12/11/2012

E SE O 25 DE ABRIL TIVESSE FALHADO? (11)

Os primeiros tempos da nova governação. Dona Maria revela-se uma experimentada especialista em Finanças, em Diplomacia, em Obras Públicas, em Educação, em Negócios Estrangeiros, em Agricultura, em Comércio e Indústria – enfim, em tudo!

            Como é natural, o Grande Comandante, o venerando Senhor Contra-Almirante Américo de Deus Rodrigues Thomaz, passado que fora o susto daquela revolução que, lá por ter sido falhada, não deixara de acagaçar muita gente, pelo menos temporariamente, quis tomar o leme da Nação, com a ajuda da pessoa que, no seu superior critério, achara mais indicada para orientar o Governo, em substituição do Professor Doutor Marcello José das Neves Alves Caetano, agora designado mais simplesmente (como já foi referido) por "o Caetano", tendo mesmo perdido o direito aos dois "éles" no "Marcelo".

Este revelara-se, afinal, um fracalhote e um chochinha, em contraste com o seu antecessor, o inesquecível Senhor Professor Doutor António de Oliveira Salazar, nunca por demais referenciado. Havia agora a esperança de que a Dona Maria constituísse uma imitação, ainda que pálida, daquele que fora o seu Mestre e Mentor.

Assim, logo na manhã do dia 26 de Abril, o venerando Chefe do Estado mandou chamar, ao Palácio Presidencial, aquela que escolhera para tão alto cargo. Já a informara previamente da sua decisão, através de um dos seus assessores, e ela mandara responder, através de um simples bilhete escrito a lápis, o seguinte: "Tá bem, aceito."

Dona Maria apresentou-se, à hora marcada, muito digna, modestamente ataviada, com um avental por cima de um vestido de chita muito simples, sapatos de salto raso e uma grande alcofa na mão. E não foi de cerimónias. Assim que entrou no vasto salão alcatifado, disse logo:

- Vamos lá a despachar, que tenho de ir à praça, antes que suba o preço do chicharro! O que é que quer de mim?

Um pouco abalado por aquela sem-cerimónia e por aquela atitude um tanto inesperada, o Grande Comandante tossiu, pegou nuns papéis, a fim de ganhar tempo para se recompor, e falou, no seu habitual tom resmungão:

- Queria acertar consigo a constituição do próximo Governo. Pensei nos seguintes Ministros...

Mas Dona Maria nem o deixou continuar:

- Agora não tenho tempo para essas conversas. E se era só para isso, nem vale a pena continuarmos. Eu não preciso de Ministros para nada. Posso perfeitamente assumir todas as pastas, porque estou preparada para isso. Adeusinho! – E já se preparava para sair porta fora.

- Mas... mas os Ministros... É preciso nomear já, pelo menos, o dos Negócios Estrangeiros, para explicar aos outros países o que se passou aqui..., Ou por outra, o que não se passou...

- Não se preocupe, que eu trato disso, depois das compras. Dou aí umas telefonadelas para o Kissinger, para o primeiro-ministro inglês e para o Vaticano, e fica o assunto arrumado!

- Mas os outros assuntos de Estado... as Finanças, o Orçamento...

- Está tudo debaixo de olho, não se chateie com esses casos, que disso percebo eu. Disso e de tudo. Escusa de arranjar Ministros, que eu domino todos esses assuntos. Bem, adeus, que se faz tarde e o senhor Pereirinha do talho já deve estar a estranhar o meu atraso!

E saiu do Palácio, deixando o Grande Comandante perfeitamente atónito.

- Estou tramado! – dizia ele para Dona Gertrudes, momentos depois. – Esta mulher saiu-me cá uma encomenda!... Se calhar, escolhi bem de mais...

- Ora, deixa lá, Américo! Se ela se dispõe a fazer o trabalho todo, aproveita tu para descansares e para voltares ao estado de sonolência que fez de ti um Presidente tão popular entre os humoristas nacionais!

E assim ficou provisoriamente resolvido, de momento, o problema da governação da nossa Bem Amada Pátria!

Consequências da tentativa de revolução: os saneamentos e outros fenómenos relacionados com o falhanço dos malvados insurrectos   

 É claro que era preciso eliminar por completo os últimos vestígios da intentona que ameaçara este bem amado País, que é de todos nós... Perdão, de todos nós, não! É de todos aqueles que o amam, e que amam incondicionalmente os Altos Responsáveis que o dirigem, a partir daquele momento representados superiormente por essa excelsa figura, tratada por todos, com enorme carinho, simplesmente por Dona Maria! Os outros, os que andem para aí com ideias esquisitas, importadas lá desse venenoso Estrangeiro-de-Fora, não merecem muito mais que desprezo e justa punição, por se atreverem a conspirar, tentando acabar com este estado da mais pura felicidade em que temos vivido nestas últimas décadas, e em que esperamos continuar a viver por muitas décadas mais!

            Em primeiro lugar, era necessário fazer aquilo que sempre se faz, em todos os países do mundo, quando há uma mudança dos seus mandantes: eliminar as figuras incómodas dos tempos e dos regimes anteriores. Chama-se, a estas operações, "saneamentos". As pessoas "saneadas" contribuem para que o ambiente fique desinfectado de ideias e acções perniciosas, que prejudicam o funcionamento normal das instituições.

            Assim, uma quantidade enorme de pessoas foi prontamente apontada em listas cuidadosamente elaboradas pela Dona Maria, constituindo os alvos preferenciais da severa sentença que lhes devia ser aplicada de imediato: todos para o olho da rua!

            Começando pelo sector militar, é evidente que foram logo saneados todos, mas mesmo todos, os implicados na tentativa de golpe. Seria difícil fazer aqui a lista completa desses malandros, mas ficam alguns dos mais evidentes: Otelo Saraiva de Carvalho, Melo Antunes, Vasco Lourenço, Vítor Alves, Garcia dos Santos, Salgueiro Maia, Jaime Neves, Vasco Gonçalves e muitos outros. Estes eram os mais activos, entre os que pretendiam conduzir o falhado golpe militar. Foi tudo para a reforma, e muita sorte em não terem ido para a Colónia Balnear do Tarrafal!... Houve muitos mais, mas era chato estar para aqui a encher páginas com nomes desses patifórios, que nem sequer merecem essa menção, a qual só lhes daria uma importância que de modo algum lhes cabe.

            Depois, foram arrumados os que se propunham compor uma futura (e evidentemente inútil!) "Junta de Salvação Nacional" – olha o disparate, como se o País precisasse de ser salvo nacionalmente por qualquer Junta! – e que eram, para começar, o tal General do monóculo, o Spínola; depois, outro General, o Costa Gomes, conhecido por "o Rolha", por ficar sempre a flutuar quando havia inundações de chatices; o Capitão-de-mar-e-guerra Pinheiro de Azevedo, um marinheiro truculento, tipo Popeye; o Capitão-de-fragata Rosa Coutinho, um sujeito que estava sempre a rir, mas que não teve vontade nenhuma de rir quando se soube saneado; o Brigadeiro Jaime Silvério Marques, antigo Governador de Macau; o General de Aeronáutica Diogo Neto, antigo comandante da zona aérea de Cabo Verde; e o Coronel de Aeronáutica Carlos Galvão de Melo, ex-comandante da Base Aérea de Monte Real. Toda esta gente foi mandada para casa, com a recomendação expressa de não porem os pés fora dos seus lares, a não ser numa ou outra ida ocasional ao supermercado, para comprar mantimentos... 
           
            Entre os políticos que mais activamente se tinham encostado ao movimento subversivo, ou que antes se tinham mostrado mais atrevidos nas suas atitudes anti-Governo, foi preciso sanear rapidamente aqueles que mais tinham dado nas vistas, e que foram lestamente corridos dos seus cargos oficiais e, até, de alguns cargos particulares. Eram pessoas que tinham ousado, nos últimos anos antes desta data fatal, levantar a crista e cantar de galo, exigindo disparates tão extraordinários como "eleições livres e directas para a Presidência da República", a "liberdade de Imprensa", a "eliminação da Censura e da PIDE", a "amnistia para os presos políticos" e assim por diante... Alguns desses senhores até tinham sido deputados, e pertencido, até pouco tempo antes, à chamada Ala Liberal, na Assembleia Nacional, de que já falei atrás. Foram todos castigados com a perda de várias regalias, para não se armarem em progressistas! Entre eles, contava-se um advogado baixinho mas muito refilão, chamado Francisco Sá Carneiro (que pretendia, vejam a ousadia! ver aprovada uma "Lei do Divórcio", parece que para ele próprio se poder divorciar); um jornalista, Francisco Balsemão (a este, parece que o ameaçaram expressamente de lhe cortarem o fornecimento de papel para o jornaleco que dirigia); um Mota Amaral, que viera dos Açores para dar, no Continente, descaradamente, sentenças sobre o "direito dos cidadãos à liberdade" e outras tolices assim; ainda um Magalhães Mota, um Miller Guerra, e mais uns tantos componentes da mesma perigosa quadrilha. Foram todos severamente censurados e proibidos de voltar a entrar na Assembleia Nacional. É certo que eles já de lá tinham saído, de livre vontade, por reconhecerem que não conseguiam torpedear o regime pelo lado de dentro daquelas vetustas paredes, mas... nunca se sabe, eram bem capazes de tentar o regresso, algum dia! Ora, assim, estando bem saneados, se o tentassem, bateriam com os narizes na porta, o que aleijaria bastante, pelo menos, o tal Sá Carneiro, que o tinha bastante grande!...

            Depois, foi a vez dos jornalistas, uma data deles, um grupo perigosíssimo, comparável a autênticos terroristas, tantos que não vou aqui mencionar todos os nomes, só de alguns que pretendiam bombardear, com palavras subversivas, a consciência virginal do nosso Povo, incutindo-lhe ideias erradas. Muitos foram logo para fora de portas – refiro-me às portas das suas respectivas redacções. Entre os nomes mais conhecidos, figuravam Raul Rego, Norberto Lopes, Adelino Gomes, uma respingona chamada  Diana Andringa, Afonso Praça, Cesário Borga, Fernando Cascais e mais uma porção deles, impossível de listar aqui. Um caso especial e muito duvidoso refere-se a uma tal Vera Lagoa, que não se sabia bem se era de sanear ou não, porque a sua posição política tão depressa a levava para o lado direito como para o lado esquerdo... Pelo sim pelo não, alguém lhe colocou mais tarde umas bombinhas à porta dos seus jornais, o "Diabo" e o "Sol", a ver se a assustavam. Parece que não deu grande resultado. 

            No capítulo da malandragem ligada à Televisão, é evidente que foi logo saneado o crítico Mário Castrim, que era um autêntico veneno, bem como um tal  Correia da Fonseca (outro crítico que até criticava acontecimentos que não aconteciam) e vários realizadores e locutores, como o Artur Ramos, o Sousa Veloso (o do jazz, não o irmão, o da TV Rural, coitado; este, ao contrário do outro, era uma jóia de pessoa), mais o Alfredo Tropa, e ainda outros perigosos agitadores.

             Entre a gente ligada ao Cinema, é claro que foram arrumados nas prateleiras vários pretensos cineastas que filmavam muitas cenas com fundos vermelhos, como o José Pedro Vasconcelos, o Fernando Lopes e o Lauro António, o crítico João Lopes, etc.

            Na Rádio, era indispensável sanear vozes como a do Luís Filipe Costa e outras, tão roucas como a dele, pelo seu injustificado desamor ao Estado Novo.

            Quanto aos chamados escritores, ou "escrevinhadores", não se podiam verdadeiramente sanear, porque nenhum deles vivia só de escrever as coisas horrorosas que saíam das suas almas e das suas canetas de tinta permanente – mas sempre podiam apertar-se-lhes os calos com umas ameaçazitas discretas de lhes censurar todo o palavreado que produzissem. Não que eu alguma vez tivesse lido uma só página de qualquer destes que vou citar em seguida, era só o que me faltava! estar a perder tempo com textos que jamais tinham feito justiça às benesses do Estado Novo... Enfim, fez-se chegar um prudente aviso, de que deviam ter muito cuidadinho, a prosadores e poetas tão pouco talentosos como Sophia de Mello Breyner, Ferreira de Castro, Mário Dionísio, José Gomes Ferreira, Álvaro Guerra, Luís de Stau Monteiro, Herberto Hélder, Fernando Namora, Fernando Assis Pacheco, José Cardoso Pires, Bernardo Santareno, Manuel da Fonseca e mais umas dúzias desses que eram (acho eu) fracos romancistas, poetas, novelista e ensaístas – mas todos (também eu acho fortes "reviralhistas".      

Soube-se na altura que havia um plano para libertar todos os presos políticos – plano esse perfeitamente injustificado, porque toda a gente sabe que não havia nem um só preso político em Portugal! A não ser que eles quisessem ser assim apelidados, para se darem maior importância, coitados... Seja como for, as medidas de segurança nas cadeias foram rapidamente aumentadas, para evitar que perigosos cadastrados, como o Palma Inácio, o José Manuel Tengarrinha, o Nuno Teotónio Pereira, o Mário Ventura Henriques, o José Luís Saldanha Sanches e mais uma catrefada de outros patifórios do mesmo jaez, se escapassem de Caxias, O mesmo em relação à Prisão-Hospital, onde estavam comodamente instalados o Dias Lourenço e o Rogério Carvalho, entre outros. Também foi reforçada a vigilância no Forte de Peniche, onde estavam em repouso o Francisco Martins Rodrigues, o Rui d'Espinay, o João Pulido Valente, o António Metelo Perez (que tinha a mania de trocar os apelidos) e mais uma data de outros, seguidores de várias ideologias políticas, mas que, para simplificar, eram todos considerados comunistas, isto para evitar confusões causadas pelas siglas que eles tinham inventado – desde o inquietante PCP ao MDP-CDE, MRPP, LUAR, BR, FL, MFP, MES, PRP, PS, PPD, PTDP, depois a UDP e muitos outros, que só de os citar me fica a doer a cabeça, com esta confusão de letras...

CONTINUA NA QUINTA-FEIRA 


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