15/05/2012

"O PORTUGUÊS PITORESCO" - Cap. 2

2. PALAVRAS (MAL)DITAS

São muito variados os fenómenos que levam à criação de hábitos estranhos, na pronúncia ou na escrita de algumas palavras. Nem sempre a ignorância é a causa principal dos erros. Frequentemente, a juntar à falta de conhecimento, ou à simples burrice, existe um hábito, uma influência, uma má interpretação ou, até, uma moda, que transforma essas palavras, fazendo com que elas sejam repetidamente pronunciadas, ou escritas, sob formas que estão evidentemente erradas, mas que se generalizaram ao ponto de, às vezes, até haver quem ache estranho ver essas palavras escritas, ou ouvi-las pronunciar, correctamente.

A preguiça de consultar frequentemente um Dicionário, acto que evitaria muitas asneiras, também não ajuda mesmo nada...

 Eis alguns casos, escolhidos entre os mais frequentes e mais curiosos.


NÃO "À" TEMPO...

Não, realmente não (não existe, não dispomos de) tempo para perder com este erro tão repetido e tão fácil de evitar, se as pessoas se lembrarem de que não têm (não há) possibilidade de dispor do tempo necessário para... Outro erro semelhante, mas de sentido contrário, acontece quando se escreve "ele foi cidade" (forma correcta: "ele foi à cidade"), em que a palavra à exprime sentido de movimento, não tendo nada a ver com o verbo haver.

"À CERCA"

É uma expressão um pouco complicada, por causa das suas diferentes aplicações. Há quem escreva, por exemplo: Eu já estive aqui à cerca de um ano. Errado! Neste caso, deve escrever-se há cerca de um ano... Quando surge numa só palavra, sem acento (acerca), significa a respeito de. Exemplo: Ele falou acerca de futebol... Com as duas palavras separadas e sem acento na primeira (a cerca) significam tempo ou distância aproximada. Exemplos: (Ele está a cerca de uma hora de casa, ou Ele vive a cerca de cem metros do emprego)... A forma à cerca só está correcta quando a palavra cerca é um substantivo. Exemplo. Ele está encostado à cerca do jardim... Finalmente, cerca pode ser uma forma do verbo cercar, com o sentido de circundar, rodear. Exemplo: O exército cerca o inimigo...Enfim, tudo isto para dizer que é preciso ter cuidado com as palavras – pois, como alguém disse um dia, a Língua Portuguesa é muito traiçoeira... Além de estar cercada de "ratoeiras gramaticais"...

OS "ACÓRDOS"

Talvez por analogia com o plural de porco (pronunciado pórcos) ou de povo (póvos), muita gente pronuncia acórdos em vez de acôrdos. O caso é polémico, como tantos outros da nossa rica Língua. Todavia, a maioria dos especialistas consultados opina que a forma mais correcta é acôrdos, com o o fechado. Não é dos casos mais graves.

O "AIROPORTO"

Sim, este é pior. A palavra aeroporto até nem seria muito difícil de pronunciar, se nos lembrássemos de que é composta por duas partes: aero (que vem do Grego aer e se refere ao ar, à atmosfera), mais porto (que vem do Latim portus e significa porta, local de passagem). Mas quem é que está com essas preocupações, quando se trata de dizer aeroporto? Muitos locutores de Rádio e Televisão adquiriram esse "vício" estranho de pronunciar airoporto – e ficam sinceramente admirados quando alguém lhes diz que não estão a pronunciar correctamente a palavra. Enfim, estarão com a cabeça no aero...

"AONDE" E "ADONDE"

A proposição a  indica direcção, pelo que é asneira perguntar Aonde estás?, mas já é correcto perguntar Aonde vais?, ou Aonde vai aquele comboio? A confusão com onde é natural, mas o que é certo é que as duas palavras têm usos diferentes. Certos escritores clássicos utilizavam aonde com a mesma função de onde, em linguagem informal, mas isso acontecia, exactamente, para sublinhar que estavam a usar uma forma de expressão popular. Falando em linguagem popular, assinale-se a existência de uma forma muito pitoresca, que é a palavra adonde.

O BOLETIM "METRIOLÓGICO"

Esta é das asneiras mais repetidas e, segundo parece, das mais difíceis de emendar. Pois bem, a palavra seria bem fácil de pronunciar correctamente, se as pessoas parassem por momentos para pensar nas suas componentes – que são meteoro (que vem do Grego e se refere ao que vem do alto, aos fenómenos celestes, como a chuva, o vento, etc.), e lógico (que também vem do Grego logós, linguagem, explicação, razão). Todavia, por razões de facilidade, muita gente diz meteriológico, ou metriológico, e esta barbaridade repete-se vezes sem conta, até mesmo, curiosamente... entre os Meteorologistas! – mas, sobretudo, entre os locutores de rádio e de televisão, que nem dão pelo erro, de tal forma este se vulgarizou na fala corrente, ao ponto de algumas pessoas se espantarem e franzirem o sobrolho quando escutam alguém que diz meteororológico, com todas as sílabas bem pronunciadas...  

OS "CANÓNES"

Talvez por influência da pronúncia de outras palavras como, por exemplo, canónico, há quem pronuncie canónes, em vez de nones, ao referir-se às normas ou regras, particularmente as que tratam da prática religiosa. Na verdade, chamam-se cânones os livros considerados pela igreja como sagrados e de inspiração divina. Noutro sentido, um cânone é uma peça de canto coral em que as várias partes repetem a parte inicial, em tempos diferentes. O vocábulo também serve para definir caracteres tipográficos.(pequeno cânone, carácter de 28 a 32 pontos Didot; grande cânone, carácter de 44 a 48 pontos Didot), Seja qual for o sentido em que é aplicada, a palavra é esdrúxula.

OS "CARÁCTERES"

            No singular, carácter, tanto no significado de sinal gráfico, letra, número, etc., como no sentido de feitio moral, conjunto de traços distintivos de uma pessoa ou coisa, pronuncia-se e escreve-se com acento tónico na penúltima sílaba. Mas, ao passar para o plural, esse acento tónico mantém-se na penúltima sílaba e, por isso, a pronúncia correcta é com acento no e, dizendo-se, portanto, caractéres e não carácteres.
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            "CARDEAL" E "CARDIAL"

            A palavra cardeal  tem o sentido de principal, importante. Um cardeal é um alto dignitário eclesiástico, que tem voto na eleição do Papa. Mas a mesma palavra, escrita da mesma forma, pode designar uma ave que se encontra principalmente na América do Sul. Ou um peixe teleósteo. Ou pode ser aplicada na designação de um ponto cardeal. Quanto à palavra cardial, está ligada a cárdia, cardíaco, Uma pequena diferença na escrita, mas uma diferença grande nos significados.

O "CHÂNCELER"

            Um Chanceler, ou Guarda-.selos, é um alto funcionário, encarregado, nas monarquias, de zelar pelo selo real. Noutros regimes, pode ser chefe do governo ou primeiro-ministro. Enfim, é alguém muito importante. Na Grã-Bretanha, tem o título de Lord Chancellor, o que equivale a ministro da Justiça, ou das Finanças. Talvez por influência da pronúncia inglesa, há quem diga este nome como se fosse esdrúxulo, chânceler, o que está errado. Mantenham o respeitinho pela pessoa e pelo cargo, mas tratem-na e chamem-na como deve ser: chancelér.

         "CÍSTER"

          

          Cisterciense é o nome de um membro da ordem religiosa fundada na Borgonha, no século XI, e cuja designação é Ordem de Cister (Cistér). Também se designa como cirterciense um estilo de arte, especialmente de arquitectura, aplicado pelos monges de Cister em catedrais e mosteiros. Não é correcto pronunciar a palavra com o acento tónico na sílaba Cis (Císter), como às vezes se ouve, o que até pode provocar confusão com a palavra inglesa sister (irmã), que não seria para aqui chamada, a não ser por graça...


"CÔCHES"

            Deve ser por contágio de palavras semelhantes, como coxos, mochos e outras, que muita gente fala do "Museu Nacional dos Côches", em vez de falar do "Museu Nacional dos Cóches", com o ó aberto. A palavra viajou do Checo kotxie, do Alemão Kutsche ou do Húngaro koksi, até vir parar a Lisboa, a um dos museus mais interessantes e que bem merece ser, como é, um dos mais visitados da capital.

O "CÔNJUGUE"
           
Concordemos num ponto: a palavra não é lá muito fácil de pronunciar. Por isso, muita gente simplifica, dizendo cônjugue em vez de cônjuge, com aqueles dois sons seguidos, je-je, que fazem enrolar a língua e complicam a dicção. Ora, se aturar o cônjuge, por vezes, já não é simples, designá-lo por este nome esquisito não é, afinal, menos complicado...

A "DESCRIÇÃO" E A "DISCRIÇÃO"

            Uma descrição é a representação oral ou escrita de qualquer coisa, uma enumeração pormenorizada, um relatório, um inventário. Quanto à discrição, é a qualidade de ser discreto, reservado, comedido. Esta é uma das esquisitices da nossa Língua, pois pareceria mais lógico usar o termo discreção para definir a qualidade daquilo ou daquele que é discreto. Mas... não é assim – os Gramáticos lá saberão porquê. Curiosamente, na expressão à discrição, já o sentido é muito diferente: em certos restaurantes, pode comer-se assim, à discrição, o que significa que se pode encher a barriga com tudo aquilo que conseguirmos meter lá para dentro, nada discretamente...

         A "DESCRIMINAÇÃO" E A "DISCRIMINAÇÃO"

            Eis dois homófonos que são frequentemente confundidos. A descriminação é o acto de isentar de crime. Assim, descrimina-se uma pessoa que tinha sido acusada de um crime qualquer, por se ter provado que não o cometeu. Quanto à discriminação, refere-se ao acto de separar, de segregar, de pôr à parte. O racismo é uma discriminação. Quer isto dizer que se trata de um conceito praticamente oposto ao da descriminação, e é preciso ter cuidado na utilização destas duas palavras, porque uma se refere a uma atitude, e a outra à atitude contrária.

O "DIFÍCEL"... E O "FÁCEL"

            Aqui, o problema é de pronúncia. Em certos meios sociais, criaram-se tiques da fala muito curiosos, que fazem substituir o som i por e. E o mais curioso é que isso tanto acontece nas classes com baixo nível de educação como nas pessoas chamadas "finas". Em ambas, é vulgar escutar palavras como estas: difícel, fácel, em vez de difícil, fácil. Eliminar estes hábitos é difícel – perdão, queria eu dizer que não é fácel...
           
O "EMIGRANTE" E O "IMIGRANTE"

            As duas palavras são tão parecidas que é fácil confundir a sua pronúncia. No entanto, designam coisas (ou melhor, pessoas) completamente diferentes. Um emigrante é precisamente o inverso de um imigrante. Este último, o imigrante, é o que entra num país que não é o seu, ao passo que o outro, o emigrante, é o que sai da sua pátria para ir viver noutro país. Às vezes, cruzam-se na fronteira...

"EMINENTE" E "IMINENTE"

            Mais um caso de palavras homófonas, com significados completamente diferentes, mas não opostos (como acontece, por exemplo, com as palavras emigrante e imigrante). Na verdade, o que uma delas designa não tem nada a ver com o que designa a outra. Eminente refere-se a alguém ou alguma coisa elevada, superior, que está acima dos demais (dai o título de Sua Eminência aplicado aos cardeais da igreja católica). Quanto a iminente, significa algo que está prestes a acontecer, ou que está mesmo a aproximar-se. A mistura dos dois conceitos só pode acontecer em casos muito raros e pouco prováveis. Por exemplo, se um bispo está prestes a ser designado cardeal, pode dizer-se que é um eminente iminente...

ELES "ENTRETIAM-SE"

O verbo entreter é um pouco difícil para muita gente, constituindo uma "rasteira" para quem pretende falar bom Português. Para quem tenha dúvidas a respeito das suas conjugações, o melhor é seguir as regras usadas para o verbo ter. Assim se evitarão asneiras como a da frase "os miúdos entretiam-se a jogar à bola", que deve ser corrigida para "os miúdos entretinham-se a jogar à bola".

           "ENVIUSADO"

É uma daquelas palavras cujo uso se explica (mal) pela dificuldade em pronunciar a palavra certa, que é enviesado, significando que está de viés, isto é, que está colocado em posição oblíqua. De um estrábico se diz que tem os olhos enviesados.

            A "ESTADA" E A "ESTADIA"

         A diferença está no tempo. Entende-se que uma estada é uma situação de permanência, em algum lugar, por tempo bastante prolongado, ao passo que a estadia será uma estada por tempo limitado. Assim, quem mora habitualmente em determinado local fará nesse local a sua estada; quem o visitar durante uns breves dias fará ali uma simples estadia.

         "EU SOU DOS QUE ACREDITO..."

            Como é que está correcto? Eu sou um dos que acredito ou Eu sou um dos que acreditam?... A forma correcta é a segunda, porque o verbo deve concordar com o sujeito, que neste caso é os, em substituição de aqueles. Portanto, Eu sou um daqueles que acreditam. É mais fácil de perceber: se virarem a frase do avesso e a escreverem com todos os elementos que completam a ideia: Entre aqueles que acreditam estou eu, que sou um deles, os que acreditam. No entanto, este erro é frequentíssimo, ouvindo-se e lendo-se e toda a hora frases como Ele faz parte dos que concorda com isto, quando deveria ouvir-se e ler-se Ele faz parte dos que concordam com isto.

"FÁÇAMOS", "PÓSSAMOS" E SIMILARES

A conjugação no conjuntivo atrapalha muita gente, em particular nos plurais. No verbo fazer, é fácil conjugar no singular: eu faça, tu faças, ele ou ela faça – mas as coisas complicam-se ao chegar ao nós façamos, que parece mais fácil pronunciar nós fáçamos. O mesmo para outros verbos, como poder:  eu possa, tu possas, ele possa, nós possamos... que às vezes sai nós póssamos. É preciso ter atenção a estas formas irregulares, e pensar um pouco antes de as usar, para que possamos falar bem, isto é, para que não fáçamos asneira...  

"FIZESTES"

No verbo fazer, aqui usado como exemplo, é frequente a confusão entre a segunda pessoa do singular e a segunda pessoas do plural. Deve dizer-se, respectivamente, tu fizeste e vós fizestes – mas ouve-se muito tu fizestes, tal como tu abristes, tu entrastes, tu comestes e por aí fora. Burrice ou falta de atenção? Seja qual for a explicação, é preciso usar as formas correctas: tu abriste, tu entraste, tu comeste, etc. De contrário, fizestes disparate...
                                                                                                                             CONTINUA

1 comentário:

  1. Muito bom e didático. Vou inevitavelmente enviar estas "correções" a alguns colegas de trabalho.
    Abraço

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