O primeiro discurso público de Dona Maria.
Invocações políticas, patrióticas e gastronómicas.
Foi igualmente esplêndido o discurso proferido por
Dona Maria, daquela varanda onde assomava pela primeira vez, mas onde o querido
Professor tinha assomado muitas outras, para lançar ao Bom Povo alocuções de
grande profundidade. Pois bem, ainda que noutro registo não tão erudito, o
arrazoado de Dona Maria não deixou de calar fundo nas boas almas daqueles
Portugueses que a escutavam embevecidos. Vou tentar reproduzir aqui os seus
tópicos principais, já que é impossível apresentar ipsis verbis a versão
completa. É que a oradora orou de cabeça, isto é, de improviso, coisa rara
naqueles tempos. Mas, enfim, aqui vai o resumo, tão exacto quando possível,
dessa notável e patriótica peça de oratória:
"Portugueses! Obrigadinha por terem vindo
aqui mostrar o vosso respeito por mim! O respeitinho é uma coisa muito bonita,
sempre tenho ouvido dizer... Pois eu quero que todos vocês sejam bons
patriotas, e para serem bons patriotas têm de respeitar aquelas três coisas com
que o Senhor Doutor Salazar nos estava sempre a massacrar a cabeça, quando era
vivo, e que são Deus, Pátria e Família. Eu desta última não percebo lá grande
coisa, porque nunca constituí família, não é que me faltassem pretendentes, mas
eu bem sabia que eles, o que queriam, era apanhar-me a jeito, depois de casada,
para meter cunhas para bons empregos no Estado! Mas eu nunca fui nessa conversa
e por isso aqui estou, solteira e tão inteirinha como quando vim ao mundo!...
Sim, porque fiquem sabendo que essas calúnias que alguns andaram para aí a
espalhar, que eu tinha intimidades com o Senhor Doutor, é tudo mentira! Nunca,
mas nunca ele me tocou, nem eu lhe toquei, a ele, a não ser a segurar-lhe o
queixo quando tinha que lhe dar o xarope para a tosse, ou às vezes para lhe
atar as botas, quando ele estava mais atrapalhado com o reumático... E
até porque o Senhor Doutor tinha lá as suas distracções com as descaradas que
se atiravam constantemente a ele, como essa desavergonhada da jornalista
francesa a quem tive de mandar tomar banho, porque o Senhor Doutor já não podia
com o cheirete a perfume que ela usava para disfarçar a falta de sabão... Bem,
mas vamos ao que interessa! Como vocês sabem, agora sou eu que mando, e não
quero cá forrobodós no país! Quero toda a gente muito séria, tudo muito
decente, nada de malandrices! Por exemplo, ficam proibidos os namoros em
público, e não quero ver beijinhos nem abraços nas ruas. Toda a gente deve
andar decentemente vestida, as mulheres ficam proibidas de usar mini-saias e
calças justinhas ao rabo! Decotes, só muito subidos, e poucas pinturas na cara,
que dão um ar muito ordinário... Os homens era bom que usassem todos chapéu,
como o Senhor Doutor gostava, mas enfim, podem substituí-lo por um boné. Boinas
não, que isso é o que usam lá esses malditos revolucionários estrangeiros, e
não quero cá disso!... Ora vocês, homens, que vieram aqui manifestar o vosso
respeito por mim, fiquem sabendo que não os quero por aí em festas e em bailes
e em sítios pouco recomendáveis, como sejam as discotecas e os cabarés. Podem
frequentar os cafés, mas nada de conversas políticas, senão já sabem o que lhes
acontece: os agentes das nossas polícias e os patriotas vigilantes que apanhem
alguém a dizer mal do Governo, logo vos tratam da saúde! E depois não se
queixem!... Sigam aquela boa norma que diz assim: "A minha política é o
trabalho..."
E a multidão, em coro, recitou: – "... e não
me tenho dado nada mal com isso!"
"Muito bem" – aprovou a Dona Maria.
E continuou: – " Portanto, trabalhem, para sustentar os vossos lares e
as vossas famílias, não andem aí atrás de rabos de saias, nem metidos nos
copos, e não se envolvam em complicações, em greves e outros disparates assim.
E se descobrirem algum malandro de algum comunista, tratem de o denunciar
imediatamente, que o vosso gesto será devidamente recompensado. Por outro lado,
se andarem misturados com esse tipo de gente e forem apanhados, já sabem: vão
parar ao xelindró, depois de levarem uns abanões dados a tempo, como dizia com
muita graça o Senhor Doutor... Bem, e agora voltem para junto das vossas
mulheres, já que resolveram fazer esta manifestação só com homens. E quando
estiverem com elas tratem-nas bem, e recomendem a elas, da minha parte, que
sejam poupadinhas, que não gastem os vossos ordenados em extravagâncias. E
também que não se ponham com despesas escusadas, que não andem sempre metidas
nos cabeleireiros, e não se ponham a comprar coisas inúteis, como, por exemplo,
máquinas de lavar, ou aspiradores... Expliquem-lhes que uma vassoura e um bom
pano do pó servem muito bem para limpar a casa, e ficam muito mais em conta!
Ah, e elas que se habituem a escolher com cuidado o peixe na praça; se as
guelras não estiverem vermelhas e os olhos não estiverem bem vivos, é porque
não está fresco. E outra coisa: se a sopa ficar salgada, elas que lhe juntem
umas rodelas de batata crua, que retira logo o excesso de sal... Pronto, é tudo
o que tenho a dizer por hoje. Viva Portugal! Viva eu!"
E retirou-se dignamente para o interior, deixando
aquela multidão de homens completamente eufórica, novamente aos gritos de Dona
Maria, Dona Maria!
As reacções populares à nova situação
política. O que as pessoas normais pensavam e diziam daquela governação um
pouco fora do normal – e também o que pensavam mas não diziam.
A dizer a verdade, o Bom Povo Português andava um
bocado azamboado com aquela situação. Não percebia lá muito bem o que se estava
a passar. Ouvira dizer, vagamente, que estivera preparado um golpe militar para
virar o país de pernas para o ar, mas, afinal, o único golpe a que assistira e
ao qual fora dada divulgação pública (mesmo assim, muito discreta) fora o
pontapé-no-rabo aplicado ao Professor Dout... perdão, ao Marcelo Caetano, que
tinha sido despachado rapidamente para o Brasil, deixando atrás de si, não o
cheirinho àquela primavera marcelista que tinha prometido, mas ao
"mofo outonal da sua infeliz governação", como escrevera, em hora de
feliz inspiração, o brilhante Jornalista Manuel Maria Múrias, num editorial do
renovado jornal A Rua, e no qual, em contrapartida, deixava os mais
rasgados elogios à nova governanta... perdão, à nova Governante!
Pouco mais se sabia – a não ser, é claro, o facto
evidente de o país estar a ser comandado por uma mulher que era Presidente do
Conselho de Ministros... sem que, curiosamente, existisse qualquer Conselho,
porque também não havia Ministros, uma vez que ela assumira e acumulara todas
as pastas...
A pouco e pouco, o Bom Povo foi-se apercebendo de que
a vida decorria na mais perfeita normalidade, sem atropelos de maior e sem
perturbações de qualquer espécie. Melhor dizendo, o Povo não se apercebia de
coisa alguma, porque ninguém lhe dizia o que se passava, lá nas altas esferas
governamentais. Nem tinha nada que saber de tais assuntos, ora essa! A função
do Governo era governar, não era? Pois o Governo governava, e ponto final. Era
só o que faltava, estar a informar o pessoal, tintim por tintim, de tudo o que
resolvia fazer, a bem da Nação!... E a função do Povo, qual era? Trabalhar e
calar o bico, evidentemente... Pois que trabalhasse e calasse o bico, para que
tudo corresse na maior das calmas e na maior das felicidades, porque não há
coisa pior do que ter as pessoas inferiores a meter os narizes nos assuntos que
devem ser tratados pelas Pessoas Superiores! Já no tempo de Sua Excelência o
Senhor Professor Doutor António de Oliveira Salazar era esse o sistema em vigor
– e, graças a ele, tínhamos, todos nós, vivido felizes, contentes e em paz,
durante muitos e muitos anos! Todos nós, talvez não... Sempre houvera uns
chatos duns contestatários que refilavam contra esta evidente tranquilidade que
nos era oferecida, e se sentiam atabafados por não poderem falar, escrever e
fazer as coisas que lhes apetecia fazer. Diziam até que a nossa paz era igual à
paz dos cemitérios... Mas esses que assim falavam não mereciam mais que uma
certa condescendência, porque, coitados, não tinham capacidade para entender a
Felicidade que lhes era proporcionada pela governação que generosamente lhes
calhara em sorte.
Deste modo tranquilo, foi passando o tempo, com a
calma do costume ou, pelo menos, com a aparência de calma do costume. As
pessoas faziam o que tinham a fazer. Assim, a maioria dos homens ia para os
seus empregos, de manhã, e regressava a suas casas, à tardinha, parando no
caminho para tomar uma bica escaldada e discutir o futebol, no café. A maioria
das mulheres tratava da casa, limpava, arrumava e cuidava dos rebentos. Durante
o jantar, todos viam os interessantes programas da televisão. Iam ao cinema de
vez em quando. Faziam
as compras nas mercearias e noutras lojas tradicionais, porque os supermercados
ainda eram raros. As criancinhas andavam nas escolas, os mais crescidos nos
liceus, alguns, de famílias mais abonadas, frequentavam as universidades, e
todos sabiam muito bem a tabuada e os tempos completos dos verbos "ter",
"ser" e "haver". Ninguém tinha muito dinheiro, a não ser, é
claro, alguns Senhores-Muito-Importantes que dominavam os sectores essenciais
da vida do país, como as Indústrias, o Comércio, a Construção Civil e outras
actividades que era preciso manter em bom funcionamento, para que as receitas
do Estado se apresentassem como as receitas dos médicos: incompreensíveis para
o povinho simples, que não lhes consegue decifrar a letra nem adivinhar os
efeitos...
Dona Maria não se podia conformar com certas
transformações – certas "modernices", como ela dizia – que se tinham
introduzido sub-repticiamente na vida da nossa Pátria. Por isso, tratou de
fazer reviver saudosas siglas, saudosas instituições e não menos saudosos
hábitos e costumes que ameaçavam perder-se e, com eles, as mais respeitáveis
tradições do nosso Bem Amado Regime.
Assim, por exemplo, nunca ela simpatizara com a
ideia de ver substituída a designação da veneranda "Censura" por esse
nome mais moderno de "Comissão de Exame Prévio"... Pois bem, uma das
suas primeiras medidas foi a de restaurar, não apenas o tradicional nome desse
prestimoso Serviço, mas, também, todas as suas competências, funções e
tradições. Simbolicamente, foi-lhe atribuído um subsídio extraordinário para a
compra de várias grosas de lápis azuis, bem como para uma boa quantidade de
apara-lápis, destinados a mantê-los sempre operacionais, na patriótica tarefa
de eliminar todas as palavras, todas as ideias, todas as teorias, todos os
escritos, que pudessem perturbar e prejudicar os espíritos e a tranquilidade
pública, envenenando as pessoas com desvios em relação àquilo que o Superior
Interesse do Estado considerasse útil para a nossa Pátria. E ainda resolveu
conceder, aos prestimosos Coronéis reformados ali exercendo as suas importantes
funções, generosos aumentos dos seus ordenados, a fim de os manter com o
espírito alerta, na análise e expurgação de qualquer texto incómodo para o
Regime.
Também a "DGS –
Direcção-Geral de Segurança" voltou a ter o seu tradicional nome antigo,
tão interiorizado e tão respeitado por toda a gente: voltou, pois, a ser
a "PIDE", a imprescindível PIDE, que tantos serviços prestava à
segurança nacional e, em particular, à segurança dos fiéis servidores do Estado
Novo... Também nessa instituição, os seus agentes foram premiados com
gratificações extraordinárias, para que os seus olhos e as suas orelhas se
mantivessem em permanente alerta perante os perigos com que a subversão pudesse
ameaçar a tranquilidade e a paz da vida nacional.
Outra instituição que voltou, por ordem de Dona
Maria, à designação antiga, foi a "ANP – Acção Nacional Popular", que
recuperou, e ainda bem, o prestigiado nome de "União Nacional", de
tão antigas e nobres tradições!
Assim se assistiu (agora sim, e não como fora
timidamente ensaiado nos tempos do Caetano) a uma verdadeira "evolução na
continuidade"!
E desta forma foram decorrendo vários anos... Anos
passados em que, a bem dizer, aqui não se passou, praticamente... nada!
Diz-se que os Povos Felizes não têm história... Era
o nosso caso. Felicíssimos, satisfeitos com a nossa vida, cá fomos continuando
nesta pontinha da Europa, caladinhos e, como de costume... orgulhosamente
sós...
CONTINUA NA SEGUNDA-FEIRA
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