19/11/2012

E SE O 25 DE ABRIL TIVESSE FALHADO? (13)


As primeiras iniciativas de Dona Maria. O acordo implícito entre a Presidente do Conselho e o Presidente da República, quanto às respectivas funções.
                                                                              
Passados que foram os primeiros dias do seu mandato, dias esses reservados para as adaptações que Sua Excelência a Senhora Dona Maria de Jesus teria obrigatoriamente de fazer nas suas actividades, oficiais e particulares, realizou-se um encontro muito importante com o venerando Chefe do Estado, o Senhor Contra-Almirante Américo de Deus Rodrigues Thomaz. Aliás, as tais adaptações até nem seriam muito complicadas, dada a longa experiência que Sua Excelência tinha adquirido, no decorrer de tantos anos de convivência com Sua Excelência o Senhor Professor Doutor António de Oliveira Salazar, e com a sua maneira de viver e de agir, tanto no plano pessoal como no plano político. Assim, por exemplo, embora contrariada, Sua Excelência teve de deixar de cuidar pessoalmente das galinhas e dos coelhos que tão amorosamente criava, nos jardins do Palácio de São Bento, entregando tal tarefa a um assalariado, contratado para o efeito, com um ordenado baixinho, a fim de evitar que o homem fosse para aí gastar o dinheiro nas tabernas, a encher-se de vinho tinto em copos-de-três... Também teve de abandonar as visitas diárias ao talho Pereira e à mercearia, passando a receber o senhor Pereirinha e o senhor Manel Merceeiro no Palácio, em dias e horas certas, para discutir o preço das costeletas ou do feijão encarnado.

Quanto às funções ministeriais, assumidas na totalidade dos Ministérios, Sua Excelência a Senhora Dona Maria de Jesus exigiu que os Directores-Gerais (recordemos que tinha deixado de haver Ministros) lhe enviassem diariamente relatórios das respectivas actividades, que eram minuciosamente analisados, à noite, ao serão – e, quando detectava qualquer erro ou omissão, enviava um cartão de visita ao faltoso, com esta simples mensagem a lápis: "Está Vossa Excelência dispensado do seu cargo, a partir de amanhã, e pode ir para casa descansar."  Pronto, estava o caso arrumado, ao antigo estilo de Sua Excelência o Senhor Professor Oliveira Salazar – e não havia mais conversas. 

Pois bem, na tal reunião com Sua Excelência o Senhor Presidente da República, a Excelentíssima Senhora Dona Maria de Jesus, Digníssima Presidente desse Conselho de Ministros que nem sequer existia porque ela assumira todas as pastas, foi muito directa e muito pragmática:

- Senhor Presidente, o melhor é esclarecermos já as coisas, para não haver chatices daqui para diante!

- Sim, sim, claro – ia a dizer o Senhor Contra-Almirante. – Eu acho... – mas foi imediatamente interrompido.

- O senhor não tem nada que achar nem deixar de achar! A questão é a seguinte: agora que fui nomeada, quem manda aqui sou eu!

- Mas... mas fui eu que a nomeei... Se eu não a nomeasse... – tentou o outro.

- Se não me nomeasse, nomeava-me eu a mim mesma! Portanto, baixe a bolinha e escute. Eu é que ponho e disponho em tudo, como acontecia antigamente com o meu saudoso patrão, o Senhor Doutor Salazar. Vai daí, o senhor não precisa de se preocupar com coisa alguma, que eu trato de todos os assuntos importantes do País.

- Então e eu, faço o quê? – foi a pergunta tímida.

- O senhor dedica-se a inaugurar chafarizes e a presidir a outras cerimónias igualmente interessantes e apropriadas à sua condição! Terá assim oportunidade para repetir aquele discurso que já toda a gente lhe conhece.

- Ah, sim, aquele em que eu digo: "Esta á a primeira vez que aqui venho desde a última vez que aqui estive!"...

- Exactamente. Fazendo assim, vamos ter uma vidinha santa, cada um na sua função, e o País estará contente e tranquilo.

- Está bem, isso até nem deixa de ser conveniente para mim. Bem me bastou o abanão que tive de suportar por causa dessa confusão do tal 25 de Abril...

- Óptimo! Estamos entendidos, então. E agora, vou tratar de alguns assuntos ministeriais. Por exemplo, no Ministério das Colónias, vou nomear alguém que fique encarregado da resolução dos problemas lá dessas nossas chamadas províncias ultramarinas...

- Ah sim? E posso saber, já agora, quem vai encarregar de resolver essa melindrosa questão?

- Sim. Vai ser o senhor Doutor Almeida Santos!

- Não me diga! Mas esse cavalheiro...

- ... é quem tem andado a espalhar mais teorias sobre o assunto. É altura de transformar as teorias em coisas práticas. Ele que resolva lá as questões daquela gente, já que se mostrou tão sabichão a esse respeito!

- Então, e já agora, que se dignou entrar no plano das confidências... posso saber como é que vai resolver o problema dos exilados políticos? É que eu ouvi dizer que o doutor Mário Soares, o doutor Álvaro Cunhal e mais uma data de gente que está lá por fora, pensava regressar a Portugal, se a revolução tivesse vingado...

- Tenho um plano maquiavélico, quanto a esses exilados! Vou informá-los de que estamos a experimentar um regime das mais amplas liberdades... Eles ficam muito contentes, metem-se nos comboios e nos aviões para regressarem à Pátria, e até lhes organizo imponentes manifestações de acolhimento, no Aeroporto da Portela e na Estação de Santa Apolónia, com milhares de apoiantes...

- E depois?

- Depois... meto-os a todos no xelindró, e nunca mais nos aborrecem, nem aqui nem lá de fora das nossas fronteiras!

- Mas que ideia fantástica! Devo manifestar-lhe a minha entusiástica admiração pelo seu génio político! Ainda bem que a escolhi para este importante cargo!

Resmungando para si mesma, Dona Maria comentava: – Pois sim, vai ficando na ilusão de que a ideia foi tua... – E, em voz alta: – Bem, está o expediente em dia. Pode sair. Vá lá dar umas voltinhas com a dona Gertrudes, para passar o tempo!

E assim terminou aquela importante reunião, na qual tinham sido aflorados, quase sem se dar por isso, alguns dos mais prementes problemas com que se defrontava a nossa Querida Pátria! 

A consagração: Sua Excelência a Presidente do Conselho vê-se confirmada, pelo Bom Povo Português, com a mesma admiração e o mesmo respeito de que gozara o seu saudoso antecessor e ex-patrão.

Mas faltava algo indispensável. Faltava uma grande, uma expressiva consagração pública daquela austera figura que era agora a suprema condutora dos destinos da Nação. Uma manifestação que consolidasse a sua liderança, tornando-a incontestável. Era necessário que o Povo, o Bom Povo Português, bradasse, em altíssima gritaria, a sua admiração e o seu respeito pela Senhora Dona Maria, até para que não restassem dúvidas sobre a legitimidade do seu papel naquele alto posto. É certo que não o tinha conquistado através dos votos dos Portugueses, pois não se realizara qualquer eleição para esse efeito. Mas... eleições para quê?...

Toda a gente tinha consciência de que as eleições não servem senão para iludir as pessoas com a sensação de que estão, com um simples papelinho metido numa urna, a manifestar a sua vontade e a sua escolha. Nada mais falso! Esses papelinhos, para quem esteja treinado nestas coisas, podem ser facilmente arranjados (ia a dizer "manipulados", mas a expressão é talvez demasiado forte), de forma a que os resultados sejam aqueles que mais convêm aos superiores desígnios da Nação – como aliás acontecera já, em episódios anteriores, em que, nas contagens, se tinha dado um jeitinho... melhor dizendo: um "jeitão"... – para evitar que a escolha fosse recair numa pessoa que não interessava a ninguém...

Ora, em vez de se estar a perder tempo com essa tarefa de eliminar os votos que não são convenientes, guardando apenas os votos bons, mais vale, na verdade, evitar toda essa trabalheira, que só serve para as pessoas se cansarem, e anunciar logo o resultado final, aquele que realmente mais interessa, pois não é verdade?

Assim mesmo acontecera em relação à Senhora Dona Maria de Jesus. Deste modo, era conveniente, agora, sancionar a feliz escolha, fazendo-a aplaudir por milhares e milhares de pessoas.

No tempo do Senhor Professor Doutor António de Oliveira Salazar (cuja alminha, pura e sem pecado, todos desejavam que estivesse em sossego no Paraíso), tinha-se realizado, um dia, uma grandiosa Manifestação de Mulheres, com o pretexto de agradecer a Sua Excelência o facto de ter poupado o nosso Bem Amado País às agruras da guerra. Para tal, fora convocada uma concentração para o Terreiro do Paço, tendo sido minuciosamente preparadas as coisas para que o Senhor Professor fosse surpreendido quando, ao interromper os seus importantes trabalhos num dos Ministérios ali sedeados, fosse confrontado com uma enorme multidão que, à socapa, se teria reunido na vasta praça, e que, de repente, romperia em frenéticos aplausos.

Foi assim que o Senhor Professor, curioso, e querendo saber o que se passava lá fora, se abeirou de uma das janelas, ficando muito, mas mesmo muito surpreendido, ao deparar com aquele imensa mole humana – uma mole, aliás, bastante dura, tão compacta ela era, enchendo todos os recantos da praça, incluindo os mictórios subterrâneos então ali existentes.

E, de repente, sem qualquer preparação ou ensaio, toda aquela gente desatara a berrar: "Salazar, Salazar, Salazar!" E só então, com grande surpresa, Sua Excelência verificou que toda a imensa multidão era constituída exclusivamente... por mulheres! Eram mães, irmãs, filhas, noras, cunhadas, primas, tias, avós, algumas bisavós, embora poucas, incluindo donas de casa, telefonistas, dactilógrafas, empregadas de balcão, enfermeiras, parteiras e outras, muitas outras, todas unidas na mesma intenção e na mesma gritaria tão sonora que se podia ouvir na Outra Banda, em Cacilhas e até na Cova da Piedade... Depois, inesperadamente, surgiram, por cima daquele mar de cabeças bem penteadas (todas tinham ido ao cabeleireiro, nessa manhã ou na véspera), vários cartazes muito bem escritos, com letras impecavelmente desenhadas, certamente ali feitos, no momento, uma vez que a manifestação era, como já se explicou, completamente espontânea... E que diziam esses cartazes? Em frases muito simples, agradeciam a Sua Excelência o facto de apenas termos sofrido, entre os graves inconvenientes da Guerra que se desenrolara na Europa, entre 1939 e 1945, o pequeno inconveniente do racionamento de géneros, como o feijão, o grão de bico, outras mercearias, o leite, a carne, o peixe, a gasolina, etc.

Pois bem, o que se pretendia agora, em 1974, era repetir essa grandiosíssima manifestação – embora com algumas diferenças. Para começar, não houvera mais nenhuma Guerra Mundial de que a Senhora Dona Maria nos tivesse safado. (Havia a guerra do Ultramar, é certo, mas essa estava praticamente ganha, segundo afirmavam alguns especialistas, não em guerras, mas em palpites, e de qualquer forma tal assunto não interessava ser discutido neste momento). É verdade que também não houvera mais nenhum racionamento, a não ser aquele que era espontaneamente feito pelas boas donas de casa portuguesas, que tinham de racionar os escudos, para darem de comer às respectivas famílias com os ordenados magrinhos que os maridos recebiam, de maneira a não lhes sobrar mês no fim do ordenado... Outra diferença residia no facto de a Senhora Dona Maria ainda não ter feito nenhum discurso, idêntico aos que fazia o seu antigo Mestre e Mentor – os quais, como algumas pessoas comentavam, eram tão extraordinariamente bem escritos que poucos percebiam o que ele dizia, embora todos percebessem muito bem o que ele queria.

E o que é que ele queria?... Queria fazer da nossa Querida Pátria uma terra Democrática!

(Os leitores hão-de estar espantados, perante esta minha afirmação, que aparentemente contradiz outras afirmações, feitas mais atrás, em que manifesto o meu repúdio e a minha antipatia em relação a esse sistema político horroroso que é a tal Democracia... Provavelmente, estão a pensar em alguma viragem ideológica que se tenha dado no meu espírito, algum viracasaquismo de última hora que tenha atingido a minha consciência... Nada mais errado! Vou explicar... É que há Democracias e Democracias... Há aquela em que toda a gente, mesmo toda, incluindo os mais idiotas, vota para escolher quem os deve governar. A essa, acho-a inútil e até maléfica, porque é um sistema em que qualquer bicho-careta pode dar opinião e votar... Agora aquela em que uma pessoa iluminada e esclarecida, superiormente inteligente, se elege a si própria, sabendo que é um ente superior, escolhido, não pelos votos, mas por um Destino glorioso, para conduzir um país à Felicidade – essa sim, é uma bela Democracia!... Portanto, quando digo que Sua Excelência queria fazer deste país um país democrática, isso significa que ele pretendia distribuir por todos – democraticamente, estão a ver? – a riqueza nacional... Bem, quando digo "por todos", deixo de lado, obviamente, os antipatriotas, que esses não merecem que lhes distribuam seja o que for. E destaco, por contraste, uma elite constituída por aqueles que, inteligentemente, se colocam ao lado de quem manda, ganhando por isso o privilégio de usufruírem das benesses a que têm direito).

Era, pois, necessário organizar, com todos os cuidados e todos os pormenores, uma grandiosa "manifestação espontânea" de apoio a Dona Maria de Jesus. E nisso se empenharam os especialistas do costume, já habituados a preparar tais acontecimentos. Foram convocadas as autoridades regionais, para arregimentarem as forças vivas e, até, algumas forças mortas de cada uma das suas zonas de influência, a fim de se deslocarem à capital, na data e à hora previamente programadas.

O esquema já era bem conhecido, de ocasiões anteriores. Convocavam-se as pessoas de cada freguesia, ou de cada paróquia, por iniciativa do respectivo líder político local, para uma reunião preparatória, num sítio apropriado. Aí se explicava que era necessário ir a Lisboa, no dia tal, para a tal "manifestação espontânea", que teria de ser mesmo "grandiosa". Ninguém perguntava os porquês, porque, naturalmente, já todos conheciam, mais ou menos, as respostas. Para o dia marcado, arranjavam-se umas camionetas para o transporte do pessoal, as quais estacionavam na praça principal, onde toda a gente se reunia. Distribuía-se a cada participante um cartucho com duas sandes, um refresco e uma maçã reineta. (Para os que tinham viagem mais comprida, podia reforçar-se o lanche com meio frango por cabeça). À hora marcada, lá estava toda a gente preparada para a viagem, todas as pessoas muito bem arranjadas, todos os homens de barba muito bem feita – algumas pessoas até tinham tomado banho na véspera!... E lá partiam, para uma jornada patriótica de consagração, uma manifestação de respeitinho e obediência a quem se sacrificava para estar lá no alto, para que todos fossem mais felizes cá em baixo.

Pois foi uma manifestação destas que se preparou, para homenagear a Dona Maria... Tudo muito bem organizado, com todos os pormenores, como atrás se descreveu, e alguns mais, que nem vale a pena mencionar, porque toda a gente os conhece.

Mas... com uma grande diferença, em relação a todas as manifestações anteriormente realizadas: é que, nesta, só entravam homens!

Fazendo um curioso contraponto com a tal manifestação que, muitos anos antes, tinha sido dedicada ao saudoso Professor Salazar, e em que só tinham participado mulheres, nesta podiam ver-se pais, irmãos, filhos, genros, cunhados, primos, tios, avôs, alguns bisavôs, embora poucos, incluindo funcionários públicos, empregados de escritório, carteiros, varredores municipais e outros, muitos outros, concentrados, unidos numa berraria muito grande, que se ouvia na Outra Banda, até mesmo em Porto Brandão e na Trafaria!

Era verdadeiramente impressionante!

 Quando começaram os vivas e os gritos entusiásticos daquela imensa multidão masculina, o Senhor Doutor Moreira Baptista, que lá conseguira conservar, fora das suas funções ministeriais, a antiga responsabilidade máxima no SNI – Secretariado Nacional da Informação, aproximou-se de Dona Maria e disse-lhe ao ouvido: – Chegue-se Vossa Excelência à varanda, para saudar a multidão...

Mas Dona Maria, numa demonstração expressiva do muito que aprendera na sua vida cheia de ricas experiências, replicou, com ar enxofrado: – Meta-se na sua vida, que eu sei muito bem governar a minha! Só vou aparecer quando me apetecer e achar conveniente!

Toda a gente ficou varada com aquele incidente, que mostrava bem a fibra de que era feita aquela extraordinária mulher, que acrescentou ainda, para quem a quis ouvir: – A mim, ninguém me dá ordens! Sei muito bem o que quero e para onde vou!

Alguém observou, em voz baixa: – Onde é que eu já ouvi isto?...

E, lá do fundo do grupo seleccionado de Altas Figuras da Nação, ouviu-se este comentário, talvez não muito rigoroso, mas espontâneo e expressivo: – Temos homem!

Na verdade, adivinhava-se que a liderança daquela excelsa Senhora ia ser marcada pela sua forte personalidade, pelos vistos ainda mais robusta que a do seu nunca por demais louvado mestre e mentor. Assim, perante aquela manifestação, com tanta gente que ansiava pela sua aparição, ela fez-se cara durante bastante tempo, gerindo sabiamente a expectativa, e só surgiu à varanda quando o povo, lá em baixo, já estava rouco de tanto berrar o seu nome: – Dona Maria! Dona Maria! – ou simplesmente Maria...

Então, quando, depois de um bom bocado de tempo de espera, a sua figura austera surgiu, finalmente, na varanda, perante aquele mar de gente, foi o delírio! Os homens saudavam-na efusivamente, agitavam os braços, berravam tão alto quanto podiam... É verdade que alguns deles o faziam para ver se aquilo se despachava e voltavam aos autocarros para regressarem a suas casas, pois já estavam fartos de estar ali, de pé, aos gritos – e, além disso, já tinham dado fim à merenda!

Mas foi, na verdade, uma linda manifestação, que ficaria guardada na memória de todos os que a ela assistiram... No dia seguinte, o Diário da Manhã (o antigo matutino situacionista, entretanto ressuscitado) titulava, em letras gordas, na primeira página: "Só no tempo de Salazar se viu uma coisa assim!" – com uma grande fotografia em que se destacava Dona Maria, agitando em calorosa saudação o avental de tecido estampado que entretanto tirara. Magnífico!

CONTINUA NA QUINTA-FEIRA


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