12/03/2012

INTERLÚDIO - OS CÓMICOS 321

UM PEQUENO INTERVALO NA PUBLICAÇÃO DE "O EROTISMO A NU".
PARA DESANUVIAR, AÍ VAI UMA CRÓNICA DA SÉRIE "OS CÓMICOS"
PUBLICADA NO DIÁRIO DO SUL DE 12.3.2012

DENTRO DE UM DIA OU DOIS, SERÁ RETOMADA A PUBLICAÇÃO QUE TEM VINDO A SER FEITA REGULARMENTE; ÀS QUARTAS E SÁBADOS

EU TINHA UM CONTRATO
           
Já lá vai uma catrefada de anos, já nem sei quantos, fiz um contrato… Era eu, então, um rapaz novo… Há quem diga que é asneira dizer-se um rapaz novo, porque todos os rapazes são, por definição, novos… mas é mentira, há rapazes que já nascem velhos – mas isso agora não vem ao caso. O que vem ao caso é que eu, nesse tempo, era rapaz e era novo. E fiz, então, um Contrato... Ora, desde esses tempos de rapaz, habituei-me a levar muito a sério os Contratos feitos. E este, de que vos falo, foi estabelecido tacitamente entre eu próprio e os Senhores-Que-Mandam-Na-Gente. Refiro-me, naturalmente, aos Senhores-Que-Mandavam-Nesse-Tempo, e não aos Senhores-Que-Mandam-Agora. Mas sempre me disseram, foi o que me ensinaram na Escola, que estes Contratos são para cumprir, mesmo quando os Senhores são substituídos por outros Senhores… Para ser mais exacto, o Contrato foi feito entre duas entidades: eu próprio, como Cidadão, e o outro signatário, chamado Estado… Coisa séria, como se vê, coisa para valer, e para ser respeitada por ambas as partes… E agora vem a pergunta: de que tratava o Contrato? Eu explico. Havia três pontos principais. Vamos ao Primeiro. Da minha parte, haveria o compromisso de, durante um certo número de anos, trabalhar honestamente, e ganhar, como contrapartida do meu trabalho, um ordenado que me permitisse viver decentemente. Depois, havia alguns pormenores, também importantes – como, por exemplo, o de o meu ordenado ser maior ou menor, conforme eu trabalhasse mais ou menos, melhor ou pior, com mais competência ou com menos afinco… Mas, assim em termos gerais, era este o primeiro ponto do contrato. O Segundo ponto explicava que, uma vez terminada a minha carreira profissional activa, eu teria direito a receber uma pensão de reforma, calculada segundo umas tabelas muito bem feitas, isto quando já fosse velhote e já não pudesse com uma gata pela cauda… Falta só falar do Terceiro ponto; dizia que eu seria sempre tratado de forma igual à dos meus concidadãos que, todos eles, fariam contratos idênticos… Ora bem, o que eu gostava de ver esclarecido, pelos Senhores-Que-Mandam-Na-Gente, e agora refiro-me aos actuais, que são os continuadores dos antigos, mas que, segundo as leis e os costumes universalmente aceites, devem honrar os Contratos existentes – o que eu queria ver muito bem explicado era o seguinte: tendo eu cumprido escrupulosamente o primeiro ponto do Contrato (isto é, tendo trabalhado, dentro das minhas melhores capacidades, durante o período mais activo da minha vida, e tendo, nesse período, feito os devidos descontos para a pensão que o Contrato me concede), muito estranhei que os Senhores-Que-Mandam-Agora-Na-Gente me tenham rapinado uma fatia muito considerável da minha pensãozinha, a pretexto de isso ajudar a salvar a Pátria de um destino tenebroso. Não me pareceu bem – mas, enfim, sendo para um fim patriótico, ainda resmunguei, mas amochei… O que já não posso aceitar, nem suportar, é que o terceiro ponto do meu Contrato esteja agora a ser deitado para o caixote do lixo. E é como lixo que os Senhores-Que-Mandam-Na-Gente me estão a tratar – ao considerarem-me diferentemente de alguns dos meus concidadãos, ou seja, não em pé de igualdade, mas a pontapé! É que existe uma classe, entre esses meus concidadãos, que, tendo feito, certamente, Contratos perfeita e democraticamente iguais aos meus – está agora a ser beneficiada com condições muito especiais, segundo as quais não terá de fazer sacrifícios idênticos! Ou seja: para eles, e para os Senhores-Que-Mandam-Na-Gente, o Contrato é sagrado em todos os pontos – excepto no terceiro. Quanto a esse ponto, é um papelucho que se pode rasgar. Parece que eles, esses estranhos privilegiados, exigem não ser tratados exactamente como eu e a maioria dos parvos que acreditaram na validade de um Contrato honesto...
É no que dá isto de a gente confiar em Senhores-Que-Mandam-Na-Gente-E-Nos-Rapinam-O-Que-É-Nosso… mas não igualmente a todos!

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