27/05/2012

"O PORTUGUÊS PITORESCO" - Cap. 3 continuação

INCONTORNÁVEL

            Eis uma palavra que entrou definitivamente na moda, sendo usada em substituição de formas que seriam mais complicadas, como, por exemplo, que não se pode evitar, ou que tem realmente de se enfrentar, que devem ser postas de lado por terem muitas letras, o que é inconveniente numa época em que se deve poupar em tudo, até nisso, nas letras... Adivinha-se para um destes dias a descoberta, ou redescoberta, de sinónimos igualmente raros, como, por exemplo, inescapável ou inescusável, que também poderão dar muito prestígio a quem as use.


INVERDADE

            Ao contrário do que poderia supor-se, uma inverdade não é o mesmo que uma mentira. Isto porque uma mentira é um termo algo duro, violento, ofensivo. Quando exclamamos: – Você está a dizer uma mentira. – estamos a ser brutais, definitivos, não há como voltar atrás. Ao passo que, se dissermos, mais suavemente: – Isso é uma inverdade! – ainda tudo pode acontecer. O mentiroso não é bem um mentiroso... passa a ser alguém que, por distracção ou má interpretação dos factos, disse uma coisa não completamente certa... Há uma pequeníssima diferença, uma gradação subtil que torna o possível conflito muito mais macio. O uso da palavra tem as suas regras, fáceis de entender e de aplicar: para nós, o que afirma o nosso adversário é sempre uma vergonhosa mentira, ao passo que nós próprios, o mais que dizemos é uma pequena inverdade... 

IRREGULARIDADES PROCESSUAIS

            São fenómenos que acontecem, com bastante frequência, nos processos mais complexos, e aos quais se aplica este pomposo título, que é excelente para mascarar uma qualquer incompetência. Quer se trate de um prazo que não foi cumprido por esquecimento, de uma citação mal redigida, de uma prova perdida, de uma fuga de elementos confidenciais, tudo isso se explica e abafa sob o manto das irregularidades processuais – embora as pessoas simples, que nunca entenderão esta linguagem cifrada, se limitem a dizer, entre elas, que tudo não passou de lamentável nabice.  

MISERABILIDADE

            Há quem critique o uso desta expressão, para definir o estado de quem vive na miséria, alegando que poderia substituir-se por outra, mais simples: miserabilismo. Pois eu acho que fazem muito bem os senhores que usam tais palavras para nos explicar o estado do país, evitando simplificações enganosas e, até, confusões. É que miserabilismo, parecendo que significa a mesma coisa, tem uma subtil diferença: é palavra que se refere a uma tendência literária e artística, que chega a elogiar os aspectos mais baixos da vida humana, dando mesmo origem a obras de arte, como as óperas de Verdi em que as personagens vivem em ambientes sórdidos, se vestem mal e bebem vinho... Por isso, não confundir uma coisa com a outra – e viva a nossa miserabilidade!

PAINEL

            A palavra tem várias aplicações, mas aquela que interessa destacar é a que lhe dá o significado de congresso ou reunião de especialistas que se juntam para discutir um assunto específico. O termo painel até pode dar origem a confusões, mas isso não tem evitado que o seu uso se repita com muita frequência, em Congressos, Seminários e outras reuniões onde é preciso separar os participantes em grupos especializados, para ver se conseguem chegar a conclusões úteis – o que nem sempre acontece... Pessoalmente, acho a palavra desagradável, principalmente desde que ouvi, um dia, alguém fazer chacota com ela, alegando que não queria participar, para não ser apelidado de paineleiro...

PLANTEL

            Esta é uma palavra do vasto universo desportivo, utilizadíssima por jogadores, treinadores, árbitros, dirigentes e comentadores-de-sofá, particularmente os que dedicam a sua atenção ao Futebol. Aqui impõe-se uma pergunta, talvez retórica:  – Existe mesmo algum outro desporto, além do Futebol?... Adiante. A verdade é que não há uma referência a esse desporto que não inclua o termo plantel, o que só começou a acontecer recentemente: dantes, dizia-se a equipa ou o time (do Inglês team). Existe, no entanto, uma certa relutância, mas apenas por parte de algumas pessoas mais informadas, que frequentam Dicionários e descobriram a existência de uma definição menos elegante para plantel: "Grupo de animais de raça, de boa qualidade, especialmente bovinos e equinos, reservados para a reprodução"... Na verdade, não parece que os futebolistas, se lessem Dicionários, quisessem continuar a ser considerados parte de qualquer plantel –  mas isso é lá com eles...

PLURIEMPREGO

            A palavra refere-se a uma situação profissional que hoje se vai tornando progressivamente mais rara. Em tempos mais recuados, era habitual uma pessoa ter um emprego principal e, depois, para arredondar o ordenado, mais um ou dois empregozinhos secundários, os chamados biscates. Isto, naturalmente, ao nível das classes médias ou médias-baixas, porque, nas classes mais elevadas. os tais empregos secundários teriam, retribuições bem mais generosas, algumas com fáceis escapatórias ao Fisco... Nas condições da vida actual (e continuando a falar das classes menos elevadas) a sorte é ter um emprego qualquer, seja ele qual for... Quanto ao pluriemprego continua a ser, paradoxalmente, um exclusivo dos bem situados na vida, isto é, dos que menos precisam dele... 

POTENCIAR

            Significa dar força, dar potência. Em termos matemáticos, significa elevar um número a uma potência. Mas estes significados nada têm a ver com o sentido que lhe é dado em Economês, pois, nesse dialecto, a palavra refere-se a coisas tão práticas como aumentar o capital de uma empresa, ou algo semelhante. Mas, sendo a palavra tão sugestiva, pode levar o nosso pensamento para outras áreas que não as dos negócios...

PRECARIEDADE

            Define uma situação que se tornou muito frequente nos tempos de crise (isto é, em todos os tempos, porque sempre houve crise, em todos os tempos da nossa História), e que se caracteriza, na prática, pela existência de contratos de trabalho sem consistência nem garantia de continuidade. Este sistema de trabalho precário também se costuma designar por trabalho a recibos verdes.

PROJECTO ALTERNATIVO

            Mais uma expressão muito na moda, para designar um projecto que foi preparado para a eventualidade de chumbo do projecto inicial. Muito conveniente, dada a frequência com que os mais definitivos projectos se transformam em projectos adiados ou reformulados.

QUESTÕES ESTRUTURANTES / ou FRACTURANTES

            Expressão misteriosa, tão vaga que serve para tudo o que se queira colocar à sua sombra. Em princípio, uma questão estruturante é aquela que serve para estruturar alguma coisa. Mas, quando ouvimos discursos em que nos dizem que "a construção de um novo aeroporto é uma questão estruturante", ficamos na dúvida. Estruturante para quê? Para o sistema geral de transportes, ou só para o próprio aeroporto? Fazem falta Dicionários específicos para conceitos específicos como este... Com efeitos parecidos, está também na moda a expressão questão fracturante, que é igualmente muito bonita...

REALIZAR

            Antigamente, a palavra realizar significava transformar em realidade, concretizar, efectivar. Mais recentemente, passou a ter um sentido muito mais moderno. Numa telenovela ouvi há dias uma belíssima menina confidenciar a uma amiga: – Só agora realizei que ele gosta mesmo de mim!... Fiquei comovido, em parte, porque só um tontinho seria capaz de desprezar uma lindeza daquelas – mas não foi essa a questão principal: é que só então compreendi que realizar significa agora, frequentemente, compreender. Também aconteceu a um Político dizer, numa entrevista, que só agora tinha realizado como é difícil governar... Da mesma forma que a mocinha da telenovela realizou como vai ser feliz até ao último capítulo, eu realizei que o tempo dá outros sentidos novos a palavras velhas. Será que isso tem algo de mal? Nem pensar. Só que a gente tem de estar com atenção, para não perder o sentido das realidades e realizar o que se passa à nossa volta.

SEMINOVO

            Aqui está um neologismo muito interessante, aplicado com notável frequência a automóveis e apartamentos. O andar está bem conservado mas, sim, já foi habitado antes, no entanto está impecável, isto é, está seminovo. O carro tem trinta mil quilómetros, nunca bateu, funciona sem problemas, também está seminovo... Aceito sem grande relutância. Chega a ter alguma piada o conceito. Só gostaria de saber se a mesma classificação poderá ser aplicada a uma pessoa. Um cavalheiro de mais idade, bem apessoado, sem barriga nem falta de cabelo, poderá ser considerado seminovo? E uma divorciada jovem, sem filhos, alegando que o ex-marido nunca lhe bateu, será uma seminova? Aguardo esclarecimentos.

SUSTENTABILIDADE

            Existe uma grande preocupação, da parte dos responsáveis por grandes planos e grandes iniciativas, quanto à possibilidade de tudo isso poder concretizar-se sem problemas de maior. Parece que é a isso que se chama sustentabilidade. Não se trata de nenhuma novidade. Isto é, a palavra sim. Embora exista há muito tempo, não era utilizada tantas vezes como acontece nos últimos tempos. Mas a sustentabilidade propriamente dita é coisa vulgar, que preocupa toda a gente, desde os ministros das Finanças, que têm de a garantir em relação às contas do Estado, até às donas de casa, que têm de aguentar o lar com o ordenado (frequentemente mínimo) de que dispõem para o governar. Trata-se, portanto, de um conceito antigo, agora designado de forma aparentemente moderna.

TIRAR

            É um dos verbos mais curiosos da nossa Língua. Tem as mais interessantes aplicações, como veremos. Podemos começar por tirar fotografias ou tirar fotocópias... É assim que se diz e se escreve, habitualmente: – Tira-me aqui uma fotografia. Ou: – Estas são as fotografias que tirei nas férias... Ah, vou ver se não me esqueço de ir tirar umas fotocópias!... Porquê tirar? Tirar o quê? Parecia mais lógico reservar o verbo para descrever acções como eliminar, subtrair, suprimir, retirar, ou mesmo, mais dramaticamente, arrebatar ou roubar. Mas uma fotografia, ou uma fotocópia, é coisa que se tire? Parece mais coisa que se faça... - Vou fazer uma fotografia e, de caminho, faço três fotocópias... Bem, o hábito está tão enraizado, que não deve ser fácil mudar. Nem isso tem muita importância, no fim de contas. Mas há uma outra versão do verbo tirar a que acho muita graça. É quando alguém pergunta a outro alguém:Quanto é que tu tiras por mês?... Raramente se pergunta: – Quanto ganhas por mês? – mas sim:Quanto tiras?". E toda a gente acha bem. Curioso, este nosso subconsciente...  

VERTENTE

            Declive, encosta, inclinação, são os significados mais vulgares para vertente. Mas, felizmente, há quem não queira ser vulgar, na escrita e na fala. Por isso, passou a ser moda usar a palavra vertente com o sentido de capítulo, tendência, aspecto, como em – Estive a ler o projecto do governo, na sua vertente cultural... É bonito, embora sirva, principalmente, para estabelecer confusão.

                                                                                                                                         CONTINUA







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