador das Armas de Entre-Douro e Minho por D. João IV, mete a Castela, destroça os Espanhóis do Conde de Venavente, e toma Fuente Guinal, a cujo furioso saque preside da varanda de um convento de Franciscanos, em mangas de camisa, comendo talhadas de melancia. Já, porém, como a nação, degenera a nobre raça... Álvaro Ramires, valido20 de D. Pedro II, brigão façanhudo, atordoa Lisboa com arruaças21, furta a mulher de um Vedor da Fazenda22 que mandara matar a pauladas por pretos, incendeia em Sevilha, depois de perder cem dobrões23, uma casa de tavolagem24, e termina por comandar uma urca25 de piratas na frota de Murad o Maltrapilho. No reinado do Sr. D. João V, Nuno Ramires brilha na Corte, ferra as suas mulas de prata, e arruína a casa celebrando sumptuosas festas de Igreja, em que canta no coro vestido com o hábito de Irmão Terceiro de S. Francisco. Outro Ramires, Cristóvão, presidente da Mesa de Consciência e Ordem, alcovita26 os amores de El-Rei D. José I com a filha do Prior de Sacavém. Pedro Ramires, Provedor e Feitor-Mor das Alfândegas, ganha fama em todo o Reino pela sua obesidade, a sua chalaça, as suas proezas de glutão no Paço da Bemposta com o Arcebispo de Tessalónica. Inácio Ramires acompanha D. João VI ao Brasil como Reposteiro-Mor27, negocia em negros, volta com um baú carregado de peças de ouro que lhe rouba um Administrador, antigo frade capuchinho, e morre no seu solar da cornada de um boi. O avô de Gonçalo, Damião, doutor liberal dado às Musas, desembarca com D. Pedro no Mindelo, compõe as empoladas proclamações do Partido, funda um jornal, o "Anti-Frade", e depois das Guerras Civis arrasta uma existência reumática em Santa Ireneia, embrulhado no seu capotão de briche28, traduzindo para vernáculo, com um léxicon e um pacote de simonte29, as obras de Valerius Flaccus. O pai de Gonçalo, ora Regenerador, ora Histórico, vivia em Lisboa no Hotel Universal, gastando as solas pelas escadarias do Banco Hipotecário e pelo lajedo da Arcada, até que um Ministro do Reino, cuja concubina, corista de S. Carlos, ele fascinara, o nomeou (para o afastar da Capital) Governador Civil de Oliveira. Gonçalo, esse, era bacharel formado com um R no terceiro ano.






1 – PENDÃO E CALDEIRA – Estandarte e símbolo que vão à frente das tropas.
2 – COLAÇO – Irmão de leite; indivíduo que é íntimo ou muito amigo de outro
3 – PRANCHADA – Pancada simbólica, com a lâmina da espada, ao ser armado cavaleiro.
4 – CÔVADO – Medida de comprimento, equivalente a cerca de 66 cm.
5 – FREIRE – Religioso; membro de ordem religiosa ou militar.
6 – ACHA – Arma com a forma de machado; acha de armas.
7 – CIMITARRAS – Espadas de lâminas curva, usadas pelos guerreiros muçulmanos; alfanges.
8 – SURDE – Surge; aparece.
9 – QUADRELA – Porção de muralha. 
10 – TORRE ALBARRÃ – Torre fortificada de onde se observam os arredores.
11 – BARBACÃS – Muros avançados, construídos entre as muralhas e o fosso.
12 – FRECHEIROS – Soldados que usam arcos e frechas (ou flechas).
13 – BESTEIROS – Soldados cujas armas são as bestas, armas portáteis que lançam setas curtas.
14 – ADIANTADO-MOR – Governador de província ou comarca, com poder militar.
15 – VIROTES – Setas ou dados curtos.
16 – ALCÁÇOVA – Local fortificado; fortaleza.
17 – LESO – Que sofreu lesão; ferido.
18 – GINETE – Cavalo de boa raça.
19 – CHUSMA – Multidão de indivíduos de classes baixas.
20 – VALIDO – Protegido.
21 – ARRUAÇAS – Motins; tumultos; desordens.
22 – VEDOR DA FAZENDA – Inspector de impostos.
23 – DOBRÕES – Antigas moedas, de alto valor.
24 – CASA DE TAVOLAGEM – Casa onde há jogos de tabuleiro.
25 – URCA – Embarcação à vela, com dois mastros.
26 – ALCOVITA – Serve de medianeiro em relações amorosas.
27 – REPOSTEIRO-MOR – Fidalgo encarregado de cuidar da cadeira senhorial.
28 – BRICHE – Tecido de lã castanho-escuro, felpudo e grosseiro.
29 – SIMONTE – Rapé.


NOTA – O Leitor encontrará o Glossário referente a cada Capítulo, no final de cada um deles – e, no fim do livro, um Glossário geral, por ordem alfabética.

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A TORRE DE DOM RAMIRES


Capítulo I

O velho Tructesindo Ramires, na sala de armas de Santa Ireneia, conversava com seu filho Lourenço e seu primo D. Garcia Viegas, o Sabedor, de aprestos de guerra60...

Guerra! Por quê? Acaso pelos cerros arraianos61 corriam, ligeiros entre o arvoredo, almogávares62 mouros? Não! Mas desgraçadamente, naquela terra já remida e cristã, em breve se cruzariam, umas contra outras, nobres lanças portuguesas (...) entre as discórdias de Afonso II e de seus irmãos por causa do testamento de El-Rei seu pai, D. Sancho I. (...) Já os infantes D. Pedro e D. Fernando, esbulhados, andavam por França e Leão. Já com eles abandonara o Reino o forte primo dos Ramires, Gonçalo Mendes de Sousa, chefe magnífico da casa dos Sousas. E agora, encerradas nos castelos de Montemor e de Esgueira, as senhoras infantas, D. Teresa e D. Sancha, negavam a D. Afonso o senhorio real sobre as vilas, fortalezas, herdades e mosteiros, que tão copiosamente lhes doara El-Rei seu pai. Ora, antes de morrer no Alcáçar63 de Coimbra, o Senhor D. Sancho suplicara a Tructesindo Mendes Ramires, seu colaço64 e Alferes-Mor, por ele armado Cavaleiro em Lorvão, que sempre lhe servisse e defendesse a filha amada entre todas, a Infanta D. Sancha, senhora de Aveiras.

Assim o jurara o leal Rico-homem junto do leito onde, nos braços do Bispo de Coimbra e do Prior do Hospital sustentando a candeia, agonizava, vestido de burel65 como um penitente, o vencedor de Silves... Mas eis que rompe a fera contenda entre Afonso II, asperamente cioso da sua autoridade de Rei – e as Infantas, orgulhosas, impelidas à resistência pelos freires66 do Templo e pelos Prelados67 a quem D. Sancho legara tão vastos pedaços do Reino! Imediatamente Alenquer e os arredores doutros castelos são devastados pela hoste real que recolhia das Navas de Tolosa. Então D. Sancha e D. Teresa apelam para El-Rei de Leão, que entra com seu filho D. Fernando por terras de Portugal a socorrer as donas oprimidas.

E neste lance o tio Duarte, no seu "Castelo de Santa Ireneia", interpelava com soberbo garbo o Alferes-Mor de Sancho I.

     Que farás tu, mais velho dos Ramires?
     Se ao pendão68 leonês juntas o teu
     Traís o preito69 que deves ao Rei vivo!
     Mas se as Infantas deixas indefesas
     Traís a jura que destes ao Rei morto!...

Esta dúvida, porém, não angustiara a alma desse Tructesindo rude e leal. (...) Nessa noite, apenas recebera pelo irmão do Alcaide de Aveiras, disfarçado em beguino70, um aflito recado da senhora D. Sancha – ordenava a seu filho Lourenço que, ao primeiro arrebol71, com quinze lanças, cinquenta homens de pé da sua mercê e quarenta besteiros72, corresse sobre Montemor. Ele no entanto daria alarido73 – e em dois dias entraria a campo com os parentes de solar, um troço mais rijo de Cavaleiros acontiados74 e de frecheiros75, para se juntar a seu primo, o Sousão, que na vanguarda dos leoneses descia de Alva-do-Douro.

Depois logo de madrugada o pendão dos Ramires, o Açor negro em campo escarlate, se plantara diante das barreiras gateadas76; e ao lado, no chão, amarrado à haste por uma tira de couro, reluzia o velho emblema senhorial, o sonoro e fundo caldeirão polido. Por todo o Castelo se apressavam os serviçais, despendurando as cervilheiras77, arrastando com fragor pelas lajes os pesados saios78 de malhas de ferro. Nos pátios os armeiros aguçavam ascumas79, amaciavam a dureza das grevas80 e coxotes81 com camadas de estopa. Já o adaíl82, na ucharia83, arrolara as rações de vianda84 para os dois quentes dias da arrancada. E por todas as cercanias de Santa Ireneia, na doçura da tarde, os atambores mouriscos, abafados no arvoredo, tararã! tararã! ou mais vivos nos cabeços, ratatã! ratatã! convocavam os Cavaleiros de soldo85 e a peonagem86 da mesnada87 dos Ramires.

No entanto, o irmão do alcaide, sempre disfarçado em beguino, de volta ao castelo de Aveiras com a boa nova de prestes socorros, transpunha ligeiramente a levadiça88 da cárcova89...

[E aqui, para alegrar tão sombrias vésperas de guerra, o tio Duarte, no seu Poemeto, engastara uma sorte galante:
                À moça, que na fonte enchia a bilha,
                O frade rouba um beijo e diz Amén!

A moça, furiosa, gritou: - Fu! Fu! vilão! E o beguino, assobiando, aligeirou as sandálias pelo córrego90, na sombra das altas faias, enquanto que por todo o fresco vale, até Santa Maria de Craquede, os atambores mouriscos, tararã! ratatã! convocavam a mesnada dos Ramires, na doçura da tarde...]

O imenso Castelo de Santa Ireneia (...) e a mesnada dos Ramires a apetrechar, sem que faltasse uma ração nos alforges, ou uma garruncha91 nos caixotes, sobre o dorso das mulas! Mas (...) já movera para fora do Castelo o troço de Lourenço Ramires, em socorro de Montemor, com um vistoso coriscar92 de capelos93 e lanças em torno ao pendão tendido.

E agora (...) era noite, e o sino de recolher tangera, e a almenara94 luzira na torre albarrã95, e Tructesindo Ramires descera à sala térrea da alcáçova96 para cear – quando fora, diante da cárcova, com três toques fortes anunciando filho de algo, uma buzina apressada soou. E, sem que o vílico97 tomasse permissão do senhor, o alçapão da levadiça rangeu nas correntes de ferro, ribombou cavamente nos apoios de pedra. Quem assim chegava em dura pressa era Mendo Pais, amigo de Afonso II e mordomo da sua Cúria, casado com a filha mais velha de Tructesindo, D. Teresa – aquela que, pelo ondeante e alvo pescoço, pelo pisar mais leve que um voo, os Ramires chamavam a Garça Real. O Senhor de Santa Ireneia correra ao patim para acolher, num abraço, o genro amado - membrudo98 Cavaleiro, com os cabelos ruivos, a alvíssima pele da raça germânica dos visigodos... E, de mãos enlaçadas, ambos penetraram nessa sala de abóbada, alumiada por tochas que toscos anéis de ferro seguravam, chumbados aos muros.

Ao meio pousava a maciça mesa de carvalho, rodeada de escanhos99 até o topo, onde se erguia, diante dum áspero mantel100 de linho coberto de pratos de estanho e de pichéis101 luzidios, a cadeira senhorial com o Açor grossamente lavrado nas altas espaldas102, e delas suspensa, pelo cinturão tauxiado103 de prata, a espada de Tructesindo. Por trás negrejava a funda lareira apagada, toda entulhada de ramos de pinheiro, com a prateleira guarnecida de conchas, entre bocais de sanguessugas, sob dois molhos de palmas trazidas da Palestina por Gutierres Ramires, o de Ultramar. Rente a um esteio104 da chaminé, um falcão, ainda emplumado, dormitava na sua alcândora105; e ao lado, sobre as lajes, numa camada de juncos, dois alões106 enormes dormiam também, com o focinho nas patas, as orelhas rojando. Toros de castanheiro sustentavam a um canto um pipo de vinho. Entre duas frestas engradadas de ferro, um monge, com a face sumida no capuz, sentado na borda de uma arca, lia, à claridade do candil107 que por cima fumegava, um pergaminho desenrolado...

[Assim Gonçalo adornara a soturna sala Afonsina com alfaias tiradas do tio Duarte, de Walter Scott, de narrativas do "Panorama". Mas que esforço!... E mesmo, depois de colocar sobre os joelhos do monge um fólio impresso em Mogúncia por Ulrick ZelI, desmanchara toda essa linha tão erudita, ao recordar, com um murro na mesa, que ainda a Imprensa se não inventara em tempos de seu avô Tructesindo, e que ao monge letrado apenas competia "um pergaminho de amarelada escrita..." ]

E caminhando nos ladrilhos sonoros, desde a lareira até o arco da porta cerrado por uma cortina de couro, Tructesindo, com a branca barba espalhada sobre os braços cruzados, escutava Mendo Pais, que, na confiança de parente e amigo, jornadeara sem homens da sua mercê108, cingindo apenas por cima do brial109 de lã cinzenta uma espada curta e um punhal sarraceno.

Açodado110 e coberto de pó correra Mendo Pais desde Coimbra para suplicar ao sogro em nome do Rei e dos preitos111 jurados, que se não bandeasse112 com os de Leão e com as senhoras Infantas. E já desenrolara ante o velho todos os fundamentos invocados contra elas pelos doutos Notários da Cúria – as resoluções do Concilio de Toledo! a bula do Apóstolo de Roma, Alexandre! o velho foro dos Visigodos!... De resto, que injúria fizera às senhoras Infantas seu real irmão, para assim chamarem hostes Leonesas a terras de Portugal? Nenhuma! Nem Regedoria nem renda dos castelos e vilas da doação de D. Sancho lhes negava o senhor D. Afonso. O Rei de Portugal só queria que nenhum palmo de chão português, baldio ou murado, jazesse fora de seu senhorio real. Escasso e ávido, El-Rei D. Afonso?... Mas não entregara ele à senhora D. Sancha oito mil morabitinos113 de ouro? E a gratidão da irmã fora o Leonês passando a raia e logo caídos os castelos formosos de Ulgoso, de Contrasta, de Urros e de Lanhoselo! O mais velho da casa dos Sousas, Gonçalo Mendes, não se encontrara ao lado dos Cavaleiros da Cruz na jornada das Navas, mas lá andava em recado das Infantas, como mouro, talando114 terra portuguesa desde Aguiar até Miranda! E já pelos cerros de Além-Douro aparecera o pendão renegado das treze arruelas115 – e por trás, farejando, a alcateia dos Castros! Carregada ameaça, e de armas cristãs, oprimindo o Reino – quando ainda Moabitas116 e Agarenos117 corriam à rédea solta pelos campos do Sul!... E o honrado Senhor de Santa Ireneia, que tão rijamente ajudara a fazer o Reino, não o deveria decerto desfazer arrancando dele os pedaços melhores para monges e para donas rebeldes! - Assim, com arremessados passos, exclamara Mendo Pais, tão acalorado do esforço e da emoção, que duas vezes encheu de vinho uma conca118 de pau e de um trago a despejou. Depois, limpando a boca às costas da mão trémula:

- Ide por certo a Montemor, senhor Tructesindo Ramires! Mas em recado de paz e boa avença, persuadir vossa senhora D. Sancha e as Senhoras Infantas que voltem honradamente a quem hoje contam por seu pai e seu Rei!

O enorme senhor de Santa Ireneia parara, pousando no genro os olhos duros, sob a ruga das sobrancelhas, hirsutas119 e brancas como sarças120 em manhã de geada:

- Irei a Montemor, Mendo Pais, mas levar o meu sangue e o dos meus para que justiça logre quem justiça tem.

Então Mendo Pais, amargurado, ante a heróica teima:

- Maior dó, maior dó! Será bom sangue de Ricos-homens vertido por más desforras... Senhor Tructesindo Ramires, sabei que em Canta-Pedra vos espera Lopo de Baião, o Bastardo, para vos tolher a passagem com cem lanças!

Tructesindo ergueu a vasta face – com um riso tão soberbo e claro que os alões rosnaram torvamente, e, acordando, o falcão esticou a asa lenta:

- Boa nova e de boa esperança! E, dizei, senhor Mordomo-Mor da Cúria, tão de feição e certa assim ma trazeis para me intimidar?

- Para vos intimidar?... Nem o Senhor Arcanjo S. Miguel vos intimidaria descendo do céu com toda a sua hoste e a sua espada de lume! De sobra o Rei, Senhor Tructesindo Ramires. Mas casei na vossa casa. E já que nesta lide não sereis por mim bem ajudado, quero, ao menos, que sejais bem avisado.

O velho Tructesindo bateu as palmas para chamar os sergentes121: - Bem, bem, a cear, pois! À ceia, Frei Múnio!... E vós, Mendo Pais, deixai receios.

- Se deixo! Não vos pode vir dano que me anseie de cem lanças, de duzentas, que vos surjam a caminho.

E, enquanto o monge enrolava o seu pergaminho, se acercava da mesa – Mendo Pais ajuntou com tristeza, desafivelando vagarosamente o cinturão da espada: - Só um cuidado me pesa. E é que, nesta jornada, senhor meu sogro, ides ficar de mal com o Reino e com o Rei.

- Filho e amigo! De mal ficarei com o Reino e como Rei, mas de bem com a honra e comigo!

CONTINUA


60 – APRESTOS DE GUERRA – Preparativos de batalha.
61 – CERROS ARRAIANOS – Colinas na fronteira.
62 – ALMOGÁVARES – Guerreiros dissimulados; guerrilheiros.
63 – ALCÁÇAR – Alcácer; castelo.
64 – COLAÇO – Irmão de leite; indivíduo que é íntimo ou muito amigo de outro.
65 – BUREL – Tecido grosseiro de lã.
66 – FREIRES – Religiosos; membros de ordem religiosa e militar.
67 – PRELADOS – Título honorífico de alguns dignitários religiosos.
68 – PENDÃO – Bandeira; estandarte.
69 – PREITO – Veneração; respeito.
70 – BEGUINO – Religioso que, embora observando uma regra, não pertence a uma Ordem.
71 – ARREBOL – Luz vermelha da madrugada.
72 – BESTEIROS – Soldados cujas armas são as bestas, armas portáteis que lançam setas curtas.
73 – DARIA ALARIDO – Espalharia clamor de combate.
74 – ACONTIADOS – Contados; avaliados.
75 – FRECHEIROS – Soldados que usam arcos e frechas (ou flechas).
76 – GATEADAS – Presas por gatos de metal.
77 – CERVILHEIRAS – Barretes de malha com fios metálicos, para proteger a cabeça e o pescoço.
78 – SAIOS – Vestimentas de guerreiros, de tecido grosseiro.
79 – ASCUMAS – Pequenas lanças de arremessar.
80 – GREVAS – Partes da armadura que recobrem as pernas, do joelho para baixo.
81 – COXOTES – Partes da armadura que protegem as coxas.
82 – ADAIL – Guia ou chefe de soldados.
83 – UCHARIA – Despensa; local onde se guardam os mantimentos.
84 – VIANDA – Qualquer espécie de comida, especialmente carne.
85 – CAVALEIROS DE SOLDO – Cavaleiros que recebem pagamento.
86 – PEONAGEM – Grupo de peões; soldados que marcham a pé.
87 – MESNADA – Grupo de homens que, mediante pagamento, servem como soldados.
88 – LEVADIÇA – Ponte que se pode levantar ou baixar.
89 – CÁRCOVA – Porta falsa de praça fortificada.
90 – CÓRREGO – Caminho aberto na terra pela chuva ou por um regato.
91 – GARRUNCHA – Anel de ferro opu de madeira.
92 – CORISCAR – Faiscar.
93 – CAPELOS – Capacetes; capuzes.
94 – ALMENARA – Farol ou fogueira acesa em torre ou lugar elevado.
95 – TORRE ALBARRÃ – Torre fortificada, de onde se observam os arredores.
96 – ALCÁÇOVA – local fortificado; fortaleza.
97 – VÌLICO – Feitor; regedor; administrador; autoridade de uma pequena localidade.
98 – MEMBRUDO – Musculoso.
99 – ESCANHOS – Tamboretes; escabelos; bancos.
100 – MANTEL – toalha de mesa.
101 – PICHÉIS – Vasos de estanho para beber vinho.
102 – ESPALDAS – Encosto; espaldar; costas (de cadeira).
103 – TAUXIADO – Lavrado; ornado; embutido.
104 – ESTEIO – Apoio; pilar; sustentáculo.
105 – ALCÂNDORA – Poleiro para aves de rapina.
106 – ALÕES – Grandes cães de guarda e de caça grossa.
107 – CANDIL – Candeeiro; lanterna.
108 – MERCÊ – Da sua mercê = da sua confiança.
109 – BRIAL – Espécie de túnica que o cavaleiro veste sobre a roupa interior.
110 – AÇODADO – Apressado.
111 – PREITOS – Veneração; respeito.
112 – BANDEASSE – Passasse para o inimigo.
113 – MORABITINOS – Moedas de ouro.
114 – TALANDO – Devastando.
115 – ARRUELAS – Pequenas rodas.
116 – MOABITAS – Antigo povo semítico.
117 – AGARENOS – Árabes.
118 – CONCA – Tigela; malga de madeira.
119 – HIRSUTAS – Eriçadas.
120 – SARÇAS – Mata densa; silvado.
121 – SERGENTES – Militares de categoria inferior à dos oficiais, mas comandando soldados.



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