As cínicas "declarações de
inocência" de muitos criminosos envolvidos em actividades contra os
superiores interesses da Pátria e daqueles que nela mandam.
Por essa altura, começaram a ser publicadas, nos
jornais, numerosas "declarações", todas elas, aproximadamente, com o
mesmo teor, em que muitos indivíduos, assustadiços e apertados pelas malhas da
rede de desconfianças que sobre eles recaía, tentavam limpar as suas imagens
públicas, afirmando que nada tinham a ver com o golpe que se preparara, e com o
qual, diziam eles, até nem concordavam.
Esses anúncios eram todos mais ou menos assim:
"Eu, Fulano de Tal, filho de Fulano e de
Sicrana, natural de Tal Parte e residente na Rua Assim-Assim, venho declarar
solenemente, para todos os efeitos julgados convenientes, que sempre fui um fervoroso
admirador da obra do Estado Novo e não tenho nem nunca tive qualquer ligação,
de qualquer espécie, com o denominado "Movimento dos Capitães",
também conhecido por "Revolução do 25 de Abril" ou "Revolução
dos Cravos", manifestando a minha total oposição às ideias que presidiram
a esses acontecimentos, e afirmando o mais vivo repúdio pelos ideais
comunistas, sendo uma pessoa trabalhadora e honesta, sem quaisquer posições
políticas, pois a minha política é o trabalho e não me tenho dado nada mal com
isso. Segue-se a assinatura e o respectivo reconhecimento notarial."
Algumas destas declarações incluíam a fotografia,
formato passe, do declarante.
Mesmo assim, algumas destas pessoas, sobre quem
recaíam desconfianças de serem do "reviralho", ainda levaram, pelo
sim pelo não, umas lambadas em público, dentro daquele saudável conceito do
Senhor Professor Salazar, segundo o qual "uns abanões a tempo" podiam
ser muito profilácticos.
Ambiente de tranquilidade absoluta num País
feliz, renovado e liberto da ameaça de uma cambalhota que o teria conduzido
fatalmente à desgraça, se tivesse resultado como os seus tenebrosos autores
desejavam.
Logo a partir do dia 25 de Abril de 1974, o nosso Amado
País entrou num clima de absoluta paz e normalidade, arrumados que foram,
rapidamente, os vestígios da barafunda que se preparara, com tantos requintes
de malvadez, nos tempos anteriores a essa data.
Assim, foram retomados os programas da RTP que tanto
contribuíam para a felicidade do nosso Bom Povo. Um dos mais repetidos era
constituído por uma rubrica única, intitulada "O Programa Segue Dentro de
Momentos" – mas havia muitos outros motivos de interesse na nossa
Televisão, como o Boletim Meteorológico, cujos apresentadores eram
carinhosamente apelidados de "manda-chuvas", e que raramente se
enganavam nas suas previsões, excepto quando anunciavam bom tempo e o
anticiclone dos Açores resolvia mandar temporal para a nossa costa oeste...
Também havia os divertidíssimos programas de Variedades, onde pontificavam
artistas eternos, como a Simone de Oliveira, o António Calvário e outros, que
ainda hoje, como então, mantêm a mesma cor com que pintam os cabelos. Mas nada
de cantarem versos desse Ary dos Santos ou de outros poetas de rimas
esquisitas, pois isso fora severamente proibido!
Também continuaram a escutar-se músicas muito
bonitas, que tinham estado em perigo de ser ostracizadas pela Revolução – por
exemplo, os êxitos populares das revistas teatrais de décadas atrasadas, como O
Pirolito e O Pastel de Bacalhau, cantadas pela Margarida Amaral e
pelo Artur Garcia, e jovialmente apresentadas pelo Jorge Alves.
Nas estações de Rádio, foram escrupulosamente
seguidas as proibições de passar discos com cantigas sem qualquer interesse,
desses desafinados "baladeiros" já referidos: nada de Zeca
Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Vitorino, Fanhais ou Manuel Freire. O
mesmo para esses perigosos destabilizadores musicais como o Fernando Tordo, ou
o Carlos do Carmo, este último conhecido entre os seus correligionário por
"o capachinho vermelho". A nossa Rádio, devidamente controlada,
passou a transmitir muita música inglesa e americana, que não oferece o perigo
de incentivar a nossa Juventude a contestações perigosas, já que quase todos os
versos rimam em I love you... me too... for you... yes I do...
e assim por diante.
Os Jornais readquiriram rapidamente as suas rotinas
de trabalho, isto é, as notícias e comentários que recebem, como manda a lei, o
precioso aval e o indispensável carimbo de "Autorizado" da Comissão
de Exame Prévio (a mim, dá-me mais jeito continuar a chamar-lhe,
tradicionalmente, "Comissão de Censura"; é mais
expressivo!)...
Assim, para evitar a difusão de matérias escabrosas
ou inconvenientes, que só iriam incomodar e alarmar inutilmente o Público, continuou
a ser proibido mencionar suicídios, divórcios, grandes catástrofes, revoluções
que ocorram lá no Estrangeiro, e ideias políticas de qualquer espécie (salvo,
naturalmente, as da Acção Nacional Popular, a antiga União Nacional, e aqui
está outra designação que cala fundo na minha alma e na minha memória, e me
recuso a abandonar...).
Voltam a ser activados os tradicionais Três
Éfes que fizeram a felicidade deste País durante gerações.
Com que voltou a entreter-se o Bom Povo Português,
no seu dia a dia, agora que passara essa ameaça terrível? Pois bem, como
sempre, além dos meios de comunicação que levam o entretenimento considerado
útil e apropriado às suas mãos (através dos Jornais), aos seus olhos (através
da Televisão), aos seus ouvidos (através da Rádio), sabe-se que há um assunto
que ocupa as mentes populares durante a maior parte do tempo: o Futebol!
Felizmente, existem valores futebolísticos que não
se perderam, e que até parecem ser eternos. Um deles é o Eusébio! É certo que
apareceram outros jogadores, também bastante bons, depois dele. Mas nenhum como
o Eusébio, tão agarrado à sua Pátria que nunca saiu de cá, a não ser por breves
períodos – ao contrário de outras vedetas do pontapé-na-bola que, assim que se
acham um bocadito acima da média nacional, tratam de emigrar para outros países
e outros clubes onde lhes pagam muito bem, em vez de ficarem por cá a navegar
patrioticamente nesta nau com alguns rombos, mas patrioticamente nossa.
Sabe-se que outros valores importantes e muito
patrióticos, profundamente ligados ao Futebol, são representados pelos Clubes
e, acima de tudo, pelas "clubites". Há várias, mas algumas
sobrepõem-se a todas as outras. Há uma rivalidade levada às últimas
consequências, aquela que opõe o Benfica, o glorioso Benfica, ao grandioso
Futebol Clube do Porto e ao valoroso Sporting. Cuidadosamente conservadas e
amparadas, estas lutas entre os grandes clubes constituem uma das melhores
soluções encontradas pela Política para manter entretido o Bom Povo, não lhe
permitindo distrair-se com disparates como aquele que ia dando cabo deste nosso
bom clima social, na fatídica noite de 24 para 25 de Abril de 1974...
Sim, há outras clubites, também com certo relevo –
mas, diga-se lá o que se disser, não há nenhuma outra, além daquelas que
apresentei como exemplos, que tão bem sirva para entreter e distrair as pessoas
e fazê-las esquecer as contrariedades da vida, substituindo-as, com vantagem,
pelas contrariedades do penalty mal marcado, do jogador mal substituído
ou da má-língua do dirigente mais palavroso.
Além do Futebol, também se incentivou grandemente o
revivalismo da chamada "canção nacional", o Fado, estabelecendo-se
uma quota obrigatória de cinquenta por cento diários de interpretações
da Mariza ou do Camané, a fim de se manter acesa e bem viva a chama patriótica
da música que mais nos enobrece e nos torna conhecidos no Estrangeiro. (É
verdade que a quota não se cumpre, e ninguém lhe liga, mas ficou expressa na
lei, que é o mais importante).
Se juntarmos a estes dois elementos (Fado e Futebol)
um terceiro, isto é, os cuidados postos para que Fátima continuasse a ser um
dos principais, se não o principal, dos destinos excursionistas do País, então
temos reconstituída a trilogia dos Três Éfes que fez de Portugal aquilo que ele
é: um país verdadeiramente singular.
Alguns teóricos aparecem, de vez em quando, a
reclamar que o País devia ser, não singular, mas plural...
Confesso que não vejo onde eles querem chegar com este jogo de palavras, e não
descortino qualquer vantagem em modificar um conjunto de coisas tão
tradicionais como aquelas que, graças ao fracasso do tal 25 de Abril,
felizmente, se mantiveram e se hão-se manter, pelos séculos dos séculos!
CONTINUA NA PRÓXIMA SEGUNDA-FEIRA
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