16/01/2012

A TORRE DE DOM RAMIRES - Capítulo III


Capítulo III

Era no castelo de Santa Ireneia, naquele dia de Agosto em que Lourenço Ramires caíra no vale de Canta-Pedra, malferido e cativo do Bastardo de Baião. Pelo Almocadém193 dos peões, que, com o braço varado por uma chuçada, voltara em desesperada carreira ao Castelo, já Tructesindo Ramires conhecia o desventuroso desfecho da lide.

E neste lance o tio Duarte, no seu poemeto do "Bardo", com um lirismo mole, mostrava o enorme Rico-homem gemendo derramadamente através da sala de armas, na saudade desse filho, flor dos Cavaleiros de Riba-Cávado, derrubado, amarrado numas andas, à mercê da gente de Baião...

Lágrimas irrepresas lhe rebentam,
Arfa194 o arnês195 c'o soluçar ardente!...

Ora, levado no harmonioso sulco196 do tio Duarte, também ele, nas linhas primeiras do Capítulo, esboçara o velho abatido sobre um escanho, com lágrimas reluzentes sobre as barbas brancas, as duras mãos descaídas como as de lânguida dona – enquanto que nas lajes, batendo a cauda, os seus dois lebréus o contemplam numa simpatia ansiada e quase humana. Mas, agora, este choroso desalento não lhe parecia coerente com a alma tão indomavelmente violenta do avô Tructesindo. O tio Duarte, da casa das Balsas, não era um Ramires, não sentia hereditariamente a fortaleza da raça – e, romântico plangente de 1848, inundara logo de prantos românticos a face férrea de um lidador do século XII, dum companheiro de Sancho I! Ele porém devia restabelecer os espíritos do Senhor de Santa Ireneia dentro da realidade épica. E, riscando logo esse descorado e falso começo de Capitulo, retomou o lance mais vigorosamente, enchendo todo o castelo de Santa Ireneia duma irada e rija alarma.

Na sua lealdade sublime e simples, Tructesindo não cuida do filho – adia a desforra do amargo ultraje. E o seu esforço todo se comete a apressar os aprestos197 da mesnada, para correr ele sobre Montemor, e levar às Senhoras Infantas os socorros de que as privara a emboscada de Canta-Pedra! Mas quando o impetuoso Rico-homem com o Adaíl, na sala de armas, regia a ordem da arrancada – eis que os esculcas198, abrigados do calor de Agosto nos miradouros, enxergam ao longe, para além do arvoredo da Ribeira, coriscos de armas, uma cavalgada subindo para Santa Ireneia. O Vílico, o gordo e azafamado Ordonho, galga arquejando aos eirados da torre albarrã – e reconhece o pendão de Lopo de Baião, o seu toque de trompas à mourisca, arrastado e triste no silêncio dos campos. Então arqueia as cabeludas mãos na boca, atira o alarido:

- Armas, armas! que é gente de Baião!... Besteiros, às quadrelas199! Homens em chusma às levadiças da cárcova!

E Gonçalo, coçando a testa com a rama da pena, rebuscava ainda outros verídicos brados, de bravo som Afonsino (...).

Retomou languidamente o manuscrito da Novela. E, trincando a rama da pena, ainda procurou vozes, de bom sabor medieval, para aquele lance em que o Vílico e as roldas200 enxergavam a cavalgada do Bastardo, pela encosta da Ribeira, com refulgidos de armas, sob o rijo sol de Agosto (...) a sua imaginação (...) esvoaçava teimosamente (...) na quieta manhã de trabalho para que se preparara desde o almoço, relendo trechos do Poemeto do tio Duarte, folheando artigos do Panorama sobre as guerras de muralhas no século XII. Com um esforço de atenção erudita abancou, mergulhou a pena no tinteiro de latão que servira a três gerações de Ramires. E enquanto repassava as tiras trabalhadas, nunca o Castelo de Santa Ireneia lhe parecera tão heróico, de tão soberana estatura, sobre tamanha colina de História, sobranceando o Reino, que em torno dele se alargava, se cobria de vilas e messes201, pelo esforço dos seus castelões!

Temerosa, com efeito, se erguia a antiga Honra de Santa Ireneia, nessa Afonsina manhã de Agosto e rijo sol, em que o pendão do Bastardo surgira, entre fulgidos de armas, para além dos arvoredos da Ribeira! Já por todas as ameias se apinhavam os besteiros, espiando, encurvadas as bestas. Das torres e adarves202 subia o fumo grosso do breu, fervendo nas cubas, para despejar sobre os homens de Baião que tentassem a escalada. O Adaíl corria pelas quadrelas, relembrando as traça203s de defesa, revistando os feixes de virotões, os pedreguIhos de arremesso. E no imenso terreiro, por entre os alpendres colmados204, surdiam velhos solarengos, servos do forno, servos da abegoaria205, que se benziam com terror, puxavam pelo saião de algum apressado homem de rolda, para saberem da hoste que avançava. No entanto a cavalgada passara a Ribeira sobre a rude ponte de pau - já, por entre os álamos, serenamente se acercava do Cruzeiro de granito, outrora erguido nos confins da Honra por Gonçalo Ramires, o Cortador.

E, no sossego da manhã abrasada, mais fundamente ressoaram as buzinas do Bastardo, e o seu toque lento e triste à mourisca...

Mas quando Gonçalo, enlevado no trabalho, tentava reproduzir, com termos bem sonoros, avidamente rebuscados no Dicionário de Sinónimos, o toar arrastado das buzinas de Baião, sentiu realmente, do lado da Torre, um gemer de sons graves que crescia através dos limoeiros.

Deteve a pena – e eis que o Fado dos Ramires se eleva ofertadamente da horta, em serenata, para a varanda florida de madressilva:

Ora, quem te vê solitária,
Torre de Santa Ireneia...

(...) e o Fado recomeçou, mais meigo, mais glorificador:

Velha Casa de Ramires,
Honra e flor de Portugal!

(...)

Na livraria retomou com apetite, depois de lhes sacudir a poeira, as tiras da Novela sobre que emperrara (...) quando o Vílico, o velho Ordonho, reconhecia o pendão do Bastardo surgindo à borda da ribeira do Coice entre o coriscar de lanças empinadas, passando a antiga ponte de madeira, e, um momento sumido na verdura dos álamos, de novo avançando, alto e tendido, até o rude Cruzeiro de pedra de Gonçalo Ramires o Cortador. O gordo Ordonho então, atirando o brado de - "Prestes206, prestes! que é gente de Baião!" – descambava pelo escadão da muralha como um fardo que rola.

No entanto Tructesindo Ramires, no empenho de aprestar a sua mesnada e abalar sobre Montemor, regera já com o Adaíl a ordem da arrancada, mandando que as buzinas soassem mal o sol batesse na margela do Poço grande. E agora, na sala alta da Alcáçova, conversava como seu primo de Riba-Cávado e costumado camarada de armas, D. Garcia Viegas – ambos sentados nos poiais de pedra duma funda janela, onde uma bilha d'água com o seu púcaro refrescava entre vasos de manjericão. D. Garcia Viegas era um velho esgalgado e ágil, de escuro carão rapado, com uns miúdos olhos coruscantes – que merecera a alcunha de Sabedor pela viveza e suculência do seu dizer, as suas infinitas manhas de guerra, e a prenda de falar latim mais doutamente que um Clérigo da Cúria. Convocado por Tructesindo, como os outros parentes de solar, para engrossar a mesnada dos Ramires em serviço das Infantas, correra logo a Santa Ireneia fielmente com o seu pequeno poder de dez lanças – começando por saquear no caminho a herdade de Palha-Cá, dos de Severosa, que andavam com pendão alto na Hoste Real contra as Donas oprimidas. Tão rijamente se apressara que, desde a madrugada, apenas comera sobre a sela, em Palha-Cá, duas rodelas dos chouriços roubados. E com a sede da afogueada correria, ainda na emoção de tão amarga nova, a derrota de Lourenço Ramires seu afilhado, novamente enchia d'água o púcaro de barro – quando pela porta da sala de armas, que três cabeças de javali dominavam, rompeu o velho Ordonho esbaforido:

- Sr. Tructesindo! Sr. Tructesindo Ramires! o Bastardo de Baião passou a Ribeira, vem sobre nós com grande troço de lanças!

O velho Rico-homem saltou do poial. E arremessando a mão cabeluda, cerrada com sanha207, como se já pela gorja empolgasse o Bastardo:

- Pelo sangue de Cristo! em boa hora vem que nos poupa caminho! Hem, Garcia Viegas? A cavalo e sobre ele...?

Mas, rente aos trôpegos calcanhares de Ordonho, correra um coudel208 de besteiros, que gritou dos umbrais, sacudindo o capelo de couro:

- Senhor! Senhor! A gente de Baião parou ao Cruzeiro! E um Cavaleiro moço, com um ramo verde, está diante das barbacãs, como trazendo mensagem...

Tructesindo bateu o sapato de ferro sobre as lajes, indignado com tal embaixada mandada por tal vilão... Mas Garcia Viegas, que dum sorvo enxugara o púcaro, recordou serenamente e lealmente os preceitos:

- Tende209, tende, primo e amigo! Que, por uso e lei de aquém e de além serras, sempre mensageiro com ramo se deve escutar...

- Seja pois! – bradou Tructesindo. – Ide vós fora às barreiras com duas lanças, Ordonho, e sabei do recado!

O Vílico rebolou pela denegrida escada de caracol até ao patim da Alcáçova. Dois acostados210, de lança ao ombro, recolhendo de alguma rolda, conversavam com o armeiro, que sarapintara de amarelo e escarlate cabos de ascumas novas e as enfileirava contra o muro para secarem.

- Por ordem do Senhor! – gritou Ordonho. – Lança direita, e comigo às barbacãs, a receber mensagem!...

Ladeado pelos dois homens que se aprumaram, atravessou as barreiras; e pelo postigo da barbacã, que uma quadrilha de besteiros guardava, saiu ao terreiro da Honra, largueza de terra calcada, sem relva ou árvore, onde se erguiam ainda as traves carcomidas duma antiga forca, e se amontoavam agora, para os consertos da Alcáçova, ripas de madeira, e grossas cantarias lavradas. Depois, sem arredar do umbral, empinando o ventre entre os dois acostados, bradou ao moço Cavaleiro, que esperava sob o rijo sol, sacudindo os moscardos com o seu ramo de amoreira:

- Dizei de que gente sois! e a que vindes! e que credência211 trazeis!...

E como arqueara logo a mão inquieta sobre a orelha – o Cavaleiro, serenamente, entalando o ramo entre o coxote212 e o arção213, arqueou também os dois guantes214 reluzentes de escamas na abertura do casco, bradou:

- Cavaleiro do solar de Baião!... Credência não trago que não trago embaixada... Mas o Sr. D. Lopo ficou além ao Cruzeiro, e deseja que o nobre Sr. da Honra, o Sr. Tructesindo Ramires, o escute do eirado da barbacã...

O Vílico saudou – recolheu pela poterna215 abobadada da torre albarrã, murmurando para os dois acostados:

- O Bastardo vem a tratar o resgate do Sr. Lourenço Ramires...

Ambos rosnaram:

- Feio feito.

Mas, quando Ordonho ofegante se apressava para a Alcáçova, encontrou no pátio Tructesindo Ramires – que, na irada impaciência daquelas delongas do Bastardo, descera, todo armado. Sobre o comprido brial de lã verde-negra, que recobria a vestidura de malha, as suas barbas rebrilhavam, mais brancas, atadas num grosso nó como a cauda dum corcel. Do cinturão tauxiado216 de prata pendia a um lado o punhal recurvo, a buzina de marfim –  ao outro uma espada goda, de folha larga, com alto punho dourado onde cintilava uma pedra rara trazida outrora da Palestina por Gutierres Ramires, o de Ultramar. Um sergente conduzia sobre uma almofada de couro os seus guantes, o seu capelo217 redondo, de viseira gradada218, como usara El-Rei D. Sancho; outro carregava o imenso broquel219, da forma dum coração, revestido de couro escarlate, com o Açor negro rudemente pintado, esgalhando as garras furiosas. E o Alferes, Afonso Gomes, seguia com o guião enrolado na funda de lona.

Com o velho Rico-homem descera D. Garcia Viegas, e os outros parentes do Solar – o decrépito Ramiro Ramires, um veterano da tomada de Santarém, torcido pelos reumatismos como a raiz de um roble, e arrimando os passos trémulos, não a um bastão, mas a um chuço; o formoso Leonel, o mais moço dos Samoras de Condufe, o que matara os dois ursos dos brejos de Cachamuz e que tão bem trovava; Mendo de Briteiros, o das barbas vermelhas, grande queimador de bruxas, ledo arranjador de folgares e danças; e o agigantado Senhor dos Paços de Avelim, todo coberto, como um peixe fabuloso, de escamas que reluziam, Como o sol se acercava da margela do Poço grande, marcando a hora da arrancada sobre Montemor – já, dos fundos alpendres que escondiam os campos do tavolado, os cavalariços puxavam os ginetes de guerra, com as suas altas selas pregueadas de prata, as ancas e os peitos resguardados por coberturas de couro franjado que rojavam nas lajes. Por todo o Castelo se espalhara que o Bastardo, depois da lide fatal aos Ramires, correra de Canta-Pedra, ameaçava a Honra; - e debruçados dos passadiços que ligavam a muralha aos contrafortes da Alcáçova, ou metidos por entre os engenhos de arremesso que atulhavam as corredouras, os moços da ucharia, os servos das hortas, os vilões acolhidos para dentro das barbacãs, espreitavam o Senhor de Santa Ireneia e aqueles Cavaleiros fortes, com ansiedade, tremendo do assalto dos de Baião e dessas horrendas bolas de ferro, cheias de fogo, que agora as mesnadas Cristãs arrojavam tão destramente como as hordas Sarracenas. No entanto com a sua gorra esmagada contra o peito, Ordonho, arfando, apresentava a Tructesindo o recado do Bastardo:

- É Cavaleiro moço, não traz credência... O Sr. Bastardo espera ao Cruzeiro. E pede que o atendais da quadrela das barbacãs...

- Que se acerque, pois! – gritou o velho. – E com quantos queira dos vilões que o seguem!

Mas Garcia Viegas, o Sabedor, sempre avisado, com a sua esperta mansidão:

- Tende, primo e amigo, tende! Não subais vós à tranqueira antes que eu me assegure se Baião nos vem com arteirice ou falsura.

E, entregando a sua pesada lança de faia a um donzel, enfiou pela escada soturna da Torre albarrã. Em cima, no eirado, sussurrando um chuta! chuta! à fila de besteiros que guarnecia as ameias, atenta e com a besta encurvada – penetrou no miradouro, espiou pela seteira. O arauto de Baião galopara para o Cruzeiro, que uma selva movediça de lanças rodeava coriscando. E curto recado lançou – porque logo, no seu fouveiro220 acobertado por uma rede de malha acairelada221 de ouro, Lopo de Baião despegou do denso troço de Cavaleiros com a viseira erguida, sem lança ou ascuma de monte, e ociosas sobre o arção da sela mourisca as mãos onde se enrodilhavam as bridas222 de couro escarlate. Depois, a um toque arrastado de buzina, avançou para as barbacãs da Honra, vagarosamente, como se acompanhasse um saimento223.

Não movera o seu pendão amarelo e negro. Apenas seis infanções o escoltavam, também sem lança ou broquel, com sobrevestes de pano roxo sobre os saios de malha. Atrás quatro alentados besteiros carregavam aos ombros umas andas, toscamente armadas com troncos de árvores, onde um homem jazia estirado, como morto, coberto, contra o calor e os moscardos, por leves folhagens de acácia. E um monge seguia numa mula branca, segurando misturadamente com as rédeas um crucifixo de ferro, sobre que pendia a orla do seu capuz e uma ponta de barba negra.

Da seteira, mesmo sem descortinar por entre a camada de ramagens a face do homem estendido nas andas, o Sabedor adivinhou Lourenço Ramires, o doce afilhado que tanto amara, que tão bem ensinara a terçar224 lanças e a treinar falcões. E cerrando os punhos, gritando surdamente: "Bem prestos! Besteiros, bem prestos!" – desceu a escura escadaria, tão arremessado pela cólera e pela mágoa que o seu elmo cavamente bateu contra o arco da porta, onde o esperava Tructesindo com os Cavaleiros parentes.

- Senhor primo! – bradou. – Vosso filho Lourenço está diante das barreiras da Honra deitado sobre umas andas!

Com um rosnar de espanto, um atropelo dos sapatos de ferro sobre as lajes sonoras, todos seguiram pela poterna da albarrã o Rico-homem – até o escadão de madeira que se empurrava contra a quadrela das barbacãs. E, quando o enorme velho surgiu no eirado, um silêncio pesou, tão ansioso, que se sentia para além do vergel225 o chiar triste e lento da nora e o latir dos mastins.

No terreiro, em frente à cancela gateada, o Bastardo esperava, imóvel sobre o seu ginete, com a formosa face bem levantada, a face de Claro-Sol, onde as barbas aneladas, caindo nas solhas226 do arnês227, rebrilhavam como ouro novo. Vergando o capelo de ouropel228, saudou Tructesindo com gravidade e preito229. Depois alçou a mão, que descalçara do guante. E num considerado e sereno falar:

- Senhor Tructesindo Ramires, nestas andas vos trago vosso filho Lourenço, que em lide leal, no vale de Canta-Pedra, colhi prisioneiro e me pertence pelo foro dos Ricos-homens de Espanha. E de Canta-Pedra caminhei com ele para vos pedir que entre nós findem estes homizios230 e estas feias brigas que malbaratam sangue de bons Cristãos... Senhor Tructesindo Ramires, como vós venho de Reis. De D. Afonso de Portugal recebi a pranchada de Cavaleiro. Toda a nobre raça de Baião se honra em mim... Consenti em me dar a mão de vossa filha D. Violante, que eu quero e que me quer, e mandai erguer a levadiça para que Lourenço ferido entre no seu solar e eu vos beije a mão de pai.

Das andas, que estremeceram sobre os ombros dos besteiros, um desesperado brado partiu:

- Não, meu pai!

E hirto na borda do eirado, sem descruzar os braços, o velho Tructesindo retomou o brado – que por todo o terreiro da Honra rolou, mais arrogante e mais cavo:

- Meu filho, antes de mim, te respondeu, vilão!

Como se uma pontoada de lança lhe topasse o peito, o Bastardo vacilou na alta sela; e, colhido pelo repuxão das rédeas, o seu fouveiro recuou alteando a testeira dourada. Mas, a um novo arremesso, repulou contra a cancela. E Lopo de Baião, erguido sobre os estribos, gritava com ânsia, com furor:

- Sr. Tructesindo Ramires, não me tenteis!...

- Arreda, vilão e filho de viloa, arreda! – clamou soberbamente o velho, sem desprender os braços de sobre o levantado peito, na sua rija imobilidade e teima, como se todo o corpo e alma fossem de rijo ferro.

Então o Bastardo, arrojando o guante contra o muro da barbacã, rugiu, chamejante e rouco:

- Pois pelo sangue de Cristo e pela alma de todos os meus te juro, que se me não dás neste instante essa mulher que eu quero e que me quer, sem filho ficas, que por minhas mãos, diante de ti e nem que todo o Céu acuda, lhe acabo o resto da vida!

Já na mão lhe lampejava um punhal. Mas num ímpeto de sublime orgulho, um ímpeto sobre-humano, em que cresceu como outra escura torre entre as torres da Honra, Tructesindo arrancara a espada:

- Com esta, covarde! com esta! Para que seja puro, não vil como o teu, o ferro que atravessar o coração de meu filho!

Furiosamente, com as duas possantes mãos, arremessou a espada, que rodopiou silvando e faiscando, se cravou no duro chão, onde tremia, ainda faiscava, como se uma cólera heróica também a animasse. E no mesmo relance, com um urro, um salto do ginete, o Bastardo, debruçado do arção, enterrara o punhal na garganta de Lourenço – em golpe tão cravado que o esguicho do sangue lhe salpicou a clara face, as barbas de ouro.

Depois foi uma bruta abalada. Os quatro besteiros sacudiram para o chão as andas, o corpo morto enrodilhado nos ramos – e atiraram pelo terreiro, como lebres em clareira, atrás do monge que se agachava agarrado às crinas da mula. Numa curta desfilada o Bastardo, os seis Cavaleiros, gritando o alarme, mergulharam no arraial que estacara ao Cruzeiro. Um tumulto remoinhou em torno ao devoto pilar. E em rodilhado tropel a mesnada desenfreou para a Ribeira, varou a velha ponte, logo enublada em pó e sumida para além do arvoredo, num fugidio coriscar de capelinas231 e de lanças apinhadas.

Uma alta grita, no entanto, atroara as muralhas de Santa Ireneia! Virotes, flechas, balas de fundas assobiavam, despedidas no mesmo furioso repente, sobre o bando de Baião – mas apenas um dos besteiros que carregara as andas tombou, estrebuchando, com uma flecha na ilharga. Pela cancela das barreiras já Cavaleiros e donzéis de armas se empurravam desesperadamente para recolher o corpo de Lourenço Ramires. E Garcia Viegas, os outros parentes, galgaram ao eirado da barbacã, donde Tructesindo se não arredara, rígido e mudo, fitando as andas e seu filho estatelado com elas sobre o terreiro da sua Honra. Quando, ao rumor, ele pesadamente se voltou – todos emudeceram ante a serenidade da sua face, mais branca que as brancas barbas, duma morta brancura de lápide, com os olhos ressequidos e cor de brasa, a latejar, a refulgir, como os dois buracos dum forno. Com a mesma sinistra serenidade, tocou no ombro do velho Ramiro, que tremia arrimado ao seu chuço. E numa vagarosa e vasta voz:

- Amigo! cuida tu do corpo de meu filho, que a alma ainda hoje, por Deus! lha vou eu sossegar!...

Afastou aqueles senhores emudecidos de assombro e de emoção – e baixou pela gasta escada de madeira, que rangia sob o peso do enorme Rico-homem carregado de ira e dor.

Nesse momento, entre besteiros e serviçais que se atropelavam – o corpo de Lourenço Ramires transpunha o portelo das barbacãs, segurado pelo formoso Leonel e por Mendo de Briteiros, ambos afogueados de lágrimas e rouquejando ameaças furiosas contra a raça de Baião. Atrás o trôpego Ordonho gemia, abraçado à espada de Tructesindo, que apanhara no chão do Terreiro e que beijava como para a consolar. À borda do fosso uma aveleira espalhava a sombra leve num bronco tabuão232 pregado sobre toros – de onde, aos domingos, com o adanel233 dos besteiros, Lourenço dirigia os jogos de besta e frecha, distribuindo fartamente as recompensas de bolos de mel e de vinho em pichéis. Sobre essas tábuas o estiraram – recuando todos depois, enquanto aterradamente se benziam. Um Cavaleiro de Briteiros, temendo por aquela alma desamparada e sem confissão, correra à capela da Alcáçova procurar Frei Múncio. Outros, rodeando toda a muralha até o Baluarte-Velho, gritavam, com desesperados acenos, para o torreão escalavrado, onde, como um mocho, habitava o Físico. Mas o certeiro punhal do Bastardo acabara o denodado Lourenço, flor e regra de Cavaleiros por toda a terra de Riba-Cávado... E que lastimoso e desfeito – com suja terra na face, a garganta empastada de sangue negro, as malhas do saio rotas sobre os ombros e embebidas nas carnes retalhadas, e nua, sem greva, toda inchada e roxa, a perna ferida em Canta-Pedra, onde mais sangue e lama se empastavam!

Tructesindo descia, lento e rígido. E as secas brasas dos seus olhos mais se incendiam, enquanto, através do dorido silêncio, se acercava do corpo de seu filho. Diante do banco ajoelhou, agarrou a arrefecida mão que pendia; e, junto à face manchada de sangue e terra, segredou, de alma para alma, num abafado murmúrio, que não era de despedida mas de alguma suprema promessa, e que findou num beijo demorado sobre a testa, onde uma réstia de sol rebrilhou, dardejada dentre as folhas da aveleira. Depois erguido num arrebate, atirando o braço como para nele recolher toda a força da raça, gritou:

- E agora, senhores, a cavalo, e vingança brava!

Já pelos pátios, em torno da Alcáçova, corria um precipitado fragor de armas. Aos ásperos comandos dos almocadéns as filas de besteiros, de arqueiros, de fundibulários234 rolavam dos adarves dos muros para cerrar as quadrilhas. Rapidamente, os cavalariços da carga amarravam sobre o dorso das mulas os caixotes do almazém, os alforjes da trebalha235. Pelas portas baixas da cozinha, peões e sergentes, antes de largar, bebiam à pressa uma conca de cerveja. E no campo das barreiras os Cavaleiros, chapeados de ferro, carregadamente se içavam, com a ajuda dos donzéis, para as altas selas dos ginetes – logo ladeados pelos seus infanções236 e acostados, que aprumavam a lança sobre o coxote assobiando aos lebréus.

Enfim o Alferes, Afonso Gomes, sacou da funda e desfraldou o pendão num embalanço largo em que as asas do Açor negrejaram, abertas, como soltando o vôo enfurecido. O grito agudo do adail ressoara por toda a cerca – Ala! ala! De cima de um marco de pedra, junto ao postigo da barbacã, Frei Múncio estendia as magras mãos ainda trémulas, abençoava a hoste. Então Tructesindo, sobre o seu murzelo237, recebeu do velho Ordonho a espada, de que tão terrivelmente se apartara. E, estendendo a reluzente folha para as torres da sua Honra como para um altar, bradou:

- Muros de Santa Ireneia, não vos torne eu a ver, se em três dias, de sol a sol, ainda restar sangue maldito nas veias do traidor de Baião!

E, escancaradas as barreiras, a cavalgada tropeou em torno ao pendão solto – enquanto, na torre de Almenara, sob o parado esplendor da sesta de Agosto, o sino grande começava a tanger a finados.


193 – ALMOCADÉM – Capitão de infantaria.
194 – ARFA – Respira.
195 – ARNÊS – Armadura de guerreiro.
196 – SULCO – Estilo.
197 – APRESTOS – Preparativos.
198 – ESCULCAS – Sentinelas; vigias.
199 – QUADRELAS – Porções de muralhas.
200 – ROLDAS – Rondas.
201 – MESSES – Searas.
202 – ADARVES – Caminhos estreitos sobre os muros das fortalezas.
203 – TRAÇAS – Tácticas; planos.
204 – COLMADOS – Cobertos de colmo.
205 – ABEGOARIA – Lugar onde se guarda o gado e os carros.
206 – PRESTES! – Depressa!
207 – SANHA – Fúria.
208 – COUDEL – Capitão de cavalaria.
209 – TENDE! – Esperai!
210 – ACOSTADOS – Guardas.
211 – CREDÊNCIA – Crédito; poder de representação.
212 – COXOTE – Parte da armadura que protege a coxa.
213 – ARÇÃO – Armação de sela de cavalo.
214 – GUANTES – Luvas de ferro.
215 – POTERNA – Porta pequena de fortificação.
216 – TAUXIADO – Lavrado; ornado; embutido.
217 – CAPELO – Capacete; capuz.
218 – VISEIRA GRADADA – Parte da frente, móvel e gradeada, do capacete.
219 – BROQUEL – Escudo redondo.
220 – FOUVEIRO – Cavalo castanho claro, malhado de branco.
221 – ACAIRELADA – Adornada.
222 – BRIDAS – Rédeas.
223 – SAIMENTO – Cortejo fúnebre; funeral.
224 – TERÇAR – Cruzar.
225 – VERGEL – Pomar; jardim.
226 – SOLHAS – Cotas guarnecidas com lâminas metálicas.
227 – ARNÊS – Armadura de guerreiro.
228 – OUROPEL – Liga metálica amarela que imita ouro.
229 – PREITO – Veneração; respeito.
230 – HOMÍZIOS – Crimes.
231 – CAPELINAS – Elmos ligeiros.
232 – BRONCO TABUÃO – Tosca armação de pranchas grandes e grossas.
233 – ADANEL – Comandante.
234 – FUNDIBULÁRIOS – Soldados que combatem com fundas.
235 – TREBALHA – Odres de vinho.
236 – INFANÇÕES – Jovens nobres.
237 – MURZELO – Cavalo Negro.

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