20/06/2012

LUGARES COMUNS - De "aprendiz de feiticeiro" até "chorar como uma madalena"

APRENDIZ DE FEITICEIRO

            Ser aprendiz de feiticeiro significa atrever-se a fazer coisas para as quais não se está preparado, descambando em resultados desastrosos. É o que acontece, por exemplo, a quem se mete a governar uma casa (ou um país) sem ter capacidade para tanto... Um certo aprendiz desta espécie surge-nos numa história contada por Goethe. Tratava-se de um grande preguiçoso, que estava a fazer o seu curso de magia com um mestre de todas as feitiçarias. Ora os aprendizes servem, entre outras coisas, para cumprir as tarefas domésticas nas casas onde estão alojados – e este tinha por missão encher um tanque com água, que tinha de carregar de um poço. Um dia, estando o mestre ausente, o aprendiz, que já sabia alguns truques, resolveu aplicá-los enquanto se punha a descansar. Para isso, deu ordens mágicas a uma vassoura, para ir carregar a água, e ela assim fez, transportando dois baldes de cada vez. Mas o aprendiz adormeceu e quando, mais tarde, acordou, viu alarmado que o tanque já estava a deitar por fora – e ele não sabia como fazer parar a diligente vassoura! Entrou em pânico, partiu-a em bocados, mas cada bocado transformou-se noutra vassoura a carregar água, imparavelmente! Quando o feiticeiro voltou, tinha a casa alagada, e teve de aplicar uma grande magia para acabar com aquele maremoto... e um valente castigo ao aprendiz, obrigando-o a secar o chão todo com uma esfregona... Esta história foi maravilhosamente contada, em desenhos animados, no filme Fantasia, que Walt Disney realizou. Todavia, nem todos os aprendizes de feiticeiro são castigados como o Rato Mickey. Alguns escapam...

AQUI D'EL-REI!

            Na Idade Média, os senhores feudais tinham poder de vida e de morte sobre o povo. Mais tarde, esse poder começou, gradualmente, a ser atribuído aos reis, que passaram a dispor de forças militares e outras, cuja missão era protegê-los e, ao mesmo tempo, proteger os povos. Mas os senhores feudais tiveram dificuldade em aceitar a nova partilha de poderes e, em muitos casos, continuaram a massacrar os súbditos. Estes, sem outra ajuda, recorriam então às forças do rei, chamadas muitas vezes a intervir, ao grito desesperado "Aqui d'El Rei!", nem sempre correspondido, mas que ficou como símbolo da aflição dos fracos perante a tirania dos fortes.

AQUI É QUE ESTÁO BUSÍLIS

            Equivale a algo parecido com aqui é que está a dificuldade – mas o mais curioso é que a palavra busílis foi "inventada" por um copista da Idade Média, pouco sabedor, que copiava um texto em Latim. Nesse texto, surgia a expressão in diebus illis (que significa naquele tempo). Ora esta expressão aparecia partida de uma linha para outra: na primeira linha estava escrito in die e, na linha seguinte, aparecia bus illis. Atrapalhado com a interpretação da frase, o copista começou por traduzir in die por Índia...E depois, pensou que busillis era uma palavra nova, com o significado de problema, complicação. Daí o sentido que é dado actualmente a este lugar-comum. Aqui é que está o busílis equivale a aqui é que está a dificuldade, ou aqui é que está o gato...

ARROTAR POSTAS DE PESCADA

            Em tempos antigos, a pescada (o tal peixe que "antes de ser já o era", segundo o dito popular...) seria um dos peixes mais caros, um petisco que se comia apenas em casas abastadas. Os pobres tinham de contentar-se com o carapau, a sardinha, a tainha do rio e pouco mais, pois só os ricos podiam ter nas suas mesas um prato tão requintado. E, quando arrotavam (o que, nesses tempos, não era considerado – como acontece hoje – um hábito rude e mal educado), era até prestigiante mostrar, através do hálito, que tinham acesso a comidas tão finas. Assim, o facto de alguém arrotar postas de pescada significava mostrar ao povo que era alguém de alto gabarito!

ÁRVORE DAS PATACAS

            Muitos Portugueses emigraram para o Brasil, sobretudo no século XIX, à procura de melhor vida. Alguns, coitados, passaram por lá muito pior do que passavam por cá... mas outros, muitos outros, tiveram melhor sorte, trabalharam esforçadamente e fizeram fortuna. A figura do "Brasileiro", que voltava a Portugal riquíssimo, mandando logo fazer um faustoso palacete e financiando a recuperação da igreja da sua terra, tornou-se uma imagem frequente, sobretudo no Norte do país. Ora a moeda brasileira, durante muitos anos, era a pataca – e havia quem dissesse, por graça, que lá as patacas cresciam nas árvores, e que bastava chegar e abanar uma delas para recolher facilmente uma fortuna. Daí a criação da imagem mítica de uma árvore que, em vez de frutos, dava dinheiro a quem soubesse abaná-la como deve ser... 

ASSENTAR COMO UMA LUVA

            As luvas fizeram parte, durante séculos, do vestuário das pessoas mais requintadas. A partir do séculos XX deixaram, praticamente, de ser usadas, a não ser em certas cerimónias, ou quando fazem parte de uniformes oficiais. (Outros usos mais toscos, para fins profissionais, como as luvas utilizadas profissionalmente por operários, camponeses, etc.,, estão fora destes conceitos). No tempo em que as luvas eram o complemento indispensável das vestimentas elegantes, eram feitas à medida, por especialistas – os luveiros – que se preocupavam para que elas assentassem perfeitamente. Uma luva era, assim, a imagem de tudo o que se ajustava à pessoa que a usava. Era o símbolo delicado daquilo que essa pessoa exibia: o que vestia, o que ostentava, o que fazia parte dela – tudo o que, para ser perfeito, devia assentar-lhe como uma luva

AVE DE MAU AGOIRO

Os sacerdotes de certas religiões antigas tentavam adivinhar o futuro observando as entranhas de aves e outros animais, onde descobriam presságios estranhos. Para isso, usavam-se muito as aves de rapina – e como estas, por sua vez, estão ligadas à morte dos animais que lhes servem de alimento, foi-se criando a ideia de que um abutre, um milhafre, até mesmo um corvo, são aves que anunciam desgraças, portanto são aves de mau agoiro.

AVIS RARA

            Uma "ave rara" é aquela que se distingue de todas as outras aves – e aqui está uma imagem que também se aplica a certas pessoas, as quais, para além da sua beleza, demonstram qualidades raras, como a generosidade e a lealdade. O poeta latino Horácio chamou avis rara a Penélope, a mulher de Ulisses, que ficou longos anos à espera que o seu esposo corresse o mundo, nas suas aventuras (dizem que chegou até Lisboa, cidade a que teria dado o seu primitivo nome, Ulisseia). Penélope resistiu sempre, com coragem e nobreza moral, às investidas daqueles que gostariam de desfrutar da sua beleza – e, já agora, da sua fortuna... Mas ela aguardou, casta e pacientemente, o regresso de Ulisses. E foram as suas virtudes, tão pouco praticadas na época, que levaram o poeta a chamar-lhe avis rara. O conceito estende-se assim a quem demonstra qualidades morais de excepção.

AZOUGADA VEDETA

            Este é antigo, já não se utiliza presentemente, mas foi um dos lugares-comuns que tiveram maior presença nas notícias dos nossos periódicos. Era fatal como o destino (lugar-comum) ele aparecer, quando os jornalistas, particularmente os críticos de Teatro, se referiam à actriz Laura Alves. Não sei quem foi o inventor do qualificativo mas, a partir de certa altura, e durante muitos anos, sempre que havia uma referência á actriz, lá vinha ela, obrigatoriamente, classificada como a azougada vedeta!... O termo é interessante e até definia muito bem a personalidade extrovertida (pelo menos em palco) da Laurinha – mas tornou-se tão repetitivo que acabou por perder o efeito pretendido. Já se sabia de antemão: crítica favorável ou desfavorável (estas eram raras) a uma peça com a Laura Alves tinha obrigatoriamente, de enaltecer o trabalho da azougada vedeta... Era pitoresco, era curioso, até era justo – mas acabou por ser cansativo.

BARCO (LEVAR O) A BOM PORTO
           
De uso generalizado, aplica-se quando se pretende falar de uma tarefa que é bem concluída – não necessariamente, e não exclusivamente, em ambiente marítimo. No entanto, sendo a tradição portuguesa como é, baseada nas aventuras quinhentistas dos Descobrimentos, fica sempre bem introduzir esta alusão "com traje de marujo" num texto jornalístico em que se o pretende (desculpem a expressão plebeia) não meter água...

BATER A BOTA

            A expressão tem um tom vagamente militar, mas não há uma explicação única para o seu significado, que é morrer. Talvez haja uma ligação com o facto de os soldados (pelo menos os antigos, os das guerras convencionais) morrerem em batalha com as botas calçadas. Até houve um filme de Hollywood com este título: "Todos Morreram Calçados", realizado em 1941 por Raoul Walsh, com Errol Flynn no papel do general Custer, comandante do famoso 7º de Cavalaria... O título significava que todos os soldados estavam preparados para enfrentar a morte, devidamente ataviados.

BELEZA ESTONTEANTE

São raros os escritores capazes de se limitarem a descrever a beleza (de uma mulher, de uma flor, de uma paisagem) usando uma palavra simples, uma palavra única, como, por exemplo: Ela era bela. A frase parece-lhes, talvez, pouco expressiva, e acaba, habitualmente, por ser enfeitada com mais um adjectivo laudatório, ou com uma palavra bonita. Em vez de Ela era bela, ou mesmo de Ela era muito bela, acham que fica melhor escrever Ela tinha uma beleza estonteante. Ou qualquer outro qualificativo do mesmo calibre.

BOTA-DE-ELÁSTICO

            Houve tempos em que existia, entre os diversos modelos de calçado masculino (sapatos, botas da atanado, mocassins, sapatos de polimento, tamancos, alpargatas, etc.), um modelo muito cómodo, porque não precisava de atacadores: era a bota-de-elástico. Como este tipo de calçado foi caindo em desuso e só era usado por gente de idade avançada, o nome bota-de-elástico começou a ser aplicado, depreciativamente, a quem tinha ideias antiquadas. Um dos exemplos mais citados pelos inimigos do Estado Novo é o do próprio Salazar, que sofria dos pés e usava umas botas especiais – por isso muita gente se refere a ele como o Botas.

CALA-TE BOCA

            Expressão que algumas pessoas usam para fingir que são discretas e confiáveis, incapazes de revelar segredos e de falar mal de outras pessoas. Na verdade, são muitas vezes pessoas maquiavélicas, que espalham tranquilamente um boato ou uma pequena calúnia, mas que simulam um imediato arrependimento, exclamando Cala-te boca! e tapando-a simbolicamente com a mão, como se as palavras venenosas lhe tivessem, escapado sem querer...

CALCANHAR DE AQUILES

            É um dos lugares-comuns mais citados – e também, creio, um dos mais minuciosamente explicados. É muito conhecida a história. Aquiles foi um dos maiores heróis da antiga Grécia. A sua vida e as suas vitórias foram descritas por Homero na Ilíada. Ainda muito jovem, sua mãe, Tétis, mergulhou-o nas águas sagradas do rio Estige, a fim de o tornar invulnerável às armas inimigas. Aquiles teve uma vida gloriosa, vencendo guerras e protagonizando extraordinárias aventuras. Foi o vencedor da famosa Guerra de Tróia. E ainda teve tempo para se apaixonar por Polixena, filha de Príamo. Porém, quando se preparava para a cerimónia do casamento, no templo de Apolo, foi atingido por uma flecha disparada pelo ciumento Páris, que o atingiu no calcanhar – a única parte do seu corpo não protegida pelas águas milagrosas, pois fora por aí que sua mãe o suspendera ao mergulhá-lo no rio... E é a partir desse episódio que surge a expressão calcanhar de Aquiles, significando o ponto fraco, o lugar sensível de qualquer pessoa ou qualquer acontecimento. Curiosamente, para algumas pessoas mais românticas, o calcanhar de Aquiles está situado... no coração...

CEREJA (A) EM CIMA DO BOLO

Quando tudo já parece terminado, quando um trabalho está concluído, quando já nada parece poder acrescentar-se ao que está feito – um pormenorzinho mais, um suplemento inesperado, uma melhoria, um brinde com o qual não se contava, sugere-nos a comparação com aquela cereja cristalizada que o pasteleiro coloca no cimo de um lindo bolo, para lhe dar um toque final de requinte e de boa apresentação.

CERTO E DETERMINADO

            Pode dizer-se que esta expressão já entra na categoria das tautologias, das redundâncias, pois as duas palavras que a compõem têm o mesmo sentido, e cada uma delas funciona muito bem, sem precisar da outra. Por exemplo: um certo caso, ou um determinado caso, têm o mesmo valor e o mesmo significado. Todavia, há quem ache que falar de um certo e determinado caso torna mais expressiva a frase... e o caso. Talvez. O que é importante é não usar a fórmula repetitivamente, porque, então, lá se vai a expressividade...   

CÉU ESTRELADO
                
Nas cenas românticas nocturnas, os autores gostam muito de colocar estrelinhas, muitas estrelinhas, no céu, para o qual olham, embevecidos, os pares de amantes que, de olhos em alvo, admiram cá de baixo as constelações – isto na época estival, porque, se a cena se passa no Inverno, é por vezes citado um pesadíssimo e triste céu plúmbeo. Mas, voltando ao céu estrelado, a imagem já foi usada tantas vezes que me parece ter perdido todo o efeito pretendido. É por isso que muita gente, quando lê a palavra estrelado, pensa logo, pouco romanticamente, num ovo. 

CHEIRO NAUSEABUNDO

Há cheiros bons – os perfumes – e maus cheiros – o cheiro do lixo, por exemplo, verificando-se o curioso fenómeno de que o lixo, qualquer lixo, sempre cheira da mesma maneira: a lixo... Para dramatizar um cheiro mau, o lugar-comum mais utilizado é este: baptizá-lo de cheiro nauseabundo. Esta palavra significa que o cheiro causa náusea, enjoo, repugnância. Entre os maus cheiros nauseabundos destaca-se o cheiro de gente mal lavada.

CHORAR COMO UMA MADALENA

Parece que Maria Madalena gostava muito de Jesus Cristo. O Dan Brown, autor do Código Da Vinci, atreveu-se mesmo a insinuar, ou melhor, a afirmar, que eles chegaram a formar um casal e a ter descendência... E o Saramago, no Evangelho segundo Jesus Cristo, também escreveu algo a esse respeito, com poucas vírgulas... Não vou meter-me por esses atalhos (lugar-comum), discutindo a veracidade de tais teorias. O que ficou dos relatos bíblicos foi o facto de a Madalena ter chorado copiosamente por causa do mal que viu fazerem ao seu amado Cristo. Daí a frase fácil, segundo a qual toda a mulher que chora, nem que seja por um brinco perdido, tem obrigatoriamente que chorar que nem uma Madalena.

CONTINUA

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