10/01/2012

OS CÓMICOS 310

CRÓNICA “OS CÓMICOS”                                                                                                                      
PUBLICADA NO DIÁRIO DO SUL DE 26.12.2011

UMA CARTA AO PAI NATAL
           
Quando o Pai Natal foi ver a correspondência que tinha na sua caixa de correio, ficou muito admirado. Não por causa da enorme quantidade de cartas que atafulhavam o receptáculo, a maioria delas escritas com caligrafia infantil. A isso já ele está habituado, há muitos anos. É sempre a mesma coisa, montes e montes de cartas de miúdos que pedem ao Pai Natal que lhes dê uma pleistêichone das mais modernas, ou qualquer zangarelho electrónico, desses que todos os jovens consideram essenciais para a sua felicidade completa. Não foi isso, portanto, o que o espantou – mas sim, entre tantas outras, uma carta, uma única, a destoar das restantes. Não propriamente pela caligrafia, que essa até era semelhante às dos outros miúdos – mas pelo conteúdo, e pela assinatura... O Pai Natal ajeitou os óculos, que a vista dele já não é o que era dantes, piscou os olhos três vezes e leu: “Meu caro pai natal você se calhar vai ficar muito admirado com esta carta pois na verdade nunca me dispus a entrar em contacto consigo embora às vezes me tenha chegado uma vontade muito grande de lhe dizer duas ou três coisas a primeira é que nunca achei lá muita graça àquilo que você fez durante imensas gerações de crianças coitadinhas que viveram na ilusão de que você existe de verdade e tem barbas brancas e um barrete com borla e um casacão vermelho e botas de neve e que anda aí de um lado para o outro montado num trenó puxado por renas e dá a volta ao mundo a distribuir brinquedos e jogos e camisolas de lã e peúgas tricotadas à mão e outras inutilidades ou seja os brinquedos e os jogos ainda vá lá que os putos até gostam agora as peúgas e as camisolas são coisas a que nenhum miúdo liga bóia e só as mãezinhas e as avozinhas deles é que têm essa mania mas não era por isso que eu vinha falar-lhe mas sim por causa do indecente papel que você tem feito em todos estes anos porque em tempos mais antigos ninguém ouvia falar do Pai Natal e durante séculos você viveu escondido lá na sua cabana no Polo Norte mas de repente não sei o que aconteceu que a sua figura passou a estar na moda e ao princípio até era uma figura simpática mas a partir de certa altura transformou-se num símbolo duma coisa a que chamam o márquetingue e que só serve para impingir às pessoas coisas absolutamente desnecessárias ainda por cima você não passa disso mesmo ou seja de um símbolo do tal márquetingue porque quem oferece as coisas aos miúdos e também aos graúdos são as pessoas adultas que gostam de viver na ilusão e por isso nesta época do ano se enchem de dívidas para comprar inutilidades mesmo quando estão a passar por crises económicas e financeiras e quase não têm cheta para comer quanto mais para prendinhas mas pronto é a tradição dizem eles e toca a gastar à maluca aí pelos centros comerciais ora você que é uma pessoa já com idade para ter juízo devia meter a mãozinha na consciência e chegar à conclusão de que devia mas era desaparecer da circulação a ver se as pessoas o esquecem e deixam de fazer os disparates que fazem todos os anos por esta época e há ainda outra coisa é que eu tenho passado estes últimos dois mil e tal anos revoltado porque vendo bem você veio fazer concorrência a quem já tinha os seus direitos reservados para esta época festiva e assim se vê roubado desses direitos o que é uma coisa muito feia e até pensei em apresentar queixa aos tribunais por usurpação e só ainda não o fiz porque os advogados são caríssimos e os tribunais segundo me dizem não funcionam pelo que corria o risco de o meu processo só ser julgado ainda depois dos processos do “façoculta” ou da “cazapia” ou do “isaltino” é por isso que venho apelar à sua consciência para você se resolver a desaparecer da circulação visto ser uma fraude e deixar-me a mim a tomar conta em rigoroso exclusivo dos negócios natalícios é isto que lhe pede este que s’assina menino jesus”.       

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