13/01/2012

A TORRE DE DOM RAMIRES - Capítulo II

Publico hoje o Capítulo II da novela medieval "A TORRE DE DOM RAMIRES", que Eça de Queiroz inseriu no seu romance "A Ilustre Casa de Ramires", mas que ali era contada em pedaços intercalados, o que a torna um pouco incómoda de ler. Reuni todo o texto numa história completa, que publico aqui, capítulo a capítulo. Já inseri o primeiro, hoje sai o segundo (antecedido do texto "FONTES INSPIRADORAS", que convém ser lido previamente, para se entender a génese da história). Durante a próxima semana, publicarei os Capítulos III, IV e V, respectivamente, na segunda-feira, terça e quarta. Finalmente, sairá o GLOSSÁRIO completo - e assim fica ao vosso dispor esta obra-prima de Eça de Queiroz, cujo texto original foi rigorosamente respeitado. Espero que gostem tanto de a ler como eu gostei de a compilar e organizar, e por isso a ofereço...  Quem é amigo, quem é?...

Na semana seguinte, começarei então a publicar "O EROTISMO A NU".

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

 

AS FONTES INSPIRADORAS DA NOVELA HISTÓRICA

"A TORRE DE DOM RAMIRES"


"DONA GUIOMAR" 

- por Duarte Ramires, tio de Gonçalo

A velhíssima história da castelã, que, enquanto longe, nas guerras do Ultramar, o castelão barbudo e cingido de ferro atira a acha de armas às portas de Jerusalém, recebe ela na sua câmara30, com os braços nus, por noite de Maio e de lua, o pajem de anelados cabelos... Depois ruge o Inverno, o castelão volta, mais barbudo, com um bordão de romeiro. Pelo vílico31 do Castelo, homem espreitador e de amargos sorrisos, conhece a traição, a mácula no seu nome tão puro, honrado em todas as Espanhas! E ai do pajem! ai da dama! Logo os sinos tangem a finados. Já no patim da Alcáçova o verdugo32, de capuz escarlate, espera, encostado ao machado, entre dois cepos cobertos de panos de dó33... E no final choroso da D. Guiomar; como em todas essas histórias do Romanceiro de Amor, também brotavam rente às duas sepulturas, escavadas no ermo, duas roseiras brancas a que o vento enlaçava os aromas e as rosas. (...) Esses amores lamentosos passavam num solar de Riba-Coa: os nomes dos Cavaleiros, Remarigues, Ordonho, Froilás, Gutierres, tinham um delicioso sabor godo: em cada tira ressoavam bravamente os genuínos: "Bofé... Mentes pela gorja!"... "Pajem, o meu murzelo34!" e através de toda esta vernaculidade circulava uma suficiente turba35 de cavalariços36 com saios alvadios37, beguinos38 sumidos na sombra das cogulas39, ovençais40 sopesando fartas bolsas de couro, uchões41 espostejando42 nédios lombos de cerdo...



"O CASTELO DE SANTA IRENEIA"


Seu tio Duarte, irmão de sua mãe (uma senhora de Guimarães, da Casa das Balsas), nos seus anos de ociosidade e imaginação, de 1845 a 1850, entre a sua carta de Bacharel e o seu Alvará de Delegado, fora poeta – e publicara no "Bardo", semanário de Guimarães, um Poemeto em verso solto, o "Castelo de Santa Ireneia", que assinara com duas iniciais D. B. Esse castelo era o seu, o Paço antiquíssimo de que restava a negra torre entre os limoeiros da horta. E o Poemeto cantava, com romântico garbo, um lance de altivez feudal em que se sublimara Tructesindo Ramires, Alferes-Mor de Sancho I, durante as contendas de Afonso II e das senhoras Infantas.

Esse volume do "Bardo", encadernado em marroquim43, com o brasão dos Ramires, o açor negro em campo escarlate, ficara no Arquivo da Casa como um trecho da Crónica heróica dos Ramires. E muitas vezes em pequeno Gonçalo recitara, ensinados pela mamã, os primeiros versos do Poema, de tão harmoniosa melancolia:

                                                            Na palidez da tarde, entre a folhagem
                                                            Que o Outono amarelece...

Era com esse sombrio feito do seu vago avoengo44 que Gonçalo Mendes Ramires decidira em Coimbra, quando os camaradas da Pátria e das ceias o aclamavam "o nosso Walter Scott", compor um Romance moderno, dum realismo épico, em dois robustos volumes, formando um estudo ricamente colorido da Meia-Idade Portuguesa... E agora lhe servia, e com deliciosa facilidade, para essa Novela curta e sóbria, de trinta páginas, que convinha aos "Anais".

No seu quarto do "Bragança" abriu a varanda. E debruçado, acabando o charuto, na dormente suavidade da noite de Maio, ante a majestade silenciosa do rio e da Lua, pensava regaladamente que nem teria a canseira de esmiuçar as crónicas e os fólios maçudos45... Com efeito! toda a reconstrução histórica a realizara, e solidamente, com um saber destro46, o tio Duarte. O Paço acastelado de Santa Ireneia, com as fundas cárcovas47, a torre albarrã48, a alcáçova49, a masmorra50, o farol e o balsão51: o velho Tructesindo, enorme, e os seus flocos de cabelos e barbas ancestrais derramados sobre a loriga de malha52; os servos mouriscos, de surrões53 de couro, cavando os regueiros da horta; os oblatos54 resmungando à lareira as Vidas dos Santos; os pajens jogando no campo do tavolado55 – tudo ressurgia, com verídico realce, no Poemeto do tio Duarte!

Ainda recordava mesmo certos lances: o truão56 açoitado; o festim e os uchões que arrombavam as cubas de cerveja; a jornada de Violante Ramires para o Mosteiro de Lorvão...

                                                            Junto à fonte mourisca, entre os olmeiros,
                                                            A cavalgada pára...

O enredo todo com a sua paixão de grandeza bárbara, os recontros bravios em que se saciam a punhal os rancores de raça, o heróico falar despedido de lábios de ferro – lá estavam nos versos do titi, sonoros e bem balançados...

                                                            Monge, escuta! O solar de D. Ramires
                                                            Por si, e pedra a pedra se aluíra,
                                                            Se jamais um bastardo lhe pisasse,
                                                            Com sapato aviltado, as lajes puras!

Na realidade só lhe restava transpor as formas fluidas do Romantismo de 1846 para a sua prosa tersa e máscula (...), de óptima cor arcaica,,,

"Era nos Paços de Santa Ireneia, por uma noite de Inverno, na sala alta da Alcáçova..."

 "A Torre de D. Ramires"!... O grande feito de Tructesindo Mendes Ramires contado por Gonçalo Mendes Ramires!... E tudo na mesma Torre! Na Torre o velho Tructesindo pratica o feito; e setecentos anos depois, na mesma Torre, (...) Gonçalo conta o feito! - Caramba, menino, carambíssima! Isso é que é reatar a tradição! [dizia José Lúcio Castanheiro, amigo de Gonçalo, que dirigia os "Anais de Literatura e de História"].


"O FADO DOS RAMIRES"


- por Videirinha, "o Videirinha do violão", tocador afamado de Vila Clara.

Para o ajudante de farmácia, filho de um padeiro de Oliveira, a familiaridade daquele tamanho Fidalgo, que lhe apertava a mão na botica diante do Pires boticário e em Oliveira diante das autoridades, constituía uma glória, quase uma coroação (...). Era a sua famosa cantiga, o "fado dos Ramires", rosário de heróicas quadras celebrando as lendas da Casa Ilustre – que ele, desde meses, apurava e completava, ajudado na terna tarefa pelo saber do velho padre Soeiro, capelão e arquivista da Torre.

                                                            Quem te verá sem que estremeça,
                                                            Torre de Santa Ireneia,
                                                            Assim tão negra e calada,
                                                            Por noites de lua cheia...
                                                            Ai! Assim calada, tão negra,
                                                            Torre de Santa Ireneia!

                                                            Aí! Aí estás, forte e soberba,
                                                            Com uma história em cada ameia,
                                                            Torre mais velha que o reino,
                                                            Torre de Santa Ireneia!...

E começara a quadra a Múncio Ramires, Dente de Lobo, quando em cima uma sala, aberta à frescura da noite, se alumiou – e o Fidalgo da Torre, com o charuto aceso, se debruçou da varanda para receber a serenada. Mais ardente, quase soluçante, vibrou o cantar do Vídeirinha. Agora era a quadra de Gutierres Ramires, na Palestina, sobre o monte das Oliveiras, à porta da sua tenda, diante dos Barões que o aclamavam com as espadas nuas, recusando o Ducado de Galileia e o senhorio das Terras de Além-Jordão. - Que não podia, em verdade, aceitar terra, mesmo Santa, mesmo de Galileia...

                                                            Quem já tinha em Portugal
                                                            Terras de Santa Ireneia!

- Boa piada! - murmurou Gonçalo.

Videirinha, entusiasmado, entoou logo outra nova, trabalhada nessa semana – a do saimento57 de Aldonça Ramires, Santa Aldonça, trazida do mosteiro de Arouca ao solar de Treixedo, sobre o almadraque58 em que morrera, aos ombros de quatro Reis!

- Bravo! - gritou o Fidalgo pendurado da varanda. - Essa é famosa, oh Videirinha! Mas aí há Reis demais... Quatro Reis!

Enlevado, empinando o braço do violão, o ajudante de farmácia lançou outra, já antiga – a daquele terrível Lopo Ramires que, morto, se erguera da sua campa no Mosteiro de Craquede, montara um ginete59 morto, e toda a noite galopara através da Espanha para se bater nas Navas de Tolosa! Pigarreou – e, mais chorosamente, atacou a do Descabeçado:

                                                            Lá passa a negra figura...

Mas Gonçalo, que abominava aquela lenda, a silenciosa figura degolada, errando por noites de Inverno entre as ameias da Torre com a cabeça nas mãos – despegou da varanda, deteve a Crónica imensa:

- Toca a deitar, oh Videirinha, hem? Passa das três horas, é um horror. Olhe! O Titó e o Gouveia jantam cá na Torre, no domingo. Apareça também, com o violão e cantiga nova; mas menos sinistra... Bona sera! Que linda noite!

Atirou o charuto, fechou a vidraça da sala – a "sala velha", toda revestida desses denegridos e tristonhos retratos de Ramires que ele desde pequeno chamava as carantonhas dos vovós. E, atravessando o corredor, ainda sentia rolarem ao longe, no silêncio dos campos cobertos de luar, façanhas rimadas dos seus:

                                                            Ai! lá na grande batalha...
                                                            El-Rei Dom Sebastião...
                                                            O mais moço dos Ramires
                                                            que era pajem do guião...


30 – CÂMARA – Quarto.
31 – VÍLICO – Feitor; regedor; administrador; autoridade de uma pequena localidade.
32 – VERDUGO – Carrasco.
33 – PANOS DE DÓ – Panos de luto.
34 – MURZELO – Cavalo negro.
35 – TURBA – Multidão.
36 – CAVALARIÇOS – Homens que cuidam dos cavalos.
37 – SAIOS ALVADIOS – Vestimentas de guerreiros, de tecido grosseiro e esbranquiçado.
38 – BEGUINOS – Religiosos que, embora observando uma regra, não pertencem a uma Ordem.
39 – COGULAS – Túnicas largas, sem mangas, usadas por religiosos.
40 – OVENÇAIS – Despenseiros.
41 – UCHÕES – Ovençais, despenseiros.
42 – ESPOSTEJANDO – Cortando em postas.
43 – MARROQUIM – Pele curtida de bode ou de cabra.
44 – AVOENGO – Antepassado; avô.
45 – FÓLIOS MAÇUDOS – Livros ou manuscritos pesados ou difíceis de ler.
46 – SABER DESTRO – Sabedoria; habilidade.
47 – CÁRCOVAS – Portas falsas de praça fortificada.
48 – TORRE ALBARRÃ – Torre fortificada, de onde se observam os arredores.
49 – ALCÁÇOVA – Local fortificado; fortaleza.
50 – MASMORRA – Prisão subterrânea.
51 – BALSÃO – Estandarte.
52 – LORIGA DE MALHA – Couraça feita de malha ou escamas de ferro.
53 – SURRÕES – Vestes gastas e sujas.
54 – OBLATOS – Leigos que servem em ordens religiosas.
55 – CAMPO DO TAVOLADO – Terreiro.
56 – TRUÃO – Bobo.
57 – SAIMENTO – Cortejo fúnebre; funeral.
58 – ALMADRAQUE – Colchão grosseiro e rústico.
59 – GINETE – Cavalo de boa raça.

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------





Capítulo II

(...) Na frescura da madrugada, Lourenço Mendes Ramires, com o troço de cavaleiros e peonagem122 da sua mercê123, corria sobre Montemor em socorro das senhoras Infantas. Mas, ao penetrar no vale de Canta-Pedra, eis que o esforçado filho de Tructesindo avista a mesnada124 do Bastardo de Baião, esperando desde alva125 (como anunciara Mendo Pais) para tolher a passagem.

E então, nesta sombria Novela de sangue e homízios126, brotava inesperadamente, como uma rosa na fenda dum bastião127, um lance de amor, que o tio Duarte cantara no "Bardo" com dolente elegância.

Lopo de Balão, cuja beleza loura de Fidalgo godo era tão celebrada por toda a terra de Entre-Minho e Douro que lhe chamavam o Claro-Sol, amara arrebatadamente D. Violante, a filha mais nova de Tructesindo Ramires. Em dia de S. João, no solar de Lanhoso, onde se celebravam lides de touros e jogos de tavolagem128, conhecera ele a donzela esplêndida...

Donzela que o tio Duarte no seu Poemeto louvava com deslumbrado encanto:

Que líquido fulgor dos negros olhos!
Que fartas tranças de lustroso ébano!

E ela, certamente, rendera também o coração àquele moço resplandecente e cor de ouro, que, nessa tarde de festa, arremessando o rojão129 contra os touros, ganhara duas faixas bordadas pela nobre dona de Lanhoso – e à noite, no sarau, se requebrara com tão repicado garbo na dança dos Marchatins... Mas Lopo era bastardo130, dessa raça de Baião, inimiga dos Ramires por velhíssimas brigas de terras e precedências desde o Conde D. Henrique – ainda assanhadas depois, durante as contendas de D. Tareja e de Afonso Henriques, quando na cúria131 dos Barões, em Guimarães, Mendo de Baião, bandeado132 com o Conde de Trava, e Ramires o Cortador, colaço133 do moço Infante, se arrojaram às faces os guantes134 ferrados. E, fiel ao ódio secular, Tructesindo Ramires recusara com áspera arrogância a mão de Violante ao mais velho dos de Baião, um dos valentes de Silves, que pelo Natal, na Alcáçova135 de Santa Ireneia, lha pedira para Lopo, seu sobrinho, o Claro-Sol, oferecendo avenças136 quase submissas de aliança e doce paz.

Este ultraje revoltara o solar de Baião – que se honrava em Lopo, apesar de bastardo, pelo lustre da sua bravura e graça galante. E então Lopo, ferido doridamente no seu coração, mais furiosamente no seu orgulho, para fartar o esfaimado desejo, para infamar o claro nome dos Ramires – tentou raptar D. Violante. Era na Primavera, com todas as veigas137 do Mondego já verdes. A donosa138 senhora, entre alguns escudeiros da Honra e parentes, jornadeava de Treixedo ao mosteiro de Lorvão, onde sua tia D. Branca era abadessa...

Languidamente, no "Bardo", descantara o tio Duarte o romântico lance:

Junto à fonte mourisca, entre os olmeiros,
A cavalgadura pára...

E junto aos olmeiros da fonte surgira o Claro-Sol – que, com os seus, espreitava de um cabeço! Mas, logo no começo da curta briga, um primo de D. Violante, o agigantado senhor dos Paços de Avelim, o desarmou, o manteve um momento ajoelhado sob o lampejo e gume da sua adaga. E com vida perdoada, rugindo de surda raiva, o Bastardo abalou entre os poucos solarengos139 que o acompanhavam nesta afoita arremetida. Desde então mais fero ardera o rancor entre os de Baião e os Ramires. E eis agora, nesse começo da Guerra das Infantas, os dois inimigos rosto a rosto no vale estreito de Canta-Pedra! Lopo com um bando de trinta lanças e mais de cem besteiros140 da Hoste Real. Lourenço Mendes Ramires com quinze Cavaleiros e noventa homens de pé do seu pendão141.

Agosto findava: e o demorado estio amarelecera toda a relva, as pastagens famosas do vale, até a folhagem de amieiros e freixos pela beira do riacho das Donas que se arrastava entre as pedras lustrosas, em fios escassos, com dormido murmúrio. Sobre um outeiro, dos lados de Ramilde, avultava, entre possantes ruínas eriçadas de sarças142, a denegrida Torre Redonda, resto da velha Honra de Avelãs, incendiada durante as cruas rixas dos de Saízedas e dos de Landim, e agora habitada pela alma gemente de Guiomar de Landim, a Mal-casada. No cabeço fronteiro e mais alto, dominando o vale, o mosteiro de Recadâes estendia as suas cantarias novas, com o forte torreão, asseteado143 como o duma fortaleza – donde os monges se debruçavam, espreitando, inquietos com aquele coriscar144 de armas que desde alva enchia o vale. E o mesmo temor acossara as aldeias chegadas – porque, sobre a crista das colinas, se apressavam para o santo e murado refúgio do convento gentes com trouxas, carros toldados, magras filas de gados.

Ao avistar tão rijo troço de Cavaleiros e peões, espalhado até à beira do riacho por entre a sombra dos freixos, Lourenço Ramires sofreou145, susteve a leva, junto dum montão de pedras onde apodrecia, encravada, uma tosca cruz de pau. E o seu esculca146 que largara rédeas soltas, estirado sob o escudo de couro, para reconhecer a mesnada – logo voltou, sem que frecha ou pedra de funda o colhessem, gritando:

- São homens de Baião e da Hoste Real!

Tolhida pois a passagem! E em que desigualado recontro! Mas o denodado Ramires não duvidou avançar, travar peleja147. Sozinho que assomasse ao vale, com uma quebradiça lança de monte, arremeteria contra todo o arraial do Bastardo... No entanto já o Adail148 de Baião se adiantara, curveteando no rosilho149 magro, com a espada atravessada por cima do morrião150 que penas de garça emplumavam. E pregoava, atroava o vale com o rouco pregão:

- Deter, deter! que não há passagem! E o nobre senhor de Baião, em recado de El-Rei e por mercê de Sua Senhoria, vos guarda vidas salvas se volverdes costas sem rumor e tardança!

Lourenço Ramires gritou:

- A ele, besteiros!

Os virotes151 assobiaram. Toda a curta ala dos Cavaleiros de Santa Ireneia tropeou152 para dentro do vale, de lanças ristadas153. E o filho de Tructesindo, erguido nos estribões de ferro, debaixo do pano solto do seu pendão que apressadamente o Alferes sacara da funda154, descerrou a viseira do casco155 para que lhe mirassem bem a face destemida, e lançou ao Bastardo injúrias de furioso orgulho:

- Chama outros tantos dos vilões que te seguem que, por sobre eles e por sobre ti, chegarei esta noite a Montemor!

E o Bastardo, no seu fouveiro156, que uma rede de malha cobria, toda acairelada157 de ouro, atirava a mão calçada de ferro, clamava:

- Para trás, donde vieste, voltarás, burlão traidor, se eu por mercê mandar a teu pai o teu corpo numas andas158!

Estes feros159 desafios rolavam em versos serenamente compassados no Poemeto do tio Duarte. E depois de os reforçar, Gonçalo Mendes Ramires (sentindo a alma enfunada pelo heroísmo da sua raça como por um vento que sopra de funda campina) arrojou um contra o outro os dois bandos valorosos.

Grande briga, grande grita...

- Ala! Ala!

- Rompe! Rompe!

- Cerra por Baião!

- Casca pelos Ramires!

Através da grossa poeirada e do alevanto160 zunem os garruchões161, as rudes balas de barro despedidas das fundas. Almograves162 de Santa Ireneia, almograves da Hoste Real, em turmas ligeiras, carregam, topam, com baralhado arremesso de ascumas163 que se partem, de dardos que se cravam; e ambas logo refogem, refluem enquanto, no chão revolto, algum mal ferido estrebucha aos urros, e os atordoados cambaleando buscam, sob o abrigo do arvoredo, a fresquidão do riacho. Ao meio, no embate mais nobre da peleja, por cima dos corcéis164 que se empinam, arfando ao peso das coberturas de malha, as lisas pranchas dos montantes165 lampejam, retinem, embebidas nas chapas dos broquéis166; e já, dos altos arções167 de couro vermelho, desaba algum hirto e chapeado senhor, com um baque de ferragens sobre a terra mole. Cavaleiros e infanções168, porém, como num torneio, apenas terçam lanças169 para se derribarem, abolados170 os arneses171, com clamores de excitada ufania172; e sobre a vilanagem contrária, em quem cevam173 o furor da matança, se abatem os seus espadões, se despenham as suas achas, esmigalhando os cascos de ferro como bilhas de greda174.

Por entre a peonagem de Baião e da Hoste Real Lourenço Ramires avança mais levemente que ceifeiro apressado entre erva tenra. A cada arranque do seu rijo murzelo175, alagado de espuma, que sacode furiosamente a testeira rostrada176 – sempre, entre pragas ou gritos por Jesus! um peito verga trespassado, braços se retorcem em agonia. Todo o seu afã era chocar armas com Lopo. Mas o Bastardo, tão arremessado e afrontador em combate, não se arredara nessa manhã da lomba do outeiro onde uma fila de lanças o guardava, como uma estacada177; e com brados, não com golpes, aquentava a lide! No ardor desesperado de romper a viva cerca Lourenço gastava as forças, berrando roucamente pelo Bastardo com os duros ultrajes de churdo!178 e marrano!179 Já dentre a trama falseada do camalho180 lhe borbulhavam do ombro, pela loriga181, fios lentos de sangue. Um lanço de virotão182, que lhe partira as charneiras da greva183 esquerda, fendera a perna donde mais sangue brotava, ensopando o forro de estopa. Depois, varado por uma frecha na anca, o seu grande ginete184 abateu, rolou, estalando no escoucear as cilhas185 pregueadas. E, desembrulhado dos loros186 com um salto, Lourenço Ramires encontrou em roda uma sebe eriçada de espadas e chuços187, que o cerraram – enquanto do outeiro, debruçado na sela, o Bastardo bramava:

- Tende188! tende! para que o colhais às mãos!

Trepando por cima de corpos, que se estorcem sob os seus sapatos de ferro, o valente moço arremete, a golpes arquejados, contra as pontas luzentes que recuam, se furtam... E, triunfantes, redobram os gritos de Lopo de Baião:

- Vivo, vivo! tomade-lo vivo!

- Não, se me restar alma, vilão! – rugia Lourenço.

E mais raivosamente investia, quando um calhau agudo lhe acertou no braço – que logo amorteceu, pendeu, com a espada arrastando, presa ainda ao punho pelo grilhão189, mas sem mais servir que uma roca. Num relance ficou agarrado por peões que lhe filavam a gorja190, enquanto outros com varadas de ascuma lhe vergavam as pernas retesadas. Tombou por fim direito como um madeiro; e nas cordas com que logo o amarraram, jazeu hirto, sem elmo191, sem cervilheira192, os olhos duramente cerrados, os cabelos presos numa pasta de poeira e de sangue.

Eis pois cativo Lourenço Ramires! E, diante das andas feitas de ramos e franças de faias em que o estenderam, depois de o borrifarem à pressa com a água fresca do riacho – o Bastardo, limpando às costas da mão o suor que lhe escorria pela face formosa, pelas barbas douradas, murmurava, comovido:

- Ah! Lourenço, Lourenço, grande dor, que bem pudéramos ser irmãos e amigos!


Assim, ajudado pelo tio Duarte, por Walter Scott, por notícias do Panorama, compusera Gonçalo a mal-aventurada lide de Canta-Pedra. E com este desabafo de Lopo, onde perpassava a mágoa do amor vedado, fechou o Capítulo II, sobre que labutara três dias – tão embrenhadamente que em torno o Mundo como que se calara e se fundira em penumbra.





122 – PEONAGEM – Grupo de peões; soldados que marcham a pé.
123 – DA SUA MERCÊ – Da sua confiança.
124 – MESNADA – Grupo de homens que, mediante pagamento, servem como soldados.
125 – ALVA – Primeira claridade da manhã; alvor; aurora.
126 – HOMÍZIOS – Crimes.
127 – BASTIÃO – Obra de fortificação.
128 – JOGOS DE TAVOLAGEM – Jogos de tabuleiro.
129 – ROJÃO – Vara comprida, com grilhões na ponta, para espicaçar os touros.
130 – BASTARDO – Nascido fora do matrimónio legal; adulterino.
131 – CÚRIA – Assembleia.
132 – BANDEADO – Pertencente ao bando; cúmplice.
133 – COLAÇO – Irmão de leite; indivíduo que é íntimo ou muito amigo de outro.
134 – GUANTES – luvas de ferro.
135 – ALCÁÇOVA – Local fortificado; fortaleza.
136 – AVENÇAS – Presentes; vantagens; ofertas de paz.
137 – VEIGAS – Campos férteis.
138 – DONOSA – Donairosa; bela.
139 – SOLARENGOS – Donos de solares; fidalgos.
140 – BESTEIROS – Soldados cujas armas são as bestas, armas portáteis que lançam setas curtas.
141 – PENDÃO – Bandeira; estandarte.
142 – SARÇAS – Mata densa; silvado.
143 – ASSETEADO – Preparado para lançar setas (das seteiras).
144 – CORISCAR – Faiscar.
145 – SOFREOU – Deteve-se; travou.
146 – ESCULCA – Sentinela; vigia.
147 – PELEJA – Luta; batalha.
148 – ADAIL – Guia ou chefe de soldados.
149 – ROSILHO – Cavalo com pelo avermelhado e branco.
150 – MORRIÃO – Capacete com plumas.
151 – VIROTES – Setas ou dardos curtos.
152 – TROPEOU – Cavalgou.
153 – RISTADAS – Em riste; preparadas para atacar.
154 – FUNDA – Bolsa.
155 – CASCO – Capacete.
156 – FOUVEIRO – Cavalo castanho claro malhado de branco.
157 – ACAIRELADA – Adornada.
158 – ANDAS – Padiola.
159 – FEROS – Ferozes.
160 – ALEVANTO – Revolta; motim.
161 – GARRUCHÕES – Mecanismos para armar as bestas.
162 – ALMOGRAVES – Guerreiros dissimulados; guerrilheiros.
163 – ASCUMAS – Pequenas lanças de arremessar.
164 – CORCÉIS – Cavalos velozes usados em batalhas.
165 – MONTANTES – Grandes espadas manejadas com as duas mãos.
166 – BROQUÉIS – Escudos redondos.
167 – ARÇÕES – Armações de selas de cavalos.
168 – INFANÇÕES – Jovens nobres,
169 – TERÇAM LANÇAS – Lutam.
170 – ABOLADOS – Amolgados.
171 – ARNESES – Armaduras de guerreiros.
172 – UFANIA – Regozijo; orgulho.
173 – CEVAM – Saciam.
174 – GREDA – Barro.
175 – MURZELO – Cavalo negro.
176 – TESTEIRA ROSTRADA – Parte da cabeçada sobre a testa do cavalo.
177 – ESTACADA – Espaço defendido por estacas.
178 – CHURDO – Bruto; sujo.
179 – MARRANO – Judeu; imundo; excomungado.
180 – CAMALHO – Barrete de malha.
181 – LORIGA – Couraça feita de malha ou escamas de ferro.
182 – VIROTÃO – Seta ou dardo.
183 – GREVA – Parte da armadura que recobre as pernas, do joelho para baixo.
184 – GINETE – Cavalo de boa raça.
185 – CILHAS – Cintas largas, de couro ou de tecido, que apertam a sela ou carga.
186 – LOROS – Correias duplas, afiveladas à sela, para sustentar os estribos.
187 – CHUÇOS – Varas armadas de ferro.
188 – TENDE! – Esperai!
189 – GRILHÃO – Cadeia grossa dse anéis de ferro.
190 – GORJA – Garganta; pescoço.
191 – ELMO – Capacete.
192 – CERVILHEIRA – Barrete de malha com fios metálicos, para proteger a cabeça e o pescoço.

Sem comentários:

Enviar um comentário