13/06/2012

"O PORTUGUÊS PITORESCO" - Cap. 5

5.  BENGALAS ou BORDÕES


            Da mesma forma que algumas pessoas com dificuldades de locomoção precisam do auxílio de uma bengala, um cajado, um varapau ou um bordão para se apoiarem ao caminhar, também há quem necessite da ajuda de certas palavras especiais, para conseguir formar as suas frases e levar o seu discurso por bom caminho.

            Devido à semelhança de funções (as bengalas, sejam elas de madeira, de cana ou de metal, servem para ajudar a marcha; e as palavras, usadas repetidamente, servem para ajudar a fala) também a estas se dá o nome de bengalas, ou bordões.

            A palavra bengala tem a sua origem em Bengala, nome de terra, é aparentada com Bengla, Bangala, Bangla, Bangladesh – e designa um cajado feito de cana de Bengala.

            Quanto à origem dos bordões ou bengalas da fala, pode ser muito variada, mudando com o tempo, com a evolução da Língua e até com as modas. Certas palavras, já antes usadas como bengalas, apareceram em determinadas épocas, para depois desaparecerem, podendo ressurgir mais tarde – tal como acontece com as cores dos fatos e vestidos, o tamanho das saias ou os nós das gravatas, que também vão surgindo e desaparecendo periodicamente, para voltarem a estar na moda mais tarde. Raramente é possível descobrir a sua verdadeira origem, e também não é fácil explicar as razões do seu aparecimento.

O que é certo é que algumas palavras se intrometem e insinuam de tal forma na Língua corrente (sobretudo na expressão oral) que passam a fazer parte dela, sendo muito difícil fazê-las desaparecer. Aliás, uma questão que se põe é esta: vale mesmo a pena tentar fazer com que elas desapareçam? Talvez sim, porque o efeito massacrante do seu uso torna, às vezes, muito incómoda e entediante a escuta das falas das pessoas que as utilizam, sem esquecer o que isso tem de redutor do nível da linguagem. Mas... eliminar tal fenómeno é uma tarefa que não é nada fácil!

            Recordo um caso pessoal, em que participei, no papel um tanto ingrato de "fiscal" ou "crítico" de um verdadeiro abusador do uso de uma bengala – no caso, a palavra portanto. Tratava-se de um padre, que fazia o baptismo de um bebé, filho de gente amiga, que me tinha convidado para a cerimónia. Ora um ateu não segue estes episódios da mesma forma que um crente, que acompanha o acto no seu aspecto religioso; por isso tem mais tempo para reparar em pormenores secundários, como, por exemplo, a construção das frases do orador. E, neste caso, até nem era difícil constatar como a oração se tornava especialmente pitoresca. O padre dizia-nos algo como isto: "Estamos portanto aqui reunidos hoje, portanto, para dar a esta criança, portanto, o sacramento do baptismo, que é, portanto, como sabeis, portanto, o primeiro dos sacramentos da igreja, representado, portanto, pela iniciação desta criança, portanto, através da suas purificação, portanto, no seio, portanto..." – e por aí fora, numa repetição infindável da palavra portanto, a tal ponto que alguns dos presentes, em vez de escutarem as palavras do oficiante e atenderem ao seu sentido, já se entretinham, isso sim, a contar quantas vezes o portanto era repetido... Mais tarde, já durante a festa que se seguiu à cerimónia, tive ocasião de manter conversa com o padre e, de forma cautelosa (porque nunca se sabe como as pessoas reagem às chamadas de atenção sobre os seus lapsos) disse-lhe que ele, com tal vício de linguagem, corria o risco de falar para ouvintes mais interessados naquela sua idiossincrasia do que no conteúdo da sua mensagem. O padre ficou espantado! Nunca se apercebera do facto – e nunca ninguém, pelos vistos, tivera a coragem de lho apontar. Agradeceu-me efusivamente e prometeu fazer o teste que lhe sugeri: passar a mandar gravar as suas homilias, para depois as escutar com atenção e assim eliminar o problema.
           
Esta situação é bastante corrente: as pessoas que usam bordões, simplesmente, não têm consciência do facto, e muito raramente dão por isso. Mas o caso é muito frequente, naqueles que, por razões profissionais ou por uma irreprimível ânsia pela prática da oratória, têm de falar perante um público, e têm de fazê-lo de improviso (pois, quando o discurso é escrito, há mais tempo e mais oportunidade para corrigir as frases, e as bengalas são, normalmente, eliminadas). É claro que também não é o caso dos locutores profissionais, quando estão apoiados por um texto previamente escrito. O fenómeno ataca especialmente os oradores espontâneos, sobretudo os que, por acaso ou obrigação, têm de falar em público com frequência, ou os que gostam apaixonadamente de discursar.


DOIS EXEMPLOS: AS BENGALAS DOS POLÍTICOS.

            Numa entrevista à TVI, que durou 56 minutos, o líder do CDS-PP, Paulo Portas, usou 69 vezes a expressão oiça, o que dá uma média de 1,23 vezes por minuto. Mas também disse 16 vezes repare uma coisa, 11 vezes deixe-me dizer-lhe, 7 vezes olhe, 4 vezes vamos lá ver e 1 vez defícil. (Fonte: revista Sábado nº 272, de 22/7/2009).

            Quando participava no programa da SIC Notícias Quadratura do Círculo, Jorge Coelho fascinava os telespectadores com a repetição da expressão digamos... As pessoas acabavam por dar mais atenção ao número de vezes que ele dizia digamos que aos argumentos utilizados nas suas falas – e iam fazendo risquinhos num papel, contabilizando as repetições... Num programa de 50 minutos, em que as intervenções eram proporcionalmente repartidas pelos 4 participantes, houve quem contasse 45 digamos no discurso de Jorge Coelho...

AS BENGALAS OU BORDÕES MAIS FREQUENTES


            Já citei o portanto, que é um dos mais populares e serve para pontuar as frases de alguma gente que até constrói bem os seus discursos, mas acaba por enfeitá-los involuntariamente com a repetição exaustiva da palavra.

            Um dos fenómenos mais curiosos, verificado na sequência da reviravolta política do 25 de Abril de 1974, foi a popularização do . Não que fosse uma invenção da época, pois o já era conhecido e muito usado antes. O hábito de começar uma frase por é pá, ó pá ou outras variantes, ou de dizer tá bem, pá, era bastante frequente. Mas, sem dúvida, com a libertação das diversas asfixias que eram até então aplicadas às pessoas (entre as quais a asfixia do discurso, sempre muito cheio de formalismos, de vossas excelências e de outras expressões respeitosas e burocráticas), houve como que um "desapertar de cinto" em vários campos, incluindo o linguístico, e um fraseado mais rasteiro chegou a instalar-se, mesmo a nível das figuras então mais importantes na vida do país. Quem escute as comunicações orais da época, entre comandantes das forças militares, ou entre figuras da política, encontra inúmeras repetições do – a tal ponto que chegou a entrar informalmente nos nomes das pessoas, como acontecia, por exemplo, no caso de um tal Vasco Pá Lourenço...

            Um outro bordão muito frequente é o pois. Este, como outros, é frequentemente usado, não só no meio das frases, para servir de pausa enquanto o orador arruma as ideias para continuar o seu discurso – mas, até, no início dessas mesmas frases.

            Não é invulgar ouvir-se dizer: Pois muito bom dia. Venho hoje falar-vos, pois, de um tema que tem uma enorme importância, pois, para a compreensão de...
           
Ou então: Portanto, ao iniciar esta minha comunicação, eu desejo, portanto, em primeiro lugar...

            Alguns destes bordões têm vida curta, aparecem e logo se somem. Mas outros têm duração mais prolongada e nunca se sabe o tempo que levarão a desaparecer. Alguns não têm, aparentemente, grande futuro, mas mantêm-se nos discursos durante muito tempo, apesar de serem menos populares que o pois... É, por exemplo, o que acontece com o já citado repare..., com que se iniciam frequentemente as respostas a perguntas de jornalistas. Ou o ouça... que também se escuta muitas vezes.

            Há outras formas de iniciar frases que são muito curiosas. Uma delas, aparentemente sem sentido, porque implicaria a existência anterior de algumas palavras ou ideias já expressas, é a que leva as pessoas a iniciarem desta forma o discurso: Então é assim...

            Isto quanto ao início, porque há outra expressão que, em contraponto, serve para finalizar frases, como uma espécie de despedida: Então vá...

            Para iniciar, para terminar ou para intercalar em frases, é muitas vezes repetida a expressão Ora bem... que é especialmente popular no norte do País, e mais na zona do Porto.

            Já mais para sul, particularmente na capital e arredores, entre pessoas com pretensões a exibir um estatuto mais refinado, usa-se mais frequentemente a tal expressão um pouco idiota, porque não tem qualquer lógica gramatical: Então é assim...

            Há um caso curioso, que é o da palavra pronto, usada como finalização de uma ideia ou de uma frase, arrumando um assunto e dando-lhe o toque final: pronto. Mas esta bengala assumiu uma variante que é uma espécie de plural esquisito: prontos – que se vulgarizou e entrou definitivamente nos hábitos vocais de muita gente. É asneira, evidentemente. Mas... que fazer? Apontar e criticar, evidentemente, mas depois... prontos!
           
            Enfim, bordões ou bengalas como estas, e outras, que todos conhecemos, tornam talvez a Língua mais rica – mas, quase sempre, são excrescências perfeitamente dispensáveis, habitualmente massacrantes e frequentemente ridículas.

            Não se pense, todavia, que estes fenómenos são exclusivos da nossa Língua. Eles aparecem em todas as outras Línguas do mundo, com maior ou menor força. Existem com enormíssima frequência no Inglês, tanto o que se fala no Reino Unido como o dos Americanos, dos Australianos e outros. E é muito curioso, por isso mesmo: por ser comum a todos os falantes dessa Língua, e por ser usado tão insistentemente, tão repetidamente, que parece fazer parte obrigatória dela. Refiro-me à expressão you know. A propósito, ou sem ser a propósito seja do que for, em entrevistas, em discursos, em declarações de todo o tipo, o you know repete-se, com uma insistência tal que se torna cansativa. Equivale, mais ou menos, à expressão portuguesa tá a ver?, ou semelhante. E não é menos chata do que esta.

Da próxima vez que assistirem a uma entrevista em Inglês, ou a um filme falado nessa língua, reparem na quantidade de vezes que, num diálogo corrente, sai o tal you know.

E não será má ideia terem à mão um papel e um lápis, par irem fazendo risquinhos...

                                                                                                                     CONTINUA 

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