22/11/2012

E SE O 25 DE ABRIL TIVESSE FALHADO? (14)


O primeiro discurso público de Dona Maria. Invocações políticas, patrióticas e gastronómicas.

Foi igualmente esplêndido o discurso proferido por Dona Maria, daquela varanda onde assomava pela primeira vez, mas onde o querido Professor tinha assomado muitas outras, para lançar ao Bom Povo alocuções de grande profundidade. Pois bem, ainda que noutro registo não tão erudito, o arrazoado de Dona Maria não deixou de calar fundo nas boas almas daqueles Portugueses que a escutavam embevecidos. Vou tentar reproduzir aqui os seus tópicos principais, já que é impossível apresentar ipsis verbis a versão completa. É que a oradora orou de cabeça, isto é, de improviso, coisa rara naqueles tempos. Mas, enfim, aqui vai o resumo, tão exacto quando possível, dessa notável e patriótica peça de oratória:

"Portugueses! Obrigadinha por terem vindo aqui mostrar o vosso respeito por mim! O respeitinho é uma coisa muito bonita, sempre tenho ouvido dizer... Pois eu quero que todos vocês sejam bons patriotas, e para serem bons patriotas têm de respeitar aquelas três coisas com que o Senhor Doutor Salazar nos estava sempre a massacrar a cabeça, quando era vivo, e que são Deus, Pátria e Família. Eu desta última não percebo lá grande coisa, porque nunca constituí família, não é que me faltassem pretendentes, mas eu bem sabia que eles, o que queriam, era apanhar-me a jeito, depois de casada, para meter cunhas para bons empregos no Estado! Mas eu nunca fui nessa conversa e por isso aqui estou, solteira e tão inteirinha como quando vim ao mundo!... Sim, porque fiquem sabendo que essas calúnias que alguns andaram para aí a espalhar, que eu tinha intimidades com o Senhor Doutor, é tudo mentira! Nunca, mas nunca ele me tocou, nem eu lhe toquei, a ele, a não ser a segurar-lhe o queixo quando tinha que lhe dar o xarope para a tosse, ou às vezes para lhe atar as botas, quando ele estava mais atrapalhado com o reumático... E até porque o Senhor Doutor tinha lá as suas distracções com as descaradas que se atiravam constantemente a ele, como essa desavergonhada da jornalista francesa a quem tive de mandar tomar banho, porque o Senhor Doutor já não podia com o cheirete a perfume que ela usava para disfarçar a falta de sabão... Bem, mas vamos ao que interessa! Como vocês sabem, agora sou eu que mando, e não quero cá forrobodós no país! Quero toda a gente muito séria, tudo muito decente, nada de malandrices! Por exemplo, ficam proibidos os namoros em público, e não quero ver beijinhos nem abraços nas ruas. Toda a gente deve andar decentemente vestida, as mulheres ficam proibidas de usar mini-saias e calças justinhas ao rabo! Decotes, só muito subidos, e poucas pinturas na cara, que dão um ar muito ordinário... Os homens era bom que usassem todos chapéu, como o Senhor Doutor gostava, mas enfim, podem substituí-lo por um boné. Boinas não, que isso é o que usam lá esses malditos revolucionários estrangeiros, e não quero cá disso!... Ora vocês, homens, que vieram aqui manifestar o vosso respeito por mim, fiquem sabendo que não os quero por aí em festas e em bailes e em sítios pouco recomendáveis, como sejam as discotecas e os cabarés. Podem frequentar os cafés, mas nada de conversas políticas, senão já sabem o que lhes acontece: os agentes das nossas polícias e os patriotas vigilantes que apanhem alguém a dizer mal do Governo, logo vos tratam da saúde! E depois não se queixem!... Sigam aquela boa norma que diz assim: "A minha política é o trabalho..."

E a multidão, em coro, recitou: – "... e não me tenho dado nada mal com isso!"

"Muito bem" – aprovou a Dona Maria. E continuou: – " Portanto, trabalhem, para sustentar os vossos lares e as vossas famílias, não andem aí atrás de rabos de saias, nem metidos nos copos, e não se envolvam em complicações, em greves e outros disparates assim. E se descobrirem algum malandro de algum comunista, tratem de o denunciar imediatamente, que o vosso gesto será devidamente recompensado. Por outro lado, se andarem misturados com esse tipo de gente e forem apanhados, já sabem: vão parar ao xelindró, depois de levarem uns abanões dados a tempo, como dizia com muita graça o Senhor Doutor... Bem, e agora voltem para junto das vossas mulheres, já que resolveram fazer esta manifestação só com homens. E quando estiverem com elas tratem-nas bem, e recomendem a elas, da minha parte, que sejam poupadinhas, que não gastem os vossos ordenados em extravagâncias. E também que não se ponham com despesas escusadas, que não andem sempre metidas nos cabeleireiros, e não se ponham a comprar coisas inúteis, como, por exemplo, máquinas de lavar, ou aspiradores... Expliquem-lhes que uma vassoura e um bom pano do pó servem muito bem para limpar a casa, e ficam muito mais em conta! Ah, e elas que se habituem a escolher com cuidado o peixe na praça; se as guelras não estiverem vermelhas e os olhos não estiverem bem vivos, é porque não está fresco. E outra coisa: se a sopa ficar salgada, elas que lhe juntem umas rodelas de batata crua, que retira logo o excesso de sal... Pronto, é tudo o que tenho a dizer por hoje. Viva Portugal! Viva eu!"

E retirou-se dignamente para o interior, deixando aquela multidão de homens completamente eufórica, novamente aos gritos de Dona Maria, Dona Maria!


As reacções populares à nova situação política. O que as pessoas normais pensavam e diziam daquela governação um pouco fora do normal – e também o que pensavam mas não diziam.

A dizer a verdade, o Bom Povo Português andava um bocado azamboado com aquela situação. Não percebia lá muito bem o que se estava a passar. Ouvira dizer, vagamente, que estivera preparado um golpe militar para virar o país de pernas para o ar, mas, afinal, o único golpe a que assistira e ao qual fora dada divulgação pública (mesmo assim, muito discreta) fora o pontapé-no-rabo aplicado ao Professor Dout... perdão, ao Marcelo Caetano, que tinha sido despachado rapidamente para o Brasil, deixando atrás de si, não o cheirinho àquela primavera marcelista que tinha prometido, mas ao "mofo outonal da sua infeliz governação", como escrevera, em hora de feliz inspiração, o brilhante Jornalista Manuel Maria Múrias, num editorial do renovado jornal A Rua, e no qual, em contrapartida, deixava os mais rasgados elogios à nova governanta... perdão, à nova Governante!

Pouco mais se sabia – a não ser, é claro, o facto evidente de o país estar a ser comandado por uma mulher que era Presidente do Conselho de Ministros... sem que, curiosamente, existisse qualquer Conselho, porque também não havia Ministros, uma vez que ela assumira e acumulara todas as pastas...

A pouco e pouco, o Bom Povo foi-se apercebendo de que a vida decorria na mais perfeita normalidade, sem atropelos de maior e sem perturbações de qualquer espécie. Melhor dizendo, o Povo não se apercebia de coisa alguma, porque ninguém lhe dizia o que se passava, lá nas altas esferas governamentais. Nem tinha nada que saber de tais assuntos, ora essa! A função do Governo era governar, não era? Pois o Governo governava, e ponto final. Era só o que faltava, estar a informar o pessoal, tintim por tintim, de tudo o que resolvia fazer, a bem da Nação!... E a função do Povo, qual era? Trabalhar e calar o bico, evidentemente... Pois que trabalhasse e calasse o bico, para que tudo corresse na maior das calmas e na maior das felicidades, porque não há coisa pior do que ter as pessoas inferiores a meter os narizes nos assuntos que devem ser tratados pelas Pessoas Superiores! Já no tempo de Sua Excelência o Senhor Professor Doutor António de Oliveira Salazar era esse o sistema em vigor – e, graças a ele, tínhamos, todos nós, vivido felizes, contentes e em paz, durante muitos e muitos anos! Todos nós, talvez não... Sempre houvera uns chatos duns contestatários que refilavam contra esta evidente tranquilidade que nos era oferecida, e se sentiam atabafados por não poderem falar, escrever e fazer as coisas que lhes apetecia fazer. Diziam até que a nossa paz era igual à paz dos cemitérios... Mas esses que assim falavam não mereciam mais que uma certa condescendência, porque, coitados, não tinham capacidade para entender a Felicidade que lhes era proporcionada pela governação que generosamente lhes calhara em sorte.

Deste modo tranquilo, foi passando o tempo, com a calma do costume ou, pelo menos, com a aparência de calma do costume. As pessoas faziam o que tinham a fazer. Assim, a maioria dos homens ia para os seus empregos, de manhã, e regressava a suas casas, à tardinha, parando no caminho para tomar uma bica escaldada e discutir o futebol, no café. A maioria das mulheres tratava da casa, limpava, arrumava e cuidava dos rebentos. Durante o jantar, todos viam os interessantes programas da televisão. Iam ao cinema de vez em quando. Faziam as compras nas mercearias e noutras lojas tradicionais, porque os supermercados ainda eram raros. As criancinhas andavam nas escolas, os mais crescidos nos liceus, alguns, de famílias mais abonadas, frequentavam as universidades, e todos sabiam muito bem a tabuada e os tempos completos dos verbos "ter", "ser" e "haver". Ninguém tinha muito dinheiro, a não ser, é claro, alguns Senhores-Muito-Importantes que dominavam os sectores essenciais da vida do país, como as Indústrias, o Comércio, a Construção Civil e outras actividades que era preciso manter em bom funcionamento, para que as receitas do Estado se apresentassem como as receitas dos médicos: incompreensíveis para o povinho simples, que não lhes consegue decifrar a letra nem adivinhar os efeitos...

  Voltam as instituições de antigamente, com os seus símbolos e as suas saudosas siglas.

Dona Maria não se podia conformar com certas transformações – certas "modernices", como ela dizia – que se tinham introduzido sub-repticiamente na vida da nossa Pátria. Por isso, tratou de fazer reviver saudosas siglas, saudosas instituições e não menos saudosos hábitos e costumes que ameaçavam perder-se e, com eles, as mais respeitáveis tradições do nosso Bem Amado Regime.

Assim, por exemplo, nunca ela simpatizara com a ideia de ver substituída a designação da veneranda "Censura" por esse nome mais moderno de "Comissão de Exame Prévio"... Pois bem, uma das suas primeiras medidas foi a de restaurar, não apenas o tradicional nome desse prestimoso Serviço, mas, também, todas as suas competências, funções e tradições. Simbolicamente, foi-lhe atribuído um subsídio extraordinário para a compra de várias grosas de lápis azuis, bem como para uma boa quantidade de apara-lápis, destinados a mantê-los sempre operacionais, na patriótica tarefa de eliminar todas as palavras, todas as ideias, todas as teorias, todos os escritos, que pudessem perturbar e prejudicar os espíritos e a tranquilidade pública, envenenando as pessoas com desvios em relação àquilo que o Superior Interesse do Estado considerasse útil para a nossa Pátria. E ainda resolveu conceder, aos prestimosos Coronéis reformados ali exercendo as suas importantes funções, generosos aumentos dos seus ordenados, a fim de os manter com o espírito alerta, na análise e expurgação de qualquer texto incómodo para o Regime.

Também a "DGS – Direcção-Geral de Segurança" voltou a ter o seu tradicional nome antigo, tão interiorizado e tão respeitado por toda a gente: voltou, pois, a ser a "PIDE", a imprescindível PIDE, que tantos serviços prestava à segurança nacional e, em particular, à segurança dos fiéis servidores do Estado Novo... Também nessa instituição, os seus agentes foram premiados com gratificações extraordinárias, para que os seus olhos e as suas orelhas se mantivessem em permanente alerta perante os perigos com que a subversão pudesse ameaçar a tranquilidade e a paz da vida nacional.

Outra instituição que voltou, por ordem de Dona Maria, à designação antiga, foi a "ANP – Acção Nacional Popular", que recuperou, e ainda bem, o prestigiado nome de "União Nacional", de tão antigas e nobres tradições!

Assim se assistiu (agora sim, e não como fora timidamente ensaiado nos tempos do Caetano) a uma verdadeira "evolução na continuidade"!

E desta forma foram decorrendo vários anos... Anos passados em que, a bem dizer, aqui não se passou, praticamente... nada!

Diz-se que os Povos Felizes não têm história... Era o nosso caso. Felicíssimos, satisfeitos com a nossa vida, cá fomos continuando nesta pontinha da Europa, caladinhos e, como de costume... orgulhosamente sós...

CONTINUA NA SEGUNDA-FEIRA


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