05/11/2012

E SE O 25 DE ABRIL TIVESSE FALHADO? (9)

E o povinho? Que sabia e que pensava o simples e honesto Povo Português? Nem precisava de pensar nada, pois havia, felizmente (como sempre houvera antes) quem pensasse por ele!

Na sua maioria, o povo da nossa amada Pátria nem se tinha apercebido da verdadeira dimensão da catástrofe que estivera a ponto de se abater sobre a Nação Portuguesa. Sim, é certo que tinham soado por aí uns zunzuns sobre algumas manobras de subversão, que estariam a ser preparadas em surdina, mas esse era um tema ao qual já toda a gente estava habituada, desde há muitos anos, e que nunca conduzira a qualquer mudança concreta. Logo desde os primeiros tempos em que Sua Excelência o Senhor Professor Doutor António de Oliveira Salazar começara a orientar superiormente os destinos desta Nação, uma cáfila de invejosos desatara a conspirar, primeiro com dor-de-cotovelo por não terem conseguido igualar a sua capacidade para subir tão alto, e, depois, quando a impressionante sementeira política do Senhor Professor começou a dar frutos, com o intuito confesso de se aproveitarem da sua obra e fazerem a colheita dos proveitos maduros de um trabalho insano e altamente patriótico.

Se me permitem uma analogia de tipo agronómico – eram como aqueles que colhem e comem as cerejas duma cerejeira plantada por outrem, e ainda dizem mal, por a fruta ter caroços...

Mas, é claro, toda a gente acabou por saber das profundas mudanças que acabavam de acontecer, naquela data que ficaria histórica, isto é, naquela transição do dia 24 para o dia 25 de Abril de 1974. As centrais informais de informação e boataria logo se encarregaram de espalhar as novidades por toda a parte, nem sempre, é certo, com o rigor informativo que se impunha, em tão importante ocasião.

Centremos então as nossas atenções nessa noite que poderia ter sido fatídica. Os marotos dos revolucionários, esses, evidentemente, ficaram logo a saber que a sua aventura terminava da pior maneira para eles – ao passo que, por contraste, terminava da maneira mais gloriosa para os verdadeiros patriotas! Por isso, trataram de comunicar uns com os outros, pelos meios então existentes, avisando do fracasso e recomendando que os implicados se safassem como pudessem, porque não tardariam as Forças da Ordem a procurá-los para lhes aplicarem os merecidos castigos. E esses meios de comunicação, quais eram? Como, nesse tempo, ainda não havia telemóveis, tinham de servir-se dos vulgares telefones dos TLP, desde que os tivessem em suas casas, ou dos telefones públicos, desde que tivessem a moedinha necessária para estabelecer a ligação... Mas o principal meio de comunicação era, evidentemente, o boca-a-orelha, com a boca meio fechada, a sussurrar as más notícias, e a orelha bem aberta para as receber. Este sistema sempre funcionara muito bem em Portugal, embora seja para mim um mistério, ainda hoje, como é possível espalhar, em tão pouco tempo, as últimas novidades, por todo o país, normalmente acompanhadas de piadas muito engraçadas, que toda a gente repete no dia seguinte.

Foi o que aconteceu então. Os simpatizantes da intentona ficaram a saber, quase imediatamente, do falhanço estrondoso daquela projectada golpada, e do destino dos seus principais responsáveis, já a essa hora em vias de seguirem para as paradisíacas ilhas de Cabo Verde, onde iriam passar um longo período de férias, bronzeando-se ao sol tropical... Alguns implicados, figuras menores, comparsas com reduzida importância, sem papel distribuído naquela tragédia que se ensaiara, acharam por bem, mesmo assim, à cautela, esconderem-se e anicharem-se em lugares discretos. Outros, os que tinham estado envolvidos mais directamente no golpe, trataram de se pôr ao fresco para o estrangeiro, já que o clima português, tão ameno para os fiéis seguidores da política do Estado Novo, se revelava agora inclemente para esses energúmenos.

 O dia seguinte – o dia em que eles, os antipatriotas, tinham previsto que passariam o tempo em manifestações de regozijo, acamaradando com os militares que deveriam ter dominado o país e instaurado um terrível sistema revolucionário, baseado em coisas tão tontas como "as mais amplas liberdades", "o fim da ditadura", "a abolição da PIDE e da Censura" e outros disparates sem qualquer nexo – acabou por ser igualzinho a todos os dias: toda a gente se levantou com sono, as pessoas foram para os empregos com cara trombuda, trabalharam desanimadamente, leram os jornais desportivos, discutiram os resultados do  futebol, fizeram contas à vida, a ver se tinham dinheiro suficiente para a prestação do carro, e foram tomar a bica ao café do costume, tudo na maior das rotinas...

Aliás, nos cafés, os grupinhos costumeiros, que discutiam os golos do Benfica em voz muito alta e a Política em voz muito baixa, iam sussurrando as últimas novidades, olhando por cima do ombro, a ver se não estaria por perto o habitual informador da patriótica organização chamada PIDE. E algumas dessas conversas eram reveladoras do que pensava o povo, em relação ao que se passara – ou melhor, ao que estivera para se passar.

- Então já sabes? – diria um. – Parece que estava para haver uma revolução, a noite passada...

- Não acredito! – respondia outro. – Há anos que ouço essa conversa, e nunca dá nada!

- Ah, mas desta vez era a sério! Só que a marosca foi descoberta a tempo e foi tudo para o xelindró! Quem me contou foi um tipo que é compadre do cunhado da prima da mulher de um contínuo do Ministério do Interior! O Governo vai levar uma grande mexida!

- Ó diacho! – alarmou-se um terceiro. – Vão trocar os tachos outra vez?

- Espera, ainda não te contei a melhor! O Marcelo foi para o olho da rua e vai ser imediatamente substituído!

- Não me digas! Por quem?

- Pela Dona Maria! A governanta!

- O quê? Quem é que se lembrou dessa brilhante solução?

- Quem havia de ser? Foi o Cabeça de Abóbora. De repente, o tipo parece que acordou da soneira em que anda há anos, e revelou-se de tal maneira que já lhe chamam O Grande Comandante! Foi ele que resolveu escolher a Dona Maria para Presidente do Conselho.

- Caramba! Estamos bem governados com essa! Tenho ouvido dizer que é pior a criada do que era o patrão!...

- Schiu! Fala mais baixo, que ela já deve ter ouvidos atentos por todo o lado!

- E agora, a nossa Política, que voltas é que ela irá levar? Eu fico um bocado alarmado...

- Pois eu não. Eu vou continuar, como até agora, a falar o menos possível desse assunto.

- Tens toda a razão! O melhor – começou um deles – é continuarmos a dizer, como sempre: "A nossa política é o trabalho..."

- "...e não nos temos dado mal com isso!" – concluíram os três. E fez-se silêncio no café, até porque já estava um tipo de gabardina a olhar suspeitosamente para o grupinho.

Lá fora, nas ruas, algumas floristas olhavam, com um ar muito desconsolado, para os molhos de cravos vermelhos com que se tinham fornecido nessa manhã, e que tinham pensado vender em grande quantidade, durante o dia, a fim de os militares os colocarem nos canos das armas, compondo assim umas imagens muito bonitas para ilustrar aquela data. Mas, nada... as flores estavam a murchar, ainda não se vendera nenhum cravo, e as floristas estavam a ver que tinham o negócio completamente encravado...

Bem feito, para não se armarem em apoiantes populares da revolução!

Outras, mais prudentes, tinham-se limitado aos malmequeres e outras florinhas mais apreciadas pelo Bom Povo Português, que normalmente só apreciava os cravos em alturas mais adiantadas do calendário – lá para Junho, pelo Santo António, e nunca em Abril, o das águas-mil...

Esse Bom Povo, na sua imensa maioria, nem se tinha apercebido do que acontecera – ou melhor, do que estivera para acontecer. Havia de ler nos jornais, ouvir nas rádios e ver na televisão os aspectos mais evidentes das mudanças indirectamente provocadas pela frustrada intentona – mas sem perceber grande coisa do que se passara. E ainda bem, porque não há maior felicidade, para um povo, do que trabalhar e levar a sua vidinha honesta, simples e calma, sem se meter em barafundas como aquela que quase o ameaçara, mas que, felizmente, ficara em águas-de-bacalhau!...

E todos repetiam, ordeiramente, a tal frase que quase se transformara num slogan nacional, e que todos pronunciavam, uns mais convictos do que outros, mas todos conscientes da sabedoria e sensatez que encerra: "A minha política é o trabalho, e não me tenho dado mal com isso!..."

CONTINUA NA QUINTA-FEIRA

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