17/01/2012

A TORRE DE DOM RAMIRES - Capítulo IV

Capítulo IV


Agora era a sanhuda238 arrancada de Tructesindo e dos seus Cavaleiros, correndo sobre o Bastardo de Baião.

Logo na ribeira do Coice, Tructesindo encontrava cortada a machado a decrépita ponte cujos rotos barrotes e tabuões carcomidos entulhavam no fundo a corrente escassa. Na sua fuga o Bastardo acauteladamente a desmantelara para deter a cavalgada vingadora. Então a pesada hoste de Santa Ireneia avançou pela esguia ourela239 ladeando os renques de choupos em demanda do vau do Espigal... Mas que tardança! Quando as derradeiras mulas de carga choutaram240 na terra de além-ribeira já a tarde se adoçava, e nas poças d'água, entre as poldras241, o brilho esmorecia, umas ainda de ouro pálido, outras apenas rosadas. Imediatamente Dom Garcia Viegas, o Sabedor, aconselhou que a mesnada242 se dividisse: - a peonagem e a carga avançando para Montemor, esgueirada e calada, para esquivar recontros; os senhores de lança e os besteiros de cavalo arrancando em dura carreira para colher o Bastardo. Todos louvaram o ardil do Sabedor; e a cavalgada, aligeirada das filas tardas de arqueiros e fundibulários, largou, soltas as rédeas, através de terras ermas, depois por entre barrocais243, até aos Três-Caminhos, desolada chã onde se ergue solitariamente aquele carvalho velhíssimo que outrora, antes de exorcizado244 por S. Froalengo, abrigava no sábado mais negro de Janeiro, ao clarão de archotes enxofrados a Grande Ronda de todas as bruxas de Portugal. Junto do carvalho Tructesindo sopeou245 a arrancada; e, alçado nos estribos, farejava as três sendas246 que se trifurcam e se encovam entre ásperos, lôbregos cerros de bravio e de tojo. Passara aí o Bastardo malvado?... Ah! por certo passara e toda a sua maldade – porque no respaldo duma fraga, junto a três cabras magras retouçando247 o mato, jazia, com os braços abertos, um pobre pastorinho morto, varado por uma frecha! Para que o triste cabreiro não soprasse novas da gente de Baião – uma bruta seta lhe atravessara o peito escamado de fome, mal coberto de trapos. Mas por qual das sendas se embrenhara o malvado? Na terra solta, raspada pelo vento suão que rolava de entremontes, não apareciam pegadas revoltas de tropel fugindo. E, em tal solidão, nem choça ou palhoça donde vilão ou velha alapada248 espreitassem à levada do bando... Então, ao mando do Alferes Afonso Gomes, três almograves249 despediram pelos três caminhos à descoberta enquanto os Cavaleiros, sem desmontar, desafivelavam os morriões250 para limpar nas faces barbudas o suor que os alagava, ou abeiravam os ginetes dum sumido fio d'água que à orla da chã se arrastava entre ralo caniçal. Tructesindo não se arredou de sob a ramaria do carvalho de S. Froalengo, imóvel sobre o murzelo251 imóvel, todo cerrado no ferro da sua negra armadura, as mãos juntas sobre a sela e o elmo pesadamente inclinado como em mágoa e oração. E ao lado, com as coleiras eriçadas de pregos, as sangrentas línguas penduradas, arquejavam, estirados, os seus dois mastins252.

Já no entanto a espera se alongava, inquieta, enfadonha quando o almograve que metera pela senda de Nascente reapareceu num rolo de poeira, atirando logo o alarde de longe, com a escuma alta. A hora escassa de carreira avistara num cabeço uma hoste acampada, em arraial seguro, rodeado de estaca e vala!...

- Que pendão?

- As treze arruelas.

- Deus louvado! – gritou Tructesindo, que estremeceu como acordando. – É D. Pedro de Castro, o Castelão, que entrou com os Leoneses e vem pelas senhoras Infantas!

Por esse caminho pois não se atrevera o Bastardo!... Mas já pela senda de Poente recolhia outro almograve contando que entre cerros, num pinhal, topara um bando de bufarinheiros253 genoveses, retardados desde alva, porque um deles esmorecera com mal de febres. E então?... – Então, pela borda do pinheiral apenas passara em todo o dia (no jurar dos genoveses) uma companhia de truões254 voltando da feira de Grajelos. Só restava pois o trilho do meio, pedregoso e esbarrancado como o leito enxuto de uma torrente. E por ele, a um brado de Tructesindo, tropeou a cavalgada. Mas já o crepúsculo tristíssimo descia – e sempre o caminho se estirava, agreste, soturno, infindável, entre os cerros de urze e rocha, sem uma cabana, um muro, uma sebe, rasto de rês ou homem. Ao longe, mais ao longe, enfim, enxergaram a campina árida, coberta de solidão e penumbra, dilatada na sua mudez até a um céu remoto, onde já se apagava uma derradeira tira de poente cor de cobre e cor de sangue. Então Tructesindo deteve a abalada, rente de espinheiros que se torciam nas lufadas mais rijas do suão255. 

- Por Deus, senhores, que corremos em pressa vã e sem esperança!... Que pensais, Garcia Viegas?

Todo o bando se apinhara; e uma fumarada subia dos ginetes arquejantes sob as coberturas de malha. O Sabedor estendeu o braço:

- Senhores! O Bastardo, antes de nós, galgou de escapada essa campina além, e meteu a Vale-Murtinho para pernoitar na Honra de Agredel, que é bem afortalezada e parenta de Baião...

- E nós, pois, D. Garcia?

- Nós, senhores e amigos, só nos resta também pernoitar. Voltemos aos Três-Caminhos. E de lá, em boa avença256, ao arraial do Sr. D. Pedro de Castro, a pedir agasalho. A par de tamanho senhor encontraremos mais fartamente que nos nossos alforjes o que todos, cristãos e brutos, vamos necessitando, cevada, um naco de vianda, e de vinho três golpes rijos...

Todos bradaram com alvoroço: - "Bem traçado! bem traçado"... – E de novo, pelo barranco pedregoso, a cavalgada trotou pesadamente para os Três-Caminhos – onde já dois corvos se encarniçavam sobre o corpo do pastorinho morto.

Em breve, ao cabo do caminho do Nascente, no cabeço alto, alvejaram as tendas do arraial, ao clarão das fogueiras que por todo ele fumegavam. O Adail de Santa Ireneia arrancou da buzina três sons lentos anunciando Filho-de-Algo. Logo de dentro da estacada outras buzinas soaram, claras e acolhedoras. Então o Adail257 galopou até o valado, a anunciar às atalaias postadas nas barreiras, entre luzentes fogos de almenara258, a mesnada amiga dos Ramires. Tructesindo parara no córrego escuro, que o pinheiral cerrado mais escurecia movendo e gemendo no vento. Dois cavaleiros, de sobreveste negra e capuz, logo correram pelo pendor do outeiro – bradando que o Sr. D. Pedro de Castro esperava o nobre senhor de Santa Ireneia e muito se prazia259 para todo seu regalo e serviço! Silenciosamente Tructesindo desmontou; e com D. Garcia Viegas, e Leonel de Samora e Mendo de Briteiros e outros parentes do solar, todos sem lança ou broquel260, descalçados os guantes261, galgaram o cabeço até a estacada, cujas cancelas se escancararam, mostrando, na claridade incerta dos fogaréus, sombrios magotes de peões – onde, por entre os bacinetes262 de ferro, surgiam toucas amarelas de mancebas e gorros enguizalhados de jograis.

Apenas o velho assomou aos barrotes, dois infanções263, sacudindo a espada, bradaram:

- Honra! honra! aos Ricos-homens de Portugal!

As trompas misturavam o clangor ríspido aos rufos lassos dos tambores. E por entre a turba, que caladamente recuara em alas lentas, avançou, precedido por quatro Cavaleiros que erguiam archotes acesos, o velho D. Pedro de Castro, o Castelão, o homem das longas guerras e dos vastos senhorios. Um corselete264 de anta265 com lavores de prata cingia o seu peito já curvado, como consumido por tamanhas fadigas de pelejar266 e tamanhas cobiças de reinar. Sem elmo, sem armas, apoiava a mão cabeluda de rijas veias a um bastão de marfim. E os olhos encovados faiscavam, com afável curiosidade, na requeimada magreza da face, de nariz mais recurvo que o bico de um falcão, repuxada a um lado por um fundo gilvaz267 que se sumia na barba crespa, aguda e quase branca.

Diante do senhor de Santa Ireneia alargou vagarosamente os braços. E com um grave riso que mais lhe recurvou, sobre a barba espetada, o nariz de rapina:

- Viva Deus! Grande é a noite que vos traz, primo e amigo! Que não a esperava eu de tanta
honra, nem sequer de tanto gosto!...

Com grave amizade acolhia o velho homem de guerra aquele seu primo de Portugal, que lhe trouxera a sua forte mesnada, de Santa Ireneia, quando os Castros combateram um grande poder268 de Mouros em Enxarez de Sandornim. Depois, na vasta tenda, reluzente de armas, tapizada de peles de leão e de urso, Tructesindo contava, ainda a arfar de dor represa, a morte de seu filho Lourenço, ferido na lide de Canta-Pedra, acabado à punhalada pelo Bastardo de Baião, diante das muralhas de Santa Ireneia, com o sol no céu alto a olhar a traição! Indignado, o velho Castro esmurraçou a mesa, onde um rosário de ouro se misturava a grossas peças de xadrez; jurou pela vida de Cristo que, em sessenta anos de armas e surpresas, nunca soubera de feito mais vil! E, agarrando a mão do senhor de Santa Ireneia, ardentemente lhe ofereceu, para a empresa da santa vingança, a sua hoste inteira – trezentas e trinta lanças, vasta e rija peonagem.

- Por Santa Maria! Formosa arrancada! – bradou Mendo de Briteiros com as vermelhas barbas a flamejar de gosto.

Mas D. Garcia Viegas, o Sabedor, entendia que para colherem o Bastardo vivo, como convinha a uma vingança vagarosa e bem gozada, mais utilmente serviria uma calada e curta fila de Cavaleiros, com alguns homens de pé...

- Porquê, D. Garcia?

- Porque o Bastardo, depois de se aligeirar, junto da Ribeira, da peonada e carriagem269 correra, com a mira em Coimbra, para se acolher à força da Hoste Real. Nessa noite, com o seu esfalfado bando de lanças, pernoitara certamente no solar de Landim. E com o luzir da alva, para encurtar, certamente retomava a galopada pelo velho caminho de Miradães, que trepa e foge através das lombas do Caramulo. Ora ele, Garcia Viegas, conhecia para diante do Poço da Esquecida, certo passo, onde poucos Cavaleiros, e alguns besteiros, bem postados por entre o bravio270, apanhariam Lopo de Baião como lobo em fojo271...

Tructesindo, incerto e pensativo, metia os dedos lentos pelos fios da barba. O velho Castro duvidava, preferindo que se pusesse batalha ao Bastardo em campo bem liso onde se avantajassem tantas lanças já aprestadas, que depois correriam em alegre levada a assolar as terras de Baião. Então Garcia Viegas rogou aos seus primos de Espanha e de Portugal que saíssem ao terreiro, diante da tenda, com fartura de tochas para bem se alumiarem. E aí, no meio dos Cavaleiros curiosos, à claridade dos lumes inclinados, D. Garcia vergou o joelho, riscou sobre a terra, com a ponta duma adaga, o roteiro da sua caçada para lhe comprovar a beleza... Dalém castelo Landim, largaria com a alva o Bastardo. Por aqui, quando a lua nascesse, abalariam eles, com vinte Cavaleiros dos Ramires e dos Castros, para que lidadores de ambas as mesnadas gozassem a lide. Além, se postariam, alapados no matagal, besteiros e peões de frecha. Por trás, deste lado, para entaipar o Bastardo, o senhor D. Pedro de Castro, se com tão gostosa ajuda ele honrasse o Senhor de Santa Ireneia. Adiante, acolá, para colher pela gorja272 o vilão, o senhor D. Tructesindo que era o pai e Deus mandava fosse o vingador. E ali, na estreitura o derrubariam e o sangrariam como um porco – e como o sangue era vil, a um tiro de besta encontrariam água farta para lavar as mãos, a água do pego das Bichas!...

- Famosa traça! - murmurou Tructesindo convencido.

E D. Pedro de Castro bradou atirando um faiscante olhar aos Cavaleiros de Espanha:

- Vida de Cristo, que se meu tio-avô Gutierres tivera por Coudel273 aqui o Sr. D. Garcia, não lhe escapavam os de Lara quando levaram o Rei-menino, na grande carreira, para Santo Estêvão de Gurivaz!... Entendido, pois, primo e amigo! E a cavalo, para a monteria, mal reponte a lua!

E recolheram às tendas – que já nas fogueiras lourejavam os cabritos da ceia, e os uchões acarretavam, dentre os carros da sarga274, os pesados odres de vinho de Tordesilhas.


Com a ceia no arraial (grave e sem ruído, porque um luto velava o coração dos hóspedes) Gonçalo terminou, nessa noite, o seu capítulo IV.


238 – SANHUDA – Terrível.
239 – OURELA – Margem; borda.
240 – CHOUTARAM – Trotaram.
241 – POLDRAS – Ramos novos de árvores.
242 – MESNADA – Grupo de homens que, mediante pagamento, servem como soldados.
243 – BARROCAIS – Terrenos barrentos.
244 – EXORCIZADO – Liberto de espíritos malignos.
245 – SOPEOU – Deteve; travou.
246 – SENDAS – Caminhos estreitos.
247 – RETOUÇANDO – Pastando.
248 – ALAPADA – Escondida.
249 – ALMOGRAVES – Guerreiros dissimulados; guerrilheiros.
250 – MORRIÕES – Capacetes com plumas.
251 – MURZELO – Cavalo negro.
252 – MASTINS – Grandes cães de guarda.
253 – BUFARINHEIROS – Vendedores ambulantes.
254 – TRUÕES – Bobos.
255 – SUÃO – Vento quente de sul.
256 – AVENÇA – Harmonia: concórdia.
257 – ADAIL – Guia ou chefe de soldados.
258 – ALMENARA – Farol ou fogueira acesa em torre ou lugar elevado.
259 – PRAZIA – Agradava.
260 – BROQUEL – Escudo redondo.
261 – GUANTES – Luvas de ferro.
262 – BACINETES – Espécie de capacetes.
263 – INFANÇÕES – Títulos de nobreza inferiores a fidalgos ou a ricos-homens.
264 – CORSELETE – Parte mais leve da armadura, usada sobre o peito.
265 – ANTA – Pele de animal.
266 – PELEJAR – Batalhar.
267 – GILVAZ – Cicatriz.
268 – GRANDE PODER – Grande número, grande quantidade de gente.
269 – CARRIAGEM – Quantidade de carros.
270 – BRAVIO – Mato.
271 – FOJO – Armadilha para animais.
272 – GORJA – Garganta; pescoço.
273 – COUDEL – Capitão de cavalaria.
274 – CARROS DA SARGA – Carros para transporte de uvas ou de vinho.

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