16/06/2012

LUGARES COMUNS - De "à beira de um ataque de nervos" até "apertar o cinto"

6. LUGARES-COMUNS

O que são lugares-comuns?

São expressões convenientes, introduzidas na escrita, ou na fala, com a intenção de torná-la mais rica – mas que produzem, frequentemente, o efeito contrário. Na verdade, a frase feita, o clichê, o chavão, a frase prêt-à-porter, são expressões que tentam tornar um texto mais pomposo, mas cujo resultado é, muitas vezes, o oposto dessa meritória intenção. O uso de lugares-comuns, o abuso de metáforas, a repetição frequente de frases e citações conhecidas, são truques que dão ao discurso um convencionalismo e um artificialismo que acabam por torná-lo pretensioso e, até, chato.

            Por razões de comodidade e de arrumação do tema, comecei por tentar a classificação dos lugares-comuns segundo os seus usos, separando aqueles que mais frequentemente se encontram na Literatura, na Imprensa ou na Linguagem Popular.

Desisti depressa. Cheguei à conclusão de que essa diferenciação não seria mais que um preciosismo inútil, pois os mesmos lugares-comuns podem ser encontrados em qualquer destas três modalidades de Comunicação – e noutras. Por isso, caro Leitor, achei que não valia a pena separá-los e classificá-los por grupos. Os lugares-comuns, sejam eles usados na Literatura, no Jornalismo, na Rádio, na Televisão ou na Linguagem-de-Mesa-de-Café, coincidem e repetem-se de tal forma, e com tal frequência, que o melhor será limitar-me a apreciá-los, a todos os que couberem neste capítulo, com o mesmo espírito levemente crítico e a mesma condescendência amável que deve aplicar-se a todos os pequenos fenómenos pitorescos, tão característicos das variadas manifestações, escritas ou faladas, da nossa complicada Língua.

Sabe-se de alguns escritores e linguistas que tiveram a intenção de reunir, em obras tão completas quanto possível, a lista dos lugares-comuns existentes nas línguas dos seus respectivos países, e nas épocas em que viveram. Teria sido essa a intenção anunciada, por exemplo, pelo francês Gustave Flaubert, depois repetida pelo brasileiro Machado de Assis. A intenção de qualquer deles, tanto quanto sei, não chegou a concretizar-se.

Em Portugal, Orlando Neves publicou um Dicionário de Expressões Correntes, que inclui, além de muitos lugares-comuns, as mais conhecidas frases feitas e outras expressões muito repetidas na nossa linguagem oral e escrita.

Também Mafalda Lopes da Costa se dedicou a apresentar, diariamente, na RDP Antena 1, uma lista dos mais conhecidos lugares-comuns, cada um deles dando origem a um curto programa de três minutos.

Nas obras literárias, mesmo os mais afamados autores (ora cá estão eles a aparecer: afamados autores é um lugar-comum) utilizam frequentemente, nos seus textos – romances, ensaios, novelas – expressões triviais, fáceis, sem grande originalidade, já usadas muitas vezes, e que, por isso mesmo, contêm ideias condensadas e aproveitadas anteriormente por outros.

Cada um destes lugares-comuns dá-me sempre a sensação de que o autor, naquele momento, estava em crise de criatividade e, por isso, não teve melhor solução do que aplicar uma expressão já conhecida e mil vezes usada (acho que este mil vezes também é um lugar-comum...) para compor o seu texto.

Também os jornalistas, por causa da pressa com que redigem as suas notícias ou comentários, são tentados a usar lugares-comuns, ao relatarem as situações e os factos que descrevem. É natural. Os textos jornalísticos não dão tempo para grandes revisões, há que produzi-los depressa e enviá-los rapidamente para a paginação do jornal ou da revista, porque há prazos a cumprir e edições a sair.
           
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Apresento apenas alguns (repito: apenas alguns) dos lugares-comuns que se encontram, a toda a hora, em textos de jornais e revistas, em livros de autores nacionais, em livros traduzidos (porque o fenómeno é universal e ataca escritores e tradutores de todo o mundo literário conhecido) – e, também, nas falas de locutores de Rádio e Televisão, em legendas, em cartazes, em anúncios, etc.

Claro que, além dos que são aqui citados, existem muitos outros lugares-comuns, assim como uma quantidade infindável de outras expressões do mesmo tipo – mas ficam neste capítulo, apenas, alguns daqueles que surgem mais frequentemente. Escolhi-os entre os que me parecem mais pitorescos, ou que são citados de forma mais insólita. A minha intenção é muito mais a de brincar com eles, e muito menos a de explicar as suas origens.



Este trabalho consiste, portanto, numa tentativa para abordar o tema de forma amável e simpática. Não quero parecer zangado com quem utiliza lugares-comuns, era só o que faltava! Pretendo somente levar o barco a bom porto (lugar-comum), navegando nas águas do pitoresco, com a explicação, mais ou menos ligeira, de cada frase ou expressão, sem me preocupar muito com o rigor da sua análise gramatical ou histórica, porque não é este o lugar para isso.

Assim, caro Leitor, saiba que cada lugar-comum será aqui interpretado de acordo com a minha visão pessoal sobre a sua origem e a sua aplicação actual – mas realçando particularmente a sua faceta cómica.



À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS

É uma das expressões que os jornalistas adoram empregar, quando lhes falta a inspiração e o talento para encontrar outra melhor, que descreva uma situação especialmente complicada. Nasceu, creio eu, do título de um filme de Pedro Almodovar (Mulheres à beira de um ataque de nervos), mas passou rapidamente a servir, não só para definir o nervosismo das mulheres, mas também o dos homens em geral, dos políticos em particular, dos automobilistas e dos peões, dos polícias e dos ladrões, dos malucos e dos psiquiatras – enfim, passou a ser uma frase conveniente para descrever pessoas e situações complicadas. Só que se tornou tão repetitiva que consegue pôr os leitores, que se deparam tantas vezes com ela... à beira de um ataque de nervos... 

A CASCAIS, UMA VEZ E NUNCA MAIS

            No tempo da Monarquia, os nossos Reis passavam férias em Cascais, o que arrastava obrigatoriamente para aquela vila os nobres, os burgueses ricos e todas as pessoas que aspiravam a confundir-se com a Alta Sociedade... A reunião de tanta gente endinheirada provocava, evidentemente, a subida dos preços de tudo quanto se vendia por ali. Assim, os mais pobres, ou os mais remediados, que iam a Cascais para se misturarem com os ricos, gastavam mais dinheiro do que os seus orçamentos permitiam, e vinham de lá com a promessa de nunca mais voltarem a uma terra onde tudo era tão caro... Daí a expressão – a Cascais, uma vez e nunca mais! – reflectindo a desilusão daqueles que queriam misturar-se com os ricos, pertencendo à classe dos pelintras.

A FACA E O QUEIJO NA MÃO
           
Quem tem numa mão um queijo e, na outra, uma faca para o cortar, está, evidentemente, em vantagem sobre os outros convivas sentados à volta da mesa. Isto porque tem o privilégio de cortar as doses de queijo como bem quiser, dando a cada um dos seus preferidos uma fatia maior e, àqueles de quem não gosta, uma fatia fininha... ou apenas a casca! Assim, em sentido figurado, ter a faca e o queijo na mão significa mandar, dominar, ter o poder.

À MATROCA

            Diz-se de alguém ou alguma coisa desorganizada, sem rumo, sem orientação. Em linguagem de marinheiros, um navio anda à matroca quando anda sem rumo. Uma expressão equivalente, mais popular, é ao deus dará.

A PENSAR MORREU UM BURRO

            A história vem de um estudo muito citado, que foi elaborado pelo teólogo Jean Buridan, na Idade Média; mas já o velho Aristóteles tinha reflectido sobre o mesmo assunto, no seu tempo. Parece que um certo burro, perante duas tigelas, uma com água e outra com aveia, ficou a pensar longamente se havia de começar por matar a sede ou por matar a fome... Tanto pensou, que acabou por morrer, coitado, sem ter provado nem o líquido nem o sólido. Muitas pessoas se debatem com dúvidas semelhantes – e tanto pensam que acabam por não fazer nada – como o burro!

A PENTE FINO

            Esta expressão transporta-nos a tempos antigos, provincianos, quando a higiene não era uma prioridade, e as cabeleiras, especialmente as femininas, serviam, por vezes, de alojamento a uns bichinhos            incómodos, que eram muito difíceis de eliminar. Então, as mães extremosas passavam horas a pentear as longas madeixas das filhas, passando e repassando, com uns pentes especiais, de dentes muito apertados, a fim de as libertar das lêndeas, os ovos dos piolhos que ali se instalavam e que faziam muita comichão... Desses tempos antigos, que os champôs vieram (felizmente!) modificar, ficou a ideia de que só com um pente fino é possível espiolhar mistérios pequeninos, desses que também fazem comichão, não nos couros cabeludos, mas nas consciências.

A VER NAVIOS

            A origem desta expressão está ligada à cidade de Lisboa, particularmente na versão a ver navios no alto de Santa Catarina. Aquele local privilegiado da capital permite ver claramente os navios que entram no Tejo ou saem a barra, pelo que, em tempos antigos, quando não havia muitas distracções, os lisboetas iam para ali passar o tempo, a ver o trânsito dos barcos no rio... No tempo das descobertas, também era dali que se viam partir ou chegar as caravelas que participavam nas grandes aventuras desses tempos, e que traziam as riquezas das Índias ou do Brasil. Há ainda outra interpretação: depois de Portugal ter ficado sob o domínio estrangeiro, os saudosistas esperavam ver surgir, numa manhã de nevoeiro, o desejado D. Sebastião, e aquele era o lugar indicado para o ver aparecer no horizonte... Só que, como isso nunca mais acontecia, a expressão a ver navios passou a significar algo que muito se esperou mas nunca se concretizou. E o Alto de Santa Catarina continuou, sempre, a ter muitos mirones... 

AD HOC

É uma expressão habitualmente mal aplicada, pois, em vez de significar ao acaso (que é o sentido que costuma ser-lhe atribuído) deve traduzir-se com o significado para isso, para esse fim, com essa função. Por exemplo: uma "comissão ad hoc" é constituída com um fim determinado. Mas também se usa para designar uma prova de aptidão de uma pessoa que não tem habilitações académicas adequadas, mas tem conhecimentos práticos suficientes para se candidatar a um curso superior. É claro que isto se passa em teoria – porque, na prática, muitos alunos ascenderam a tais cursos sendo quase analfabetos, o que muito contribuiu para o descrédito da expressão que, nesses casos, passou a significar qualquer coisa parecida com à balda...  

ADVOGADO DO DIABO

            Nos processos de canonização, o Vaticano nomeia sempre um experiente teólogo para o cargo de Advogatus Dei (o Advogado de Deus), que apresenta e defende os milagres e outros argumentos a favor do candidato a santo – e, por outro lado, nomeia o Advogatus Diaboli (Advogado do Diabo), outro teólogo encarregado de sublinhar os pontos fracos ou duvidosos do processo de canonização. É evidente que este perde normalmente a sua causa em favor do primeiro, pois toda a gente sabe que nenhum destes processos é iniciado sem haver um mínimo de certeza prévia quanto ao facto de o novo santo ser mesmo reconhecido...

AFAMADO AUTOR

         Nas referências que se fazem a um escritor mais ou menos conhecido, é quase obrigatório usar esta forma – o afamado autor – ou qualquer outra do mesmo calibre, como o prestigiado romancista, o célebre literato, o famoso homem de letras, o insigne escritor, ou outra com valor laudatório semelhante. Isto deve vir dos tempos em que havia tantos analfabetos que uma pessoa que soubesse escrever se distinguia de todas as outras... Assim, ainda hoje, até parece que é "proibido" falar de uma pessoa que escreve, sem que seja enfeitada com um adjectivo que a distinga das pessoas normais...

AGRADAR A GREGOS E A TROIANOS

            A antiquíssima Guerra de Tróia, demorada e complicada, começou com o rapto da bela Helena, esposa do rei Menelau, e arrastou-se durante anos, com episódios trágicos e cómicos (entre estes, o do famoso cavalo de madeira, através do qual os invasores conseguiram ser introduzidos na cidade, acabando por conquistá-la). A origem desta frase está, provavelmente, na própria Helena, que foi tão requestada e admirada por uns e outros, que seria ela o melhor símbolo de alguém que agradava a toda a gente – e é este, afinal, o sentido da expressão.

AGUARDAR NERVOSAMENTE

            Rara é a personagem que aguarda seja o que for (uma visita, um autocarro, um comboio, um amante) sem uma grande ansiedade e uma grande expectativa. A narrativa dessa espera é habitualmente ilustrada com a informação de que a pessoa aguarda nervosamente... Na verdade, sabe-se que ninguém gosta de esperar seja pelo que for, ou seja por quem for. Por isso, compreende-se essa atitude, que introduz maior dramatismo no episódio que se descreve... Existe uma variante de sentido contrário: a daquelas pessoas que conseguem aguardar serenamente. Mas são muito poucas.
ÁGUAS DE BACALHAU

            Quando os nossos barcos bacalhoeiros iam para a Terra Nova, aconteciam por vezes acidentes: um ou outro naufragava, alguns homens morriam... Isto é, ficavam lá por essas águas frias. Daí a expressão, que significa, genericamente, ficar sem efeito, desaparecer. Também as águas em que se demolha o bacalhau salgado, preparando-o para ser cozinhado, são, normalmente, para deitar fora. Enfim, tudo desperdícios...


AMARGA DECEPÇÃO

Uma decepção, seja ela qual for, é sempre uma coisa aborrecida. Uma pessoa pode ficar muito decepcionada (por exemplo) por não ter obtido os favores, do ponto de vista amoroso, da pessoa que ama. É decepcionante – e deixa uma espécie de amargo de boca (cá está outro lugar-comum, aparentado com o primeiro), o qual é difícil de eliminar, mesmo com pastilhas antiacidez. Por isso, em Literatura, usa-se muito este adjectivo "amargo", que descreve uma sensação física, aplicando-a, por analogia, à sensação psicológica causada por uma frustração qualquer.

AMIGOS DE PENICHE

            Quando morreu o Cardeal D. Henrique e foi preciso encontrar um sucessor para o trono de Portugal, defrontaram-se vários netos de D. Manuel I com o rei espanhol Filipe II. Entre os candidatos estava D. António, o Prior do Crato, que chegou a ser aclamado rei pelo povo, reinando durante breves dias; mas, como tinha sido considerado ilegítimo, acabaria por perder a favor do espanhol, não sem antes fazer várias tentativas para se manter no trono. Numa dessas tentativas, tropas inglesas, enviadas pela rainha Isabel I, que o apoiava, desembarcaram em Peniche e marcharam até à capital. Mas, como eram constituídas por mercenários, deixaram atrás de si uma onda de destruição, roubos e saques, até serem obrigadas a regressar a Inglaterra. Ora, como é evidente, "amigos" destes não eram muito bem-vindos e, por isso, quando se quer falar de amizades falsas ou dispensáveis, usa-se a expressão amigos de Peniche – com toda a injustiça que isto representa para os habitantes actuais daquela terra...

AMPLAS LIBERDADES

            A Liberdade, em princípio, só pode assumir dois aspectos: ou existe, ou não existe – e pronto. Não há liberdades completas ou incompletas. Isto em teoria, porque, na prática, já se sabe qua as coisas são mais complicadas... Na Política, surgiu uma espécie de moda, que consiste em reclamar as mais amplas liberdades, quando não se tem o poder. Ou em prometê-las, quando se deseja ascender a ele. Funciona como slogan em manifestações e discursos, mas a sua repetição exaustiva tirou-lhe força e significado, até pelo facto de os seus autores serem geralmente suspeitos de não coincidirem com os mais estremados praticantes daquilo que tão sonoramente reivindicam.

AMPLO DEBATE

            Expressão muito usada nos meios políticos para designar uma discussão em que se trocam opiniões contraditórias. Curiosamente, quanto mais amplo é o debate, mais improvável se torna que ele conduza a uma conclusão aproveitável. Normalmente, aqueles que advogam um amplo debate só o fazem quando prevêem uma aceitação favorável para as ideias que nele pretendem apresentar.

ANDAR À GANDAIA

As pessoas pobres, em todo o mundo, vasculham o lixo, à procura de qualquer coisa que lhes possa ser útil, para usar ou para vender. Como não se trata de um "emprego regular", aqueles que não passam por essas necessidades têm tendência a olhar tais indivíduos com ar superior, considerando-os simplesmente vagabundos e mandriões. Por isso, a expressão andar à gandaia, isto é, andar à busca de coisas aparentemente inúteis, e sem ter um trabalho fixo, passou a ser usada para definir quem anda à boa vida. O que, muitas vezes, é uma injustiça, porque a situação pode até ser provocada pelo facto de se estar a passar por uma fase de má vida.

ANDAR AO DEUS-DARÁ
           
            Quem precisa de auxílio para viver, e é crente, acredita que Deus, misericordiosamente, lhe dará um dia aquilo de que precisa... Mas houve um episódio real, passado no Brasil, em Pernambuco, no século XVIII, com um rico negociante chamado Manual Álvares, que justifica a frase. Era ele tão generoso que adiantava do seu bolso o salário dos soldados, quando estes não recebiam o seu pré... E o bom homem, quando lhe perguntavam se algum dia seria pago e lhe dariam o dinheiro que abonava, dizia sempre: "Ora, Deus dará!" Assim, tornou-se habitual dizer-se que as pessoas iam "ao Deus dará", quando precisavam de dinheiro.

AO FIM E AO CABO

            A expressão não é mais do que um pleonasmo propositado, com a intenção de a tornar mais enfática. Ao cabo significa o mesmo que ao fim. Portanto, a repetição serve, apenas, para lhe dar mais força.

APERTAR O CINTO

            Ora aqui está uma expressão que pretende ser simbólica – mas que a realidade dos factos pode acabar por transformar numa situação concreta. Fala-se em apertar o cinto quando se pede a alguém que prescinda de algo a que estava habituado – por exemplo, que deixe de comer ou de beber certas coisas boas e agradáveis, por falta de possibilidade de as comprar... O simbolismo pode então tornar-se realidade, e da teoria pode passar-se à prática. Isto é, quando o dinheiro é pouco, a frase pode ter de tomar-se à letra, e ser mesmo obrigatório fazer o tal furo suplementar no cinto, para este ficar mais apertado, já que a pessoa está realmente a ficar mais magra

CONTINUA

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