18/01/2012

A TORRE DE DOM RAMIRES - Capítulo V

Capítulo V

Era enfim a madrugada vingadora em que os Cavaleiros de Santa Ireneia, reforçados pelas mais nobres lanças da mesnada275 dos Castros, surpreendiam, no bravio desfiladeiro marcado por Garcia Viegas, o Sabedor, o bando de Baião, na sua açodada corrida sobre Coimbra... Briga curta e falsa, sem destro276 e brioso terçar277 de armas, mais semelhante a montaria contra um lobo do que a arremetida contra um Filho-de-Algo. E assim a desejara Tructesindo, com ruidosa aprovação de D. Pedro de Castro, porque não se cuidava de combater um inimigo, mas de colher um matador.

Antes do luzir da alva, o Bastardo abalara do castelo de Landim, em dura pressa e com tão descuidada segurança, que nem almogávar278 nem coudel279 lhe atalaiavam os trilhos. As cotovias cantavam quando ele, em áspero trote, penetrou por essa brecha, entalada entre escarpas de penedia e urze, que chamam a Racha do Mouro, desde que Mafoma a fendeu para que escapassem às adagas cristãs de El-Rei Fernando, o Magno, o Alcaide mouro de Coimbra e a monja que ele arrebatara à garupa.

E apenas pela esguia greta enfiara a derradeira lança da fila – eis que da outra embocadura do vale surge o cerrado troço dos Cavaleiros de Santa Ireneia, que Tructesindo guia, com a viseira erguida, sem broquel280, sacudindo apenas uma ascuma281 de monte como se folgadamente andasse em caçada. Da selva arredada que os encobria, rompem por trás as lanças dos Castros, ristadas282 e cerrando a brecha mais densamente que as puas283 duma levadiça. Do recosto284 dos cerros285 rola, como represa solta, uma rude e escura peonagem!

Colhido, perdido, o Bastardo terrível! Ainda arranca furiosamente a espada, que redemoinhando o coroa de coriscos. Ainda com um fero grito arremete contra Tructesindo... Mas bruscamente, dentre um escuro magote de fundeiros baleares286, parte ondeando uma corda de cânave287, que o laça pela gargalheira288, o arranca num brusco sacão da sela mourisca, o derriba, sobre pedregulhos em que a sua larga espada se entala e se parte rente ao punho dourado. E enquanto os Cavaleiros de Baião aguentam assombradamente o denso cerco de lanças, que os envolvera – um rolo de peões, em dura grita, como mastins289 sobre um cerdo290, arrastarn o Bastardo para a lomba do outeiro, onde lhe arrancam broquel e adaga, lhe despedaçam o brial291 de lã roxa, lhe quebram os fechos do elmo, para lhe cuspirem na face, nas barbas cor de ouro, tão belas e de tanto orgulho!

Depois a mesma bruta matula o iça, amarrado, para sobre o dorso duma possante mula de carga, o estende entre dois esguios caixotes de virotões, como rês apanhada ao recolher da montaria. E servos da carriagem ficam guardando o Cavaleiro soberbo, o Claro-Sol que alumiava a casa de Baião, agora entaipado entre dois caixotes de pau, com cordas nos pés, e cordas nas mãos, e nelas espetado um triste ramo de cardo – emblema da sua traição.

No entanto os seus quinze Cavaleiros juncavam o chão, esmagados sob o furioso cerco de lanças que os investira – uns hirtos, como adormecidos, dentro das negras armaduras, outros torcidos, desfeitos, com as carnes retalhadas, pendendo horrendamente entre malhas rotas dos lorigais292. Os escudeiros, colhidos, empurrados a pontoada de chuço para a boca duma barroca, sem resgate ou mercê, como alcateia imunda de roubadores de gado, acabaram, decepados a macheta pelos barbudos estafeiros293 leoneses. Todo o vale cheirava a sangue como um pátio de magarefes294. Para reconhecer os companheiros do Bastardo, uma turma de Cavaleiros desafivelava os gorjais295, as viseiras, arrancando furtivamente as medalhas de prata, os bentos, saquinhos de relíquias, que todos traziam como bem-tementes. Numa face, de fina barba negra, que uma espuma sangrenta manchava, Mendo de Briteiros reconheceu seu primo Soeiro de Lugilde com quem, pela fogueira de S. João, folgara tão docemente e bailara no castelo de Unhelo – e vergado sobre a alta sela rezou, pela pobre alma sem confissão, uma devota Ave-Maria. Fuscas, tristonhas nuvens, abafavam a manhã de Agosto. E afastados à entrada do vale, sob a ramagem dum velho azinheiro, Tructesindo, D. Pedro de Castro, e Garcia Viegas, o Sabedor, decidiam que morte lenta, e bem dorida e viltosa296, se daria ao Bastardo, vilão de tão negra vilta.

Sob a folhagem do azinheiro, os três Cavaleiros combinavam com lentidão uma vingança terrífica. Tructesindo desejara logo recolher a Santa Ireneia, alçar uma forca diante das barbacãs, no chão em que seu filho rolara morto, e nela enforcar, depois de bem açoitado, como vilão, o vilão que o matara. O velho D. Pedro de Castro, porém, aconselhava despacho mais curto, e também gostoso. Para que rodear por Santa Ireneia, desbaratar esse dia de Agosto na arrancada que os levava a Montemor, a socorro das Infantas de Portugal? Que se estendesse o Bastardo amarrado sobre uma trave, aos pés de D. Tructesindo, como porco pelo Natal, e que um cavalariço lhe chamuscasse as barbas, e depois outro, com facalhão de ucharia297, o sangrasse no pescoço, pachorrentamente.

- Que vos parece, Sr. D. Garcia?

O Sabedor desafivelara o casco de ferro, limpava nas rugas o suor e a poeira da lide:

- Senhores e amigos! Temos melhor, e perto também, sem delongas de cavalgada, logo adiante destes cerros, no Pego das Bichas... E nem torcemos caminho, que de lá, por Tordezelo e Santa Maria da Varge, endireitamos a Montemor, tão direitos como voa o corvo... Confiai em mim, Tructesindo! Confiai em mim, que eu arranjarei ao Bastardo tal morte e tão vil, que doutra igual se não possa contar desde que Portugal foi condado.

- Mais vil que forca, para Cavaleiro, meu velho Garcia?

- Lá vereis, senhores e amigos, lá vereis!

- Seja! Mandai dar às buzinas.

Ao comando de Afonso Gomes, o Alferes, as buzinas soaram. Um troço de besteiros e de estafeiros leoneses rodearam a mula que carregava o Bastardo amarrado e entalado entre dois caixotes. E, acaudilhada298 por D. Garcia, a curta hoste meteu para o Pego das Bichas, em desbando299 com os senhores de lança espalhados, como em marcha de folgança e paz, e todos numa rija falada recordando, entre gabos300 e risos, as proezas da lide.

A duas léguas de Tordezelo e do seu castelo formoso, se escondia entre os cerros o Pego das Bichas. Era um lugar de eterno silêncio e de eterna tristeza.

Em esmerados versos lhe marcara o tio Duarte a desolada asperidão:

Nem trilo de ave em balançado ramo!
Nem fresca flor junto de fresco arroio!
Só rocha, matagal, ribas soturnas,
E em meio o Pego, tenebroso e morto!...

E quando os primeiros Cavaleiros, galgada a lomba dum cerro, o avistaram, na melancolia da manhã nevoenta, emudeceram da larga falada, repuxaram os freios, assustados ante tão áspero ermo, tão propício a Bruxas, a Avantesmas e a Almas penadas. Diante do escalavrado barranco, por onde os ginetes escorregavam, ondulava uma ribanceira, aberta com charcos lamacentos, quase chupados pela estiagem, luzindo pardamente, por entre grossos pedregulhos e o tojo rasteiro. Ao fundo, a meio tiro de besta, negrejava o Pego, lagoa estreita, lisa, sem uma ruga n'água, duramente negra, com manchas mais negras, como lâmina de estanho onde alastrasse a ferrugem do tempo e do abandono. Em torno subiam os cerros, eriçados de mato bravio e alto, sulcados por trilhos de saibro vermelho como por fios de sangue que escorresse, e rasgado no alto por penedias lustrosas, mais brancas que ossadas. Tão pesado era o silêncio, tão pesada a soledade301, que o velho D. Pedro de Castro, homem de tanta jornada, se espantou:

- Feia paragem! E voto a Cristo, a Santa Maria, que nunca antes de nós, nela entrou homem remido pelo baptismo.

- Pois, Sr. D. Pedro de Castro! – acudiu o Sabedor – já por aqui se moveu muita lança, e luzida, e ainda em tempos do Conde D. Soeiro, e de vosso Rei D. Fernando, se erguia naquela beira d'água, uma castelania famosa! Vede além! – E mostrava na ponta do Pego, fronteira ao barranco, dois rijos pilares de pedra, que emergiam da água negra, e que chuva e vento poliram como mármores finos. Um passadiço de traves, sobre estacas limosas e meio apodrecidas, atava a margem ao mais grosso dos pilares. E a meio desse rude esteio pendia uma argola de ferro.

No entanto já o tropel da peonagem se espalhara pela ribanceira. D. Garcia Viegas desmontou, bradando por Pero Ermigues, o Coudel302 dos besteiros de Santa Ireneia. E, ao lado do ginete de Tructesindo, risonho e gozando a surpresa, ordenou ao Coudel que seis dos seus rijos homens descessem o Bastardo da mula, o estirassem no chão, o despissem, todo nu, como sua mãe barregã303 o soltara à negra vida...

Tructesindo encarou o Sabedor, franzindo as sobrancelhas hirsutas:

- Por Deus, D. Garcia! que me ides simplesmente afogar o vilão, e sujar essa água inocente!...

E alguns Cavaleiros, em redor, murmuraram também contra morte tão quieta e sem malícia. Mas os miúdos olhos de D. Garcia giravam, lampejavam de triunfo e gosto:

- Sossegai, sossegai! Velho estou certamente, mas ainda o senhor Deus me consente algumas traças304. Não! Nem enforcado, nem degolado, nem afogado... Mas chupado, senhores! Chupado em vida, e devagar, pelas grandes sanguessugas que enchem toda essa água negra!

D. Pedro de Castro, maravilhado, bateu o guante nas solhas305 do coxote:

- Vida de Cristo! Que ter numa hoste o Sr. D. Garcia, é ter juntamente, para marchas e conselho, enrolados num só, Anibal e Aristóteles!

Um rumor de admiração correu pela hoste:

- Boa traça, boa traça!

E Tructesindo, radiante, bradava:

- Andar, andar, besteiros! E vós, senhores, recuai para a lomba do cerro, como para palanque, que vai ser grande a vista!

Já seis besteiros descarregavam da mula o Bastardo amarrado. Outros cercavam, com molhos de cordas. E, como magarefes para esfolar uma rês, toda a rude turma se abateu sobre o malfadado, arrancando por cordas que desatavam a cervilheira, o saio, as grevas, os sapatões de ferro, depois a grossa roupa de linho encardido. Agarrado pelos compridos cabelos, filado pelos pés, onde se cravavam agudas unhas no furor de o manter, com os braços esmagados sob outros grossos braços retesos, o possante Bastardo ainda se estorcia, urrando, cuspindo contra as faces confusas da matulagem um cuspo avermelhado, que espumava!

Mas, por entre o escuro tropel que o cobria, o seu corpo, todo despido, branquejava, atado com cordas mais grossas. Lentamente o seu furioso urrar esmorecia, arquejado e rouquenho. E um após outro se erguiam os besteiros, esfalfados, bufando, limpando o suor do esforço.

No entanto os Cavaleiros de Espanha, de Santa Ireneia, desmontavam cravando o couto das lanças entre o tojo e as pedras. Todos os recostos dos outeiros se cobriam da mesnada espalhada, como palanques em tarde de justa306. Sobre uma rocha mais lisa, que dois magros espinheiros toldavam de folha rala, um pajem estendera peles de ovelha para o Sr. D. Pedro de Castro, para o senhor de Santa Ireneia. Mas só o velho Castelão se acomodou, para uma repousada delonga desafivelando o seu corselete307 de ferro tauxiado308 de ouro.

Tructesindo permanecera erguido, mudo, com os guantes309 apoiados ao punho da sua alta espada, os olhos fundos avidamente cravados na tenebrosa lagoa que, com morte tão fera e tão suja, vingaria seu filho... E pela borda do Pego, peões, e alguns Cavaleiros de Espanha, remexiam com virotões, com os cotos das ascumas310, a água lodosa, na curiosidade das negras bichas escondidas, que o povoam.

Subitamente a um brado de D. Garcia, que rondava, toda a chusma de peões amontoada em torno ao Bastardo se arredou: e o forte corpo apareceu, nu e branco, sobre a terra negra, com um denso pêlo ruivo nos peitos, a sua virilidade afogada noutra mata de pêlo ruivo, e todo ligado por cordas de cânave que o inteiriçavam. Naquela rigidez de fardo, nem as costelas arfavam, apenas os olhos refulgiam, ensanguentados, horrendamente esbugalhados pelo espanto e pelo furor. Alguns Cavaleiros correram a mirar a aviltada nudez do homem famoso de Baião. O senhor dos Paços de Argelim mofou311, com estrondo:

- Bem o sabia, por Deus! Corpo de manceba312, sem costura de ferida!...

Leonel de Samora raspou o sapato de ferro pelo ombro do malfadado:

- Vede este Claro-Sol, tão claro, que se apaga agora, em água tão negra!

O Bastardo cerrava duramente as pálpebras – donde duas grossas lágrimas escaparam, lentamente rolaram... Mas um agudo pregão ressoou pela ribanceira:

- Justiça! Justiça!

Era o Adaíl313 de Santa Ireneia, que marchava, sacudia uma lança, atroava os cerros:

- Justiça! justiça que manda fazer o senhor de Treixedo e de Santa Ireneia, num perro matador!... Justiça num perro, filho de perra, que matou vilmente, e assim morra vilmente por ela!...

Três vezes pregoou por diante da hoste apinhada nos cerros. Depois quedou, saudou humildemente Tructesindo Ramires, o velho Castro, como ajulgadores no seu Estrado de julgamento.

- Aviai, aviai! – bradava o Senhor de Santa Ireneia.

Imediatamente, a um comando do Sabedor, seis besteiros, com as pernas embrulhadas em mantas da carga, ergueram o corpo do Bastardo como se ergue um morto enrolado no seu lençol, e com ele entraram na água, até o mais alto pilar de granito. Outros, arrastando molhos de cordas, correram pelo limoso passadiço de traves. Com um alarido de aguenta! endireita! alça! num desesperado esforço o robusto corpo branco foi mergulhado n'água até às virilhas, arrimado ao mais alto pilar, depois nele atado com um longo calabre314 que, passando pela argola de ferro, o suspendia, sem escorregar, tão seguro e colado como um rolo de vela que se amarra ao mastro. Rapidamente os besteiros fugiram d'água, desentrapando logo as pernas, que palpavam, raspavam no horror das bichas sugadoras. Os outros recolheram pelo passadiço, numa fila que se empurrava. No Pego ficava Lopo de Baião bem arranjado para a vistosa morte lenta, com a água que já o afogava até às pernas, com cordas que o enroscavam até o pescoço, como a um escravo no poste; e uma espessa mecha dos cabelos louros laçada na argola de ferro, repuxando a face clara, para que todos nela gozassem largamente a humilhada agonia do Claro-Sol.

Então o atento da hoste, esperando espalhada pelos recostos dos cerros, mais entristeceu o enevoado silêncio do ermo. A água jazia sem um arrepio, com as suas manchas, negras como uma lâmina de estanho enferrujado. Entre as cristas das rochas, arqueiros postados pelo Sabedor atalaiavam, para além, os descampados. Um alto vôo de gralha atravessou grasnando. Depois um bafo lento agitou as flâmulas315 das lanças cravadas no tojo denso.

Para despertar, aviar a lentidão das bichas, alguns peões atiravam pedras à água lodosa. Já alguns Cavaleiros espanhóis rosnavam impacientes com a delonga, naquela cova abafada. Outros, descendo agachados à borda da lagoa, para mostrar que as faladas bichas nunca acudiriam, mergulhavam lentamente, n'água negra, as mãos descalçadas, que depois sacudiam, rindo e mofando do Sabedor...

Mas de repente um estremeção sacudiu o corpo do Bastardo; os seus rijos músculos, no furioso esforço de se desprenderem, inchavam entre as cordas, como cobras que se arqueiam; dos beiços arreganhados romperam, em rugidos, em grunhidos, ultrajes e ameaças contra Tructesindo covarde, e contra toda a raça de Ramires, que ele emprazava316, dentro do ano, para as labaredas do Inferno! Indignado, um Cavaleiro de Santa Ireneia agarrou uma besta de garruncha317, a que retesou a corda.

Mas D. Garcia deteve o arremesso:

 - Por Deus, amigo! Não roubeis às sanguessugas nem uma pinga daquele sangue fresco!... Vede como vêm! vede como vêm!

Na água espessa, em torno às coxas mergulhadas do Bastardo, um frémito corria, grossas bolhas empolavam – e delas, molemente, uma bicha surdiu, depois outra e outra, luzidias e negras, que ondulavam, se colavam à branca pele do ventre, donde pendiam, chupando, logo engrossadas, mais lustrosas com o lento sangue que já escorria. O Bastardo emudecera – e os seus dentes batiam estridentemente. Enojados, até rudes peões desviaram a face cuspindo para as urzes. Outros, porém, chasqueavam, assuavam318 as bichas, gritando: - A ele, donzelas! a ele! E o gentil Çamora de Cendufe clamava rindo contra tão insossa morte! Por Deus! Uma apostura de bichas, como a enfermo de almorreimas319. Nem era sentença de Rico-homem – mas receita de herbanista mouro!

- Pois que mais quereis, meu Leonel? –  acudiu alegremente o Sabedor, resplandecendo. –  Morte é esta para se contar em livros! E não tereis este Inverno serão à lareira, por todos os solares de Minho a Douro, em que não volte a história deste Pego, e deste feito! Olhai nosso primo Tructesindo Ramires! Formosos tratos presenciou decerto em tão longo lidar de armas!... E como goza! tão atento! tão maravilhado!

Na encosta do outeiro, junto do seu balsão320, que o Alferes cravara entre duas pedras, e como ele tão quedo, o velho Ramires não despregava os olhos do corpo do Bastardo, com deleite bravio, num fulgor sombrio. Nunca ele esperara vingança tão magnífica! O homem que atara seu filho com cordas, o arrastara numas andas, o retalhara a punhal diante das barbacãs da sua Honra, agora, vilmente nu, amarrado também como cerdo, pendurado dum pilar, emergido numa água suja, e chupado por sanguessugas, diante de duas mesnadas, das melhores de Espanha, que miravam, que mofavam! Aquele sangue, o sangue da raça detestada, não o bebia a terra revolta numa tarde de batalha, escorrendo de ferida honrada, através de rija armadura – mas, gota a gota, escuramente e molemente se sumia, sorvido por nojentas bichas, que surdiam famintas do lodo e no lodo recaíam fartas, para sobre o lodo bolçar o orgulhoso sangue que as enfartara.

Num charco, onde ele o mergulhara, viscosas bichas bebiam sossegadamente o Cavaleiro de Baião! Onde houvera homízio321 de solares fundado em desforra mais doce?

E a fera alma do velho acompanhava, com inexorável gozo, as sanguessugas subindo, espalhadamente alastrando por aquele corpo bem amarrado, como seguro rebanho pela encosta da colina onde pasta. O ventre já desaparecia sob uma camada viscosa e negra, que latejava, reluzia na humidade morna do sangue. Uma fila sugava a cinta, encovada pela ânsia, donde sangue se esfiava, numa franja lenta. O denso pêlo ruivo do peito, como a espessura duma selva, detivera muitas, que ondulavam, com um rasto de lodo. Um montão enovelado sangrava um braço. As mais fartas, já inchadas, mais reluzentes, despegavam, tombavam molemente; mas logo outras, famintas, se aferravam. Das chagas abandonadas o sangue escorria delgado, represo nas cordas, donde pingava como uma chuva rala. Na escura água boiavam gordas postemas322 de sangue esperdiçado. E assim sorvido, ressumando sangue, o malfadado ainda rugia, através de ultrajes imundos, ameaças de mortes, de incêndios, contra a raça dos Ramires! Depois, com um arquejar em que as cordas quase estalavam, a boca horrendamente escancarada e ávida, rompia aos roucos urros, implorando água, água! No seu furor as unhas, que uma volta de amarras lhe colara contra as fortes coxas, esfarrapavam a carne, cravavam-se na fenda esfarrapada, ensopadas de sangue.

E o furioso tumulto esmorecia num longo gemer cansado – até que parecia adormecido nos grossos nós das cordas, as barbas reluzindo sob o suor que as alagara como sob um grosso orvalho, e entre elas a espantada lividez dum sorriso delirado.

No entanto já na hoste derramada pelos cerros, como por um palanque, se embotara a curiosidade bravia daquele suplício novo. E se acercava a hora da ração de meridiana323. O Adaíl de Santa Ireneia, depois o Almocadém Espanhol, mandaram soar os anafins324. Então todo o áspero ermo se animou com uma faina de arraial. O almazém das duas mesnadas parara por detrás dos morros, numa curta almargem de erva, onde um regato claro se arrastava nos seixos, por entre as raízes de amieiros chorões. Numa pressa esfaimada, saltando sobre as pedras, os peões corriam para a fila dos machos de carga, recebiam dos uchões e estafeiros a fatia de carne, a grossa metade dum pão escuro; e, espalhados pela sombra do arvoredo, comiam com silenciosa lentidão, bebendo da água do regato pelas concas325 de pau. Depois preguiçavam, estirados na relva – ou trepavam em bando pela outra encosta dos morros, através do mato, na esperança de atravessar com um virote alguma caça erradia. Na ribanceira, diante da lagoa, os Cavaleiros, sentados sobre grossas mantas, comiam também, em roda dos alforjes abertos, cortando com os punhais nacos de gordura nas grossas viandas de porco, empinando, em longos tragos, as bojudas cabaças de vinho.

Convidado por D. Pedro de Castro, o velho Sabedor descansava, partilhando duma larga escudela de barro, cheia de bolo papal, dum bolo de mel e flor de farinha, onde ambos enterravam lentamente os dedos, que depois limpavam ao forro dos morriões326. Só o velho Tructesindo não comia, não repousava, hirto e mudo diante do seu pendão, entre os seus dois mastins, naquele fero dever de acompanhar, sem que lhe escapasse um arrepio, um gemido, um fio de sangue, a agonia do Bastardo. Debalde o Castelão, estendendo para ele um pichel de prata, gabava o seu vinho de Tordesilhas, fresco como nenhum de Aquilat ou de Provins, para a sede de tão rija arrancada. O velho Rico-homem nem atendera: - e D. Pedro de Castro, depois de atirar dois pães aos alões fiéis, recomeçou discorrendo com Garcia Viegas sobre aquele teimoso amor do Bastardo por Violante Ramires que arrastara a tantos homízios e furores.

- Ditosos nós, Sr. D. Garcia! Nós a quem a idade e o quebranto e a fartura já arredam dessas tentações... Que a mulher, como me ensinava certo físico327 quando eu andava com os Mouros, é vento que consola e cheira bem, mas tudo enrodilha e esbandalha. Vede como os meus por elas penaram! Só meu pai, com aquela desvairança de zelos, em que matou a cutelo minha doce madre Estevaninha. E ela tão santa, e filha do Imperador! A tudo, tudo leva, a tonta ardência! Até a morrer, como este, sugado por bichas, diante duma hoste que merenda e mofa. E por Deus, quanto tarda em morrer, Sr. D. Garcia!

- Morrendo está, Sr. D. Pedro de Castro. E já com o demo ao lado para o levar!

O Bastardo morria. Entre os nós das cordas ensanguentadas todo ele era uma ascorosa avantesma328 escarlate e negra com as viscosas pastas de bichas que o cobriam, latejando com os lentos fios de sangue que de cada ferida escorriam, mais copiosos que os regos de humidade por um muro denegrido.

O desesperado arquejar cessara, e a ânsia contra as cordas, e todo o furor. Mole e inerte como um fardo, apenas a espaços esbugalhava horrendamente os olhos vagarosos, que revolvia em torno com enevoado pavor. Depois a face abatia, lívida e flácida, com o beiço pendurado, escancarando a boca em cova negra, de onde se escoava uma baba ensanguentada. E das pálpebras novamente cerradas, intumescidas, um muco gotejava, também como de lágrimas engrossadas com sangue.

A peonagem, no entanto, voltando da ração, reatulhava a ribanceira, pasmava, com rudes chufas329 para o corpo pavoroso que as bichas ainda sugavam. Já os pajens recolhiam mantéis e alforjes. D. Pedro de Castro descera do cabeço com o Sabedor até à borda da água lodosa, onde quase mergulhava os sapatos de ferro, para contemplar, mais de cerca, o agonizante de tão rara agonia! E alguns senhores, estafados com a delonga, afivelando os gibanetes330, murmuravam: - "Está morto! Está acabado!"

Então Garcia Viegas gritou ao Coudel dos Besteiros:

- Ermigues, ide ver se ainda resta alento naquela postema.

O Coudel correu pelo passadiço de traves, e arrepiado de nojo palpou a lívida carne, acercou da boca, toda aberta, a lâmina clara da adaga que desembainhara.

- Morto! morto! – gritou.

Estava morto. Dentro das cordas que o arroxeavam o corpo escorregava, engelhado, chupado, esvaziado. O sangue já não manava331, havia coalhado em postas escuras, onde algumas bichas teimavam latejando, reluzindo. E outras ainda subiam, tardias. Duas, enormes, remexiam na orelha. Outra tapava um olho. O Claro-Sol não era mais que uma imundície que se decompunha. Só a madeixa dos cabelos louros, repuxada, presa na argola, reluzia com um lampejo de chama, como rastro deixado pela ardente alma que fugira.

Com a adaga ainda desembainhada, e que sacudia, o Coudel avançou para o senhor de Santa Ireneia, bradou:

- Justiça está feita, que mandastes fazer no perro matador que morreu!

Então o velho Rico-homem, atirando o braço, o cabeludo punho, com possante ameaça, bradou, num rouco brado que rolou por penhascos e cerros:

- Morto está! E assim morra de morte infame quem traidoramente me afronte a mim e aos da minha raça!

Depois, cortando rigidamente pela encosta do cerro, através do mato, e com um largo aceno ao Alferes do Pendão:

- Afonso Gomes, mandai dar às buzinas. E a cavalo, se vos praz, Sr. D. Pedro de Castro, primo e amigo, que leal e bom me fostes!...

O Castelão ondeou risonhamente o guante:

- Por Santa Maria, primo e amigo! que gosto e honra os recebi de vós. A cavalo pois se vos praz! Que nos promete aqui o Sr. D. Garcia vermos ainda, com sol muito alto, os muros de Montemor.

Já a peonagem cerrava as quadrilhas, os donzéis de armas puxavam para a ribanceira os ginetes folgados que a vasta água escura assustava. E, com os dois balsões tendidos, o Açor negro, as Treze Arruelas, a fila da cavalgada atirou o trote pelo barranco empinado, donde as pedras soltas rolavam. No alto, alguns Cavaleiros ainda se torciam nas selas para silenciosamente remirarem o homem de Baião, que lá ficava, amarrado ao pilar, na solidão do Pego, a apodrecer.

Mas quando a ala dos besteiros e fundibulários de Santa Ireneia desfilou, uma rija grita rompeu, com chufas, sujas injúrias ao "perro matador". A meio da escarpa, um besteiro, virando, retesou furiosamente a besta. A comprida garruncha apenas varou a água. Outra logo ziniu, e uma bala de funda, e uma seta barbada – que se espetou na ilharga do Bastardo, sobre um negro novelo de bichas.

O Coudel berrou: "cerra! anda!" A récua das azêmolas332 de carga avançava, sob o estalar dos látegos333; os moços da carriagem apanhavam grossos pedregulhos, apedrejavam o morto. Depois os servos carreteiros marcharam, nos seus curtos saios de couro cru, balançando um chuço curto: - e o capataz apanhou simplesmente esterco das bestas, que chapou na face do Bastardo sobre as finas barbas de ouro.


FIM






275 – MESNADA – Grupo de homens que, mediante pagamento, servem como soldados.
276 – DESTRO – Apropriado.
277 – TERÇAR – Cruzar.
278 – ALMOGÁVAR – Guerrreiro dissimulado; guerrilheiro.
279 – COUDEL – Capitão de cavalaria.
280 – BROQUEL – Escudo redondo.
281 – ASCUMA – Pequena lança de arremessar.
282 – RISTADAS – Em riste; preparadas para atacar.
283 – PUAS – Pontas aguçadas.
284 – RECOSTO – Encosta.
285 – CERROS – Colinas.
286 – FUNDEIROS BALEARES – Guerreiros que usam fundas para atirar balas.
287 – CÃNAVE – Cânhamo.
288 – GARGALHEIRA – Garganta.
289 – MASTINS – Grandes cães de guarda.
290 – CERDO – Porco.
291 – BRIAL – Espécie de túnica que o cavaleiro veste sobre a roupa interior.
292 – LORIGAIS – Couraças feitas de malha ou escamas de ferro.
293 – ESTAFEIROS – Palafreneiros; estribeiros.
294 – MAGAREFES – Carniceiros.
295 – GORJAIS – Protecções da garganta.
296 – VILTOSA – Infame.
297 – UCHARIA – Despensa; local onde se guardam os mantimentos.
298 – ACAUDILHADA – Conduzida.
299 – EM DESBANDO – À vontade; à solta; de forma desorganizada.
300 – GABOS – Elogios.
301 – SOLEDADE – Solidão.
302 – COUDEL – Capitão de cavalaria.
303 – BARREGÃ – Mulher que vive com homem sem ser casada; prostituta.
304 – TRAÇAS – Tácticas; planos.
305 – SOLHAS – Cotas guarnecidas com lâminas metálicas.
306 – JUSTA – Luta entre dois cavaleiros.
307 – CORSELETE – Parte mais leve da armadura, usada sobre o peito.
308 – TAUXIADO – Lavrado; ornado; embutido.
309 – GUANTES – Luvas de ferro.
310 – ASCUMAS – Pequenas lanças de arremessar.
311 – MOFOU – Riu.
312 – MANCEBA – Mulher jovem; amante.
313 – ADAIL – Guia ou chefe de soldados.
314 – CALABRE – Corda grossa.
315 – FLÂMULAS – Bandeirinhas estreitas e compridas, terminando em bico.
316 – EMPRAZAVA – Convocava.
317 – GARRUNCHA – Anel de ferro ou de madeira.
318 – ASSUAVAM – Motivavam; animavam.
319 – ALMORREIMAS – Hemorróidas.
320 – BALSÃO – Estandarte.
321 – HOMÍZIO – Crime.
322 – POSTEMAS – Chagas; postas de sangue.
323 – RAÇÃO DE MERIDIANA – Refeição do meio-dia.
324 – ANAFINS – Trombetas.
325 – CONCAS – Tigelas; malgas de madeira.
326 – MORRIÕES – Capacetes com plumas.
327 – FÍSICO – Médico.
328 – AVANTESMA – Fantasma.
329 – CHUFAS – Troças.
330 – GIBANETES – Peças de vestuário usadas por baixo da cota ou couraça.
331 – MANAVA – Brotava.
332 – AZÊMOLAS – Bestas de carga.
333 – LÁTEGOS – Chicotes.

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